
Resumo
A vida é inconstante. Ninguém de fato sabe o dia de amanhã, mas isso não impede que o planejemos, a gente vive pra isso, pelo futuro...e é simplesmente uma merda quando essa porra dá errado. Chamam pessoas sem planejamento de vida de inconsequentes, mas tendo em conta que exatamente tudo pode virar nada num estalar de dedos, não está correto quem a vive da melhor forma possível?! Eu gostaria de dizer que após perceber que a vida é um sopro me tornei uma dessas pessoas, mas eu estaria mentindo, apesar de que quase todo mundo me considera inconsequente. Se você está aqui, provavelmente está entre as pessoas que me odeiam. Eu entendo você, de verdade, sou uma pessoa insuportável! Mas provavelmente você me odeia pelo motivo errado e eu não gosto disso! Esse relato é sobre como quase matei alguém e eu sei que vai parecer idiota, mas estou aqui para te provar que apesar de tudo, sou completamente inocente!
1
Dependência emocional é uma das piores merdas do mundo. Sempre fui a pessoa que criticava mentalmente pessoas super abaladas por conta de fim de namoro e se humilhando por isso, nem sei dizer quantas vezes já virei para minha melhor amiga simplesmente para soltar um desagradável “não acredito que você está fazendo isso por uma pica”, porque para mim, relações românticas adolescentes estavam estritamente ligadas à sexo e tenho certeza que a maioria dos adolescentes também pensam assim; quem é que quer encontrar sua alma gêmea aos 17 e não provar no mínimo uns oito beijos diferentes antes de acabar preso por anos num casamento monogâmico?
Por nunca ter me apaixonado, sempre me considerei uma pessoa autossuficiente; sabe, eu facilmente seria fotografado indo ao cinema ou à praça de alimentação sozinho e seria postado com uma frase inspiradora no twitter de alguma adolescente militante de apartamento. Mas na verdade eu estava longe de ser autossuficiente e descobri isso da pior maneira possível.
Era um domingo de julho de 2018, especificamente dia 29. Estava com minha família materna numa granja alugada pela minha mãe para comemorarmos seu aniversário, que tinha sido quatro dias antes. Todos nós havíamos chegado na sexta feira, os parentes da minha mãe de ônibus fretado vindos de Jardim, cidade onde ela nasceu. Foi um fim de semana infernal com todas aquelas crianças e tios inconvenientes, mas no domingo eu estava até que contente, principalmente no fim de festa e não só porque estava perto daquela reunião acabar, mas também porque bêbados são um ótimo entretenimento, ainda mais tias velhas. Eu estava numa espreguiçadeira na beira da piscina, era fim de tarde e enquanto o pessoal começava a limpar as coisas, eu observava tia Marisa dançar Na Boquinha Da Garrafa. Eu ria feito o idiota que sou, quando um de meus primos se aproximou, se chamava Lucas ou Luan, para mim não fazia diferença; odiava aquela parte da minha família.
— Você ainda toma aqueles remédios de doido? — aquele garoto (não gosto de admitir, mas muito parecido comigo) não havia dirigido uma palavra à mim o fim de semana todo, mas abriu a boca para me ofender sem mais nem menos. O olhei com o que tia Julia chamava de olhar de “dono do mundo”, mas era puro desdém. — Zolpidem, sei lá, Rivotril?
— Eu responderia apenas um: vá se foder. Mas como estou de bom humor: por que quer saber?
— Vi na internet que é alucinógeno, queria tirar uma brisa!
— Eu volto então para minha primeira opção de resposta: vá se foder! Tu tem quantos anos, moleque? É filho de quem? Vou contar pra sua mãe!
Minha resposta foi o suficiente para despachar o garoto de perto de mim, mas não pude voltar minha atenção para tia Marisa, pois ela terminou com o show para comer churrasco. Um de meus primos tentava assar toda a carne que sobrou simplesmente porque não queria que uma de minhas primas levasse para a casa, já que ela não tinha ajudado a pagar nem o frete do ônibus. Naquele momento decidi pegar meu celular para mandar mensagem para Mariana; ela já não me respondia há algumas horas por conta de estar num passeio com o namorado, mas eu continuava enviando fotos e textos mesmo assim. No instante em que peguei meu celular, recebi uma chamada de Yara, mãe de Mari.
