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Para completar, todos pareciam muito contentes com sua presença. Todo mundo que chegava estava curioso para conhecer a dona do único nome desconhecido da lista de alunos da turma no quadro de avisos. Fiquei os três tempos de aula antes do intervalo com pessoas em volta sempre que tinham oportunidade.
Me irritou que todas àquelas pessoas choraram no velório de Mariana, assistiram à sua missa de sétimo dia e lhe fizeram homenagens na festa de fim de ano, mas naquele dia, foi só uma garota nova chegar para esquecerem totalmente de quem sentava ali, como se Mariana nunca tivesse existido e que não importava mais que aquele fora seu lugar quando no final do segundo ano, o memorial que todos montamos, foi desfeito pela tia da faxina. Queria que ao menos tivéssemos mudado para uma nova sala, talvez doesse menos.
No intervalo, Manuela estava disputada e felizmente foi se sentar com as colegas de Camilly. Foi bom ficar longe dela por um tempo. Depois de pegar a comida da cantina furando a fila, fui me sentar com os colegas de Gustavo no pátio dos fundos, eles sempre jogavam canastra em uma das mesas de cimento. O quinteto de antas falantes era composto por Guilherme, o único com quem conversava de boa e sem desavenças há uns bons anos, na verdade o achava bem legal; depois vinha Luiz, um maconheiro safado; Lucas, o palhaço da turma; Natan, que era atormentado pela própria turminha por ser um sonso e por último vinha Felipe. Mesmo naquela época de pazes feitas com meus antigos inimigos de infância, sua presença ainda me irritava puramente por mágoas da infância.
Felipe chegou no terceiro ano do fundamental bem na época do começo de ensaio da quadrilha e no seu primeiro dia mesmo, fomos sorteados para sermos o noivo e noiva do casamento jeca. Eu fiquei pra morrer pois odiava vestido, tentei fazer birra para que escolhessem outra pessoa, mas não deu certo.
Enquanto todos ficavam empolgados nos ensaios por não estarem em aula, eu ficava triste porque quando chegava em casa, minha mãe estava costurando meu vestido de noivinha e eu tinha que passar por várias provas dentro do tecido que pinicava. Felipe achava que minha chateação era por estar sendo noiva com ele e me perguntou porque o odiava e eu esclareci que só odiava a ideia de usar vestido e ele teve a brilhante ideia de que se eu me vestisse em sua casa, sua mãe me permitiria ser o noivo e ele usaria o vestido por mim; naquele dia lhe entreguei o número da minha mãe, e a sua fez todo o barro acontecer.
No dia da quadrilha chegamos eu como noivo e ele como noiva. Ocorreu o teatrinho de casamento e tudo, mas foi um alvoroço entre os pais que durou semanas. Depois do episódio Felipe e eu brincamos algumas vezes na casa do outro, mas comecei a odiar sua presença pois na escola ele foi convidado a andar com o clubinho de Gustavo. Ele nunca me ofendeu nem nada, mas se fosse meu amigo, não estaria com as pessoas que zombavam de mim. Hoje eu tentava superar a birra por ele, já que não fazia sentido ser amigo de Gustavo, o mandante da trupe, e ainda implicar com ele, que nunca fez nada comigo; porém no fundo eu ainda me sentia traído. Naquele dia o sexteto de idiotas também estavam na vibe de dia de mudanças e jogavam uno ao invés de canastra, talvez tivessem se tocado que eram muito ruins no jogo antigo.
— Ken! — Guilherme, quem muitas vezes eu chamava de Porco Sem Pescoço ou apenas Porco, desde o quinto ano por naquela época ele ser bem gordinho, chamou minha atenção quando me sentei junto deles. Ken também era o apelido que ele havia me dado na época, pois dizia que assim como o Ken, eu não tinha pinto. Apesar de um apelido escroto, hoje em dia ele não usava como algo pejorativo e eu não via assim.
— Nem adianta, maior amarelão! — Gustavo disse ao amigo enquanto tomava um de seus sucos detox de aparência muito feia.
— O que foi? — perguntei sem muito interesse, a comida estava gostosa demais para dividir atenção com Guilherme. O menu de quinta feira era arroz com carne louca, só não superava o de segunda, que era vaca atolada. Eu amava ir pra escola só para comer, teria voltado depois de formado se tivesse oportunidade.
