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Sempre tive muitos problemas para dormir, na verdade problemas que ganhei de brinde após um trauma de infância. Após a morte de Mariana, minha insônia ficou tremenda, mas de início não quis falar sobre aquilo com minha mãe e ao invés de me medicar de forma certa, comecei a encher a cara de antialérgico, o substituindo posteriormente por álcool. Roberto é um apreciador de bebidas quentes e tinha um acervo gigante, ele mal tocava nos envelhecidos e eram esses que eu bebia. Apesar de algumas daquelas bebidas custarem mais que um salário mínimo, todas pareciam ter o mesmo gosto pra mim, gosto forte e amargo de tristeza.
Dois dias antes do natal, na festa de despedida do segundo ano, acabei chorando pela primeira vez e descarregando o peso que carregava, mas não foi o suficiente. Minha mãe cancelou nossa viagem de natal para a Bahia e tivemos uma ceia em casa mesmo, junto com a família de Mari, como fazíamos sempre há alguns anos. Foi o pior natal da minha vida e quando a festa acabou, estava muito atordoado e peguei mais uma das garrafas de Roberto; no mês anterior minha mãe havia conseguido — clandestinamente — o receituário que me permitia retomar o uso do remédio que tomava para dormir durante a época em que tive episódios de ataques de pânico e naquela noite, na madrugada do dia 25 de dezembro, cogitei misturar aquelas duas drogas para dormir e nunca mais acordar, mas minha mãe acabou aparecendo no meu quarto com um prato de rabanada.
Ela só se sentou do meu lado sem dizer nada ou questionar a bebida, apenas colocou o prato entre a gente e comemos todas as 15 rabanadas em silêncio, comi a maior parte apesar de estar cheio. Quando ela se levantou para ir embora, levou a garrafa junto. A única coisa que minha mãe me disse foi um “Deus te abençoe” e por algum motivo, quando fiquei novamente sozinho em meu quarto, comecei a chorar. Foi como passei meu natal, em meu quarto chorando.
Não me culpo por não reparar que as comidas levadas até meu quarto com um curto “experimenta” dito com voz fria, minhas roupas dobradas sobre a cama ao invés do cesto para que eu dobrasse no meio do quarto e as minhas comidas prediletas sendo preparadas com frequência, eram a forma da minha mãe de demonstrar algum tipo de afeto; mas ainda assim me senti mal vendo ela ali na minha frente, quase chorando por achar que se esforçava e ninguém percebia esse esforço. Minha avó havia criado um monstro, minha mãe não sabia expressar o carinho fraterno porque nem o conhecia.
— Eu estava aprendendo a andar de skate com um colega, por isso cheguei machucado dia desses — comecei meio sem saber o que falar. — Samantha não é uma vadia, na verdade a senhora adora ela, é a amiga baixinha da Mari que vinha fazer sua sobrancelha; eu venho passando tempo na casa do Gustavo, você também o conhece. Me desculpa não atender suas ligações, na maioria das vezes não estou ignorando, meu celular quase sempre está sem bateria ou no silencioso. Eu não queria preocupar você — “mas não estaria preocupada se me desse abertura para a gente conversar” gostaria de completar, mas não era hora de ser escroto, mesmo que aquilo fosse verdade. — Eu não estou mesmo bem, mas estou lidando com a situação. Não estou sozinho, Mariana se foi e isso vai doer por muito tempo, mas eu ainda tenho amigos. Não sei se vou voltar a ser exatamente como eu era com ela, mas não me falta confiança. Eu sei que quase fiz merda no natal, mas eu tô bem, de verdade.
— Bom, é isso! Acho que a gente tem que conversar mais! — meu pai parecia desesperado. — Vou pedir um almoço, a gente se senta e conversa. Quem é Guilherme e Gustavo? Não são os dois encrenqueiros do clubinho da Poly, são?
— Sim, mas eles são gente boa agora.
— Eu tenho que ir, já atrasei muita coisa e ainda tenho que treinar Patrícia; vou me afastar no sétimo mês de gestação e ela vai ficar no meu lugar — ela disse em cima da minha resposta para meu pai, se recompondo como a mulher fria que era ou tentava ser. Não voltamos a nos falar naquela semana.
Após me ajudar com a arrumação de meu quarto, meu pai se preparou para voltar para Jardim; minha irmãzinha tinha uma apresentação de dança na sexta. Me lembrei de Samantha assim que me despedi de meu pai e liguei conforme ela havia pedido de manhã. Com meu novo endereço em mãos, Samantha chegou uns quarenta minutos depois, me surpreendi por ela estar bonita pois já fazia um tempo que ela não se vestia com roupas sexys ou agia de forma provocadora em nossos encontros. Nossos programas estavam até brochantes demais.
— Então você está morando sozinho agora? — ela entrou no apartamento olhando para sua volta. Estava tudo limpinho ainda. Sem que eu tivesse que pedir e mesmo que não fosse regra ali, Samantha deixou os tênis logo na entrada.
— Não, meu pai vai estar aqui toda semana, mas não todos os dias. Hoje a casa tá livre.