— Tia, a Mari não tá comigo hoje, esqueceu? — falei assim que aceitei a chamada, ela só me ligava quando Mariana lhe dava perdidos, mas naquele dia não tinha como eu a defender e ela nem estava de fuga.
— Eu sei, meu filho — ela respondeu com a voz chorosa. Meu peito se apertou no mesmo instante — Mariana sofreu um acidente, Pietro falou que não foi nada muito grave, mas ela tá inconsciente. Tô indo pra emergência de Santa Lúcia agora, se também puder vir para me acompanhar... preciso de um apoio agora.
Mariana, minha melhor amiga, acabou morrendo nas férias escolares de julho de 2018 num acidente de carro. Ela estava com Pietro, seu então namorado e voltavam de um fim de semana em uma chácara com os amigos dele; eu também iria para fugir daquela reunião de família, mas acabei desmarcando pois me lembrei que não suportava os amigos do garoto. Os dois não estavam bêbados nem nada, mas havia outro irresponsável no trânsito e o imbecil bateu neles, Mariana estava sem o cinto de segurança e o impacto da batida fez seu corpo voar no painel do carro. Pietro contou que a batida nem foi tão feia, ela parecia bem apesar do sangramento do nariz e até estava consciente quando o motorista do outro carro prestou socorro, mas no caminho até o pronto socorro ela desmaiou e não acordou mais, teve traumatismo craniano e morte cerebral comprovada dois dias depois, mas considero que tudo aconteceu ainda no dia 29.
Mari não estava de bem comigo em seus últimos momentos, fazíamos tudo juntos e ela ficou irritada quando não quis ir àquela festa e no meio da discussão, eu disse que não tínhamos nascido grudados; suas últimas palavras direcionadas a mim tinham sido exatos “vá se foder, seu merda” e as minhas para ela um “depois de você”. Até conversamos depois por mensagem, mas não era a mesma coisa.
Não tive coragem de visitá-la na UTI do hospital mesmo estando lá com sua mãe, pois apesar de saber que muitas pessoas sobreviviam à um traumatismo craniano, não tinha esperança alguma que ela seria uma dessas pessoas, nem me surpreendi quando Yara me ligou na madrugada do dia primeiro de agosto. Fui a primeira pessoa para quem ela ligou ao saber da notícia; às 4:30 de primeiro de agosto de 2018, minha amiga foi dada como morta.
Sempre achei engraçado quando minha avó paterna dizia com indignação, que o jovem acha que é imortal. Ela sempre dizia isso com exagero quando alguém ia tomar banho após terminar de comer, saia sem casaco ou até abria a geladeira com o corpo quente, mas ela meio que tinha razão. Um jovem mentalmente estável não se imagina morrendo e muito menos imagina a morte das pessoas da sua idade que conhece; na verdade a gente sempre está planejando algo para um futuro completamente distante. Planejamos nome de futuros filhos, curso de faculdade e até uma viagem impossível pois não há limites para a imaginação.
Naquela época, meio que lidava diariamente com a morte. Meu padrasto é dono da única funerária da cidade e, desde que ele e minha mãe estão juntos, sempre pude entrar e sair de lá e por um tempo até tive interesse pela tanotopraxia, que passou mais rápido que minha vontade de ser famoso. Já vi gente morta de todo tipo: magro, gordo, obeso, anoréxico, branco, preto, amarelo..., mas nada abalava tanto quanto quando o corpo era de uma pessoa jovem ou criança. Normalmente a tristeza passava quando liberávamos o corpo para ser enterrado no cemitério, mas daquela vez não seria assim, a tristeza não passaria tão rápido e eu nem achava que chegaria a passar.
Por conta da funerária de Roberto, já presenciei diversos tipos de luto, mas nunca tinha vivido um. Nunca tinha imaginado como seria minha reação quando alguém querido por mim morresse, afinal, jovens se acham imortais; porém nunca pensei também que eu ficaria apenas... dormente.