— Tamo falando de pelada! Tu lembra de quando a gente jogava lá no clube da Poliana? Do caralho!
Eu lembrava da época do clube, mas não com tanta animação quanto Guilherme. Eu amava o clube de Poliana pois era meu momento de criança hiperativa jogar vôlei, futebol, futsal e ter aulas de natação. O que eu mais amava é que na hora de montar os times nos jogos, não havia diferenciação entre menino e menina, mas as coisas ficaram diferentes quando mudei de time. Os pais não gostavam de “molequinho” no banheiro das garotas e não apoiavam a ideia de eu usar o banheiro dos garotos. De início as crianças não se importavam, mas os pais fizeram um bom trabalho com alguns, tornando todo o clube em um local desconfortável pra mim. Sofri muito quando tive que abandonar o clube antes dos 12, idade limite para as atividades supervisionadas do clube da Poliana; apesar de que minha família ainda era sócia e minha mãe usava direto o salão de festas para eventos pequenos.
— E as peladinhas lá na quadra do Junin? Porra, por que tu não quer voltar a jogar?
— Quer saber? Talvez eu volte!
— Que pau no cu! — Gustavo resmungou — Depois que eu já te substituí? Vai ficar na reserva, mané!
— Vai nada, esse maluco é fera!
— Uno, filho da puta! — Lucas jogou uma das duas cartas que tinha na mão, sobre a pilha. Era uma para comprar mais quatro cartas e escolher a cor da próxima carta da pilha.
— Vai se foder, Lucas! Que cor você quer, imbecil? — Gustavo questionou, largando seu suco feioso para olhar as cartas que estavam em seu colo.
— Amarelo.
Gustavo jogou uma carta de “mais 2” amarela seguidas de mais três cartas iguais de cores diferentes. Irritado por ser o próximo a jogar e por ter que comprar muitas cartas, Felipe desistiu do jogo.
— Tomar no cu! Quero jogar mais não! — sempre que os garotos começavam uma algazarra como a que se iniciou depois de Felipe abrir a boca, eu pensava em me inserir em outro grupo de amigos como parasita, mas daí eu lembrava que nenhum dos outros grupos teria Gustavo; ele era o motivo real para eu sentar com o resto de seus amigos, culpa da minha dependência emocional por pessoas que me tratam bem demais; certeza que posso culpar minha mãe por isso.
— Otávio? — uma voz conhecida se aproximou da mesa, fazendo os garotos sossegarem por alguns segundos. Era Samantha, uma colega de turma.
— E aí?
— Tô te devendo dez reais desde o ano passado — ela estendeu a nota para mim. A criação que tive não me permitia pegar dinheiro enquanto estivesse comendo e meu dia já estava ruim o suficiente, não precisava ficar ouvindo a voz da minha mãe gritando dentro da minha cabeça.
— Que isso, precisa devolver não!
— Se você tá dizendo... Não vou devolver mesmo! Me liga hoje de tarde, tá? — Samantha não esperou minha resposta para se virar e voltar para seu grupo de amigas, minha mesa virou uma algazarra de novo por alguns segundos.
— Eu não consigo, cara, não faz sentido! Como é que você só pega gostosa parecendo um calango?! Ensina pro pai, Ken!
— Pareço um calango o caralho, o pai é gostoso! — pra falar a verdade, eu nem odiava a algazarra tanto assim.
Mesmo eu não demonstrando, foi um dia difícil de aula. Sempre tem alguém falando para que você viva intensamente da forma que deseja pois quando você morrer, todos vão se esquecer de como você era e automaticamente, esquecer totalmente de suas atitudes e ações e aquilo era verdade; muitos ali conheciam a Mariana desde bebê, mas ninguém parecia se lembrar dela depois que Manuela sentou em seu lugar. Todo mundo parecia tão feliz que aquilo se tornava irritante, mesmo que eu também estivesse me esforçando para agir normalmente e censurar minha raiva, sabendo que não podia julgar o luto alheio e muito menos esperar que as pessoas deixassem de seguir normalmente com a vida só porque alguém morreu.