— Então a gente pode ficar na sala?
— Na sala? — perguntei espantado. Não gostava da ideia de transar num sofá onde várias pessoas já sentaram a bunda com roupa de rua. Sabe-se lá quem meu pai já trouxe para o apartamento.
— A tevê é maior que a sua, é melhor para assistir. Não viu GOT sem mim, né? — Samantha ergueu uma sobrancelha; elas eram grossas, porém bem feitas e delineadas. Para ela era importante estar sempre com a sobrancelha bonita, pois era o que fazia para ganhar dinheiro; Samantha já trabalhou junto de Mariana em sua própria casa; Mariana fazia unhas e ela sobrancelha, tinham até um perfil no Instagram para divulgar os trabalhos muito bem feitos.
— Não — achava a série horrível e só assistia com ela obrigado, utilizando das várias cenas sexuais para abandonar os episódios e ir para a pegação.
— Trouxe meu sanduiche natural e suco de uva com pedacinhos, daquele que minha mãe faz em casa. Vou colocar o suco na geladeira um pouco. — Samantha largou sua mochila no chão e lavou as mãos na pia da cozinha com detergente antes de tirar as coisas da sua mochila para guardar na geladeira. Gostava do quanto ela agia para me deixar relaxado, mesmo não estando na casa da minha mãe. — Você não come não, é? Essa geladeira tá pior que a minha em fim de mês!
— Me mudei ontem, não tive tempo de comprar nada.
— A gente pode ir agora, se você quiser. Eu sei como fazer uma boa compra sem pegar porcaria; a gente precisa ser a mãe quando os pais viram adolescentes. Te falei que minha mãe fez uma tatuagem?! — com as coisas já guardadas na geladeira. Samantha se virou para mim com uma mão na cintura. Não consegui não a admirar.
Samantha tem uma beleza que chama atenção, com sua pele morena, olhos verdes e cabelo cacheado longo e castanho. Seu corpo também é muito bonito, apesar de que ela cismava que parecia a letra P por ter muito peito. Me lembro que as garotas não gostavam de Samantha quando entramos no Santa Cecilia no sexto ano; usavam como pretexto que ela era metida, mas estava implícito que era a rivalidade feminina falando, já que Samantha já tinha o corpo desenvolvido naquela idade bem quando os garotos começam a reparar em garotas e também tinha o sotaque carioca que chamava atenção. Por ela ser nova na cidade e muito bonita, toda a atenção masculina e lésbica ia para ela, motivo para as garotas a exilarem.
Hoje em dia ela tem suas amigas, mas Mariana foi a primeira que se aproximou dela, até me lembro de também não gostar muito de Samantha pois com ela Mariana fazia programas que não rolariam comigo na época por ainda ser muito inseguro com a maneira que os outros me viam, mas com o passar do tempo até que nos demos bem até demais, porém nossos encontros sozinhos nunca eram para conversar, o que tinha mudado drasticamente naquela época; Samantha até tinha começado a falar de seus crushes comigo, o que na verdade não me incomodava pois nunca quis exclusividade, mas ainda era estranho.
— Acha mesmo que podendo ficar com uma gostosa dessas sozinho em casa, vou querer ir ao mercado? — me aproximei de Samantha que não recuou quando a beijei, ela sempre deixava que eu fizesse tudo, mas daquela vez foi diferente. Nós nem saímos do beijo; Samantha recuou quando comecei a beijar seu pescoço.
— Para, que coisa! — Samantha me empurrou levemente, era quase como se não quisesse me afastar de verdade. Mas eu entendia o que uma negativa significava e jamais faria algo após um não. Minha mãe me criou um fodido, mas um fodido respeitoso.
— O que foi?
— Essa coisa me incomoda! Você nunca mais falou comigo quando me vê na rua ou escola, sou sempre eu quem vai atrás, daí quando estamos sozinhos, você não espera um segundo para me atacar como se eu fosse um banquete!
— Como assim eu não falo com você? Nos falamos direto!
— Uma ova! A gente fazia um monte de coisa legal e agora você só anda com os meninos, me ignora completamente e parece totalmente entediado quando não está com a cara entre minhas pernas!
— Foi mal! É que eu ando muito na merda ultimamente.
— Eu sei, também estou! Minha melhor amiga e socia morreu e meu único vinculo que eu achava ter uma conexão feito a que tinha com ela, me vê como uma boneca sexual! — foi só naquele momento que me toquei do que estava acontecendo.
Meu pensamento de que era o único melhor amigo de Mariana e que era o único que estava sofrendo, me fez esquecer de Samantha, mesmo ela estando tão perto, as vezes perto até demais. Nossos encontros nas férias não foram como os de costume, eu não entrava em sua casa escondido, nos pegávamos e eu ia embora; nossos programas naquela época envolviam filmes, lanches e eu até pensei que ela pudesse estar se apegando a mim, mas era apenas uma forma de ainda estar próxima da sua também melhor amiga, já que antes tudo que faziam, eu também estava junto. Me senti babaca por ter negado seus últimos convites de ir até sua casa, imaginando que ela queria algo perto de um relacionamento.