Não chorei quando Yara me ligou dizendo que a filha havia falecido, não chorei enquanto ajudava a família da minha melhor amiga com todas as coisas que eram necessárias quando alguém morria e também não chorei quando vi minha melhor amiga pela última vez antes de fecharem seu caixão e nem quando a colocaram num buraco e jogaram terra. A ficha demorou para cair e demorou para um caralho. Fiquei num modo zumbi por meses, apenas fazendo tudo no piloto automático. Passei nas provas finais com notas excelentes, terminei meu cursinho de inglês da mesma maneira e nos meus momentos em que normalmente passaria com Mariana, li diversos livros; parecia que estava tudo normal, até chegar o dia da festa de fim de ano da minha turma.
A festa tinha sido planejada para comemorar o feito de irmos para o terceiro ano com a mesma turma que entramos na escola no sexto ano, mas pela primeira vez não estávamos mais completos, porém não deu tempo de cancelar nada pois havíamos gastado bastante dinheiro com tudo e não daria para ressarcir. Eu continuei bem enquanto cada aluno da turma homenageou minha melhor amiga antes da festa começar e também achei que estava bem quando fui pegar o primeiro turno de fritura na cozinha junto de Gustavo. Ficaríamos do começo da festa até metade dela fritando os salgados e montando os cachorros quentes e seriamos substituídos por Camilly e Raquel no meio da festa. Nós nos trocamos com as roupas que havíamos separado para não ficarmos com cheiro de fritura e pra minha surpresa, mesmo estando junto de Gustavo, fizemos um serviço silencioso e sem nenhuma discussão.
Da cozinha conseguíamos ouvir todas as músicas e comer as comidas então não era como se não estivéssemos participando da festa pois vira e mexe alguém entrava na cozinha com alguma novidade ou tirando fotos, mas eu não conseguia curtir nada. Não chorei com a morte de Mariana, mas tristeza não era a única emoção que não expressei; eu também não sorria, todas as minhas conversas eram superficiais e eu falava o mínimo possível, completamente um robô programado e com algumas necessidades orgânicas. Mas tudo virou um inferno na cozinha industrial daquele salão de festas.
Eu havia acabado de retirar uma leva de coxinhas de dentro do óleo quente quando Born To Die começou a tocar. Mariana, obviamente ainda em vida, tinha sido a responsável pela playlist com o argumento de que a festa viraria bagunça se além de não haver um Dj, todo mundo pudesse colocar a música que quisesse. A festa se iniciou às 19:00 e iria até as 23:00 e ela havia selecionado músicas que durariam a festa toda, utilizando do gosto da turma inteira para que todos se divertissem, até os indies. Naquele momento eu me lembrei da gente descobrindo Lana Del Rey juntos há alguns anos quando ainda desenvolvíamos nossa personalidade à partir de artistas ou séries e pela primeira vez em semanas, me dei conta de que nunca mais veria minha amiga, que nunca mais descobriríamos juntos um artista ou série nova. Naquele momento me dei conta de que eu não tinha mais ninguém e foi como se uma barragem de emoções fosse aberta.
— Você tá bem? — Gustavo perguntou quando deixei a escumadeira que tinha na mão, cair. As lágrimas caiam sem permissão alguma e parecia que eu tinha desaprendido a respirar. Nem tentei responder à pergunta de Gustavo pois a resposta era óbvia.
A minha visão estava completamente embaçada por conta das lagrimas quando fui delicadamente arrastado para fora da cozinha pela entrada e saída de funcionários. Não percebi que Gustavo havia apagado o fogão e pego nossas coisas, também não me importei de estar no ponto de ônibus chorando feito bebê enquanto um colega de turma do qual nunca fui próximo, estava do meu lado esperando um ônibus passar. Gustavo acabou pedindo um carro até sua casa pois a única coisa que consegui dizer enquanto soluçava feito criança que apanhou da mãe, é que não queria ver a minha naquele momento.