Na saída foi esquisito não fazer o caminho de sempre, até cheguei a ficar alguns minutos no ponto de ônibus antes de me tocar que eu meio que morava no apartamento do meu pai, bem ali no centro. De manhã, quando meu pai saiu primeiro que eu, imaginei que tinha ido trabalhar, mas quando cheguei em seu apartamento, vi que ele teve sim muito trabalho, mas não na empresa. A maioria das minhas coisas ainda estavam em caixas, mas o meu antigo quarto basicamente havia mudado de lugar. Não haviam as estrelas grudadas no teto que brilhavam no escuro, não havia riscos de unha esmaltada na parede e obviamente não havia meu banheiro com banheira, mas ainda era meu quarto. Ele até tinha pendurado a cortina preta com blackout e arrumou minha cama do jeitinho que eu tinha deixado no dia anterior, com minha colcha de constelação. Meu guarda roupas estava vazio, mas a cômoda havia sido transportada cheia; a tevê já estava instalada no painel fixo na parede, meu tapete estava no chão, o espelho atrás da porta e tudo tinha até meu cheiro. Queria perguntar como ele fez aquilo tudo, mas meu pai não estava ali e para minha tristeza, também não havia comida e meu almoço foi resto de pizza dormida.
Eu estava de banho tomado assistindo tevê enquanto fazia anotações em meu caderno quando meu pai chegou e parecia não estar sozinho. Como eu já esperava, ele veio direto para o meu quarto e carregava mais duas caixas, eu nem sabia que tinha tanta coisa assim para fazer uma pilha de caixas no canto do quarto, onde deveria estar minha escrivaninha.
— Otávio! Eu te liguei o dia inteiro! Por que não me atendeu? — ele largou as caixas no chão com facilidade, não pareciam pesadas. Me perguntei onde estavam meus enfeites quebráveis.
— Foi mal, tava no silencioso — peguei o celular para tirar do silencioso como se fosse resolver alguma coisa. Nas notificações eu colecionava uma quantidade absurda de chamadas perdidas da minha mãe.
— Não tem nada na geladeira, Marcus! Do que você vive? Fotossíntese? — infelizmente eu conhecia aquela voz muito bem, ela já gritou muito sobre o quanto sou insuportável e birrento. Minha mãe estava na porta do meu novo quarto. — Eu posso saber por que você ignorou todas as minhas ligações e mensagens?
— Ai, por que ela tá aqui? — perguntei a meu pai, que respirou fundo; minha mãe cruzou os braços me encarando com reprovação.
— Tá vendo como ele me trata? É sobre isso que eu estava falando! Passamos quase o dia todo deixando as coisas do jeitinho que eram lá em casa, pra ele já me tacar três pedras assim que apareço!
— Que grosseria a minha! Mamãe, muito obrigada por deixar meu novo quarto a cara do antigo. É muito sensível da sua parte, ainda mais que eu nem precisaria de um novo quarto se não tivesse me expulsado do antigo. Você é minha heroína — ironizei.
— Eu não te expulsei, fiz uma sugestão para o seu bem! Mas você adora um drama e esse seu excesso de imaturidade só te faz pensar no próprio umbigo!
— Claro, eu sou o egoísta aqui!
— Não acho que seja uma boa hora para essa conversa, mas vocês têm que se resolver! Vera, Otávio tem certeza que você o odeia e a única pessoa que pode lhe provar o contrário, é você mesma.
— Você é meu filho, como pode pensar que te odeio?! — sua pergunta com rompante quase não precisava de resposta; ela foi a única a não perceber que estava sendo grossa. Encarei meu pai como se dissesse “eu não te disse?”
— Pelo jeito que me olha, que fala comigo. São só caretas e críticas. Você me exclui de tudo e sempre senti e agora tenho certeza de que nunca tive espaço dentro da nossa casa, quer dizer, sua agora. Me sinto acuado e pequeno perto de você. Eu nunca quis ser grosso com minha própria mãe, mas esse é o único tom de voz que você dirige pra mim! Toda conversa com você vira uma discussão onde você joga na minha cara todo dinheiro que gastam comigo e que eu deveria ser grato por isso, mas cuidar de mim e me comprar coisas é sua obrigação legal e com minha mesada eu não posso comprar afeição e carinho materno, então eu não tenho tudo, você não me dá tudo como costuma dizer.
— Eu… Otávio, eu… Eu sou sua mãe, você saiu de mim e eu te dei um nome, te vesti, te amamentei… Você é totalmente um pedaço meu! Eu jamais poderia te odiar!
— Mas… desde que eu comecei a andar com minhas próprias pernas, não é o que você demonstra — minha mãe me encarava com choque e indignação. — E você não me deu esse nome. Entendo que sou um pedaço de você que não gosta...
— Não fala isso, é claro que eu gosto de você! Eu tive um reflexo de maternidade diferente do padrão, mas foi o que me tornou a mulher que sou hoje, foi como aprendi a crescer. Eu sei que minha personalidade não é fácil, mas eu sempre tento ser o melhor que posso! Eu realmente acho que o melhor para você no momento é ir morar com seus irmãos, ver gente e ter novos amigos! Me desculpa se sou dura, mas não posso te criar numa bolha de amor e carinho porque o dever de uma mãe é te preparar para o mundo!
— E você não acha que o mundo já o machuca demais, Vera? Nosso filho é diferente da maioria dos garotos; ele sofre com piadinhas maldosas na escola e não é como as piadinhas comuns, ele é ameaçado na internet e já ligaram várias vezes pra gente só para dizer que qualquer dia matariam a “aberração” que nosso filho é! Ele não é bem-vindo na casa de metade das pessoas de nossas famílias, a avó materna já enviou uma carta dizendo que o odiava e o considera um lixo! Ele praticamente acabou de perder sua única melhor amiga e eu não o vi fraquejar, ainda assim Otávio sai de casa e põe a cara a tapa todo santo dia. Entendo suas intenções, mas não está fazendo isso da forma certa — aquela era a primeira vez que via meu pai ir contra minha mãe. Não vou mentir, fiquei chocado.
— Estou fazendo da forma errada?! Para você é mesmo muito fácil falar! Ser pai é sempre muito mais fácil, vocês pais não sabem o que é ter uma vida literalmente saindo de vocês e os filhos são sempre mais nosso do que de vocês! Você e Otávio se veem às vezes e têm conversas curtas, é fácil ter um bom relacionamento assim!
Percebi no olhar do meu pai que ele havia se arrependido por se impor. Ele conhecia o temperamento da minha mãe, mas pelo que eu me lembre, nunca teve que lidar com o Furacão Vera, já que tinham uma relação muito boa enquanto vivam juntos, mesmo que fosse apenas aparências.
— Marcus, você não precisa falar não, não precisa limpar bagunça e também não sente as coisas na intensidade que eu sinto! Você provavelmente não percebeu que nosso filho não está bem! O garoto mal fala há meses, dia desses chegou machucado e eu não faço ideia do que aconteceu porque ele nunca fala comigo, sempre está tudo bem, mas uma vagabundinha entrando na minha casa de madrugada e indo embora antes do meu horário de levantar, não é legal; ver Otavio abandonar seus interesses por música, fotografia e desenho para passar a tarde toda fora na casa de um colega que nunca me foi apresentado, não é legal! É muito difícil para mim ir trabalhar sem poder me comunicar com alguém que ignora minhas ligações e mensagem, nunca sei se é birra ou se alguém bateu nele, o deixou agonizando em algum canto e levou seu celular. Não espero que entendam a agonia que sinto e o quanto isso pode me afetar, mas não venha me dizer que eu estou errada! Eu sempre quero o bem do meu filho!
Ver minha mãe com a voz embargada era desconfortável, despertava algo estranho em mim que dava vontade de chorar também e ainda a abraçar. A gente nunca se abraçava, nem em meus aniversários.
— Eu tentei ser delicada ontem, não queria falar dessas coisas que me doem tanto, mas é isso! Eu não sei como me aproximar de Otavio como as mães normais, mas é obvio que não odeio esse garoto e me preocupo demais! Mariana sempre esteve do lado dele e isso podia não o defender de um agressor, mas além de eu ter pra quem ligar quando estava preocupada, ela também o dava força e confiança, o que eu não vejo mais com ele andando sempre de cabeça baixa e esse cabelo na cara. Na sua casa ele tá sempre rindo e saindo com Miguel, não bebendo as bebidas caras de Roberto e substituindo por chá e suco. Sua casa é cheia de animação, tem amigos entrando e saindo e a minha é uma caixa de lembranças e eu morro de medo que essas lembranças acabem matando o meu filho! Você não se lembra do que aconteceu no natal?!
Tenho que admitir, talvez eu não seja um interlocutor muito confiável e minha mãe, nem tão vilã assim.
