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— Eu sinto muito — ele totalmente também não sabia como lidar com aquela situação. Às vezes eu queria que meus pais se odiassem; a adoração que meu pai sentia pela minha mãe e o medo de a enfrentar mesmo quando estava completamente errada, me dava nos nervos.
— Tem poucos meses que minha melhor amiga morreu, eu passava metade do meu tempo com ela e eu tive que mudar toda a minha rotina, eu não consigo nem me sentar na frente da tevê para assistir uma série sozinho porque me lembra dela e um vazio enorme cresce dentro de mim. Eu não preciso de mais mudanças, eu faço parecer que estou lidando bem, mas não estou! Eu nem consigo dormir por mais de duas horas por dia! Não sei porque do dia para a noite a minha existência a incomoda tanto a ponto de precisar que eu mude de cidade pra se sentir bem, mas o que faz bem para ela, não faz para mim!
— Você pode ficar no meu apartamento enquanto se resolve. Não vou deixar de te dar assistência financeira nem nada, mas eu não acho que você está pronto pra isso.
— Eu acho que não tenho opção.
— Eu só quero que fique claro que você pode ir para a nossa casa em Jardim quando quiser, seus irmãos e Mayara te adoram e vai ser muito bem recebido.
— Eu sei.
— Amanhã a gente compra algumas coisas para colocar no quarto vazio pra você, hoje pode dormir na minha cama.
— E você vai dormir onde?
— Na cama também! Você sabia que meus irmãos e eu...
— Dormiam juntos numa cama de solteiro, fazia sol ou chuva! — o interrompi já sabendo de cor a história. Meu pai era do tipo que tinha histórias sofridas de infância.
Ele tem sete irmãos e é o irmão mais novo de três meninos e tinha histórias sobre nunca ter tido uma roupa nova, mochila ou tênis, tudo era dos irmãos mais velhos e só meu tio Mauro ganhava roupas novas, mas essas vinham de bazar. Eles dividiam até um pão de sal e os três trabalhavam desde sempre; meu pai fugia de casa para estudar já que meu falecido avô achava um desperdício de tempo, mas minha avó matriculou todos as escondidas, porém meu pai foi o único que não abandonou a escola, sua formatura no ensino médio foi emocionante para a família toda e a primeira vez que minha avó viajou, já que ele se formou aqui em Capital. Eu entendia a gratidão que meu pai tinha pela minha mãe; ela veio de uma família classe média e quando vieram para Capital, ela era a única que tinha algum dinheiro, meu pai era só um adolescente de dezesseis anos com um pé de meia dos bicos que fazia em qualquer área que precisassem; também foi minha mãe que o encorajou a fazer faculdade e eu sei que ele sentia que sem ela, seria nada hoje em dia, já que até o curso que fez, foi escolhido por minha mãe diante das opções que sua nota no vestibular permitiu. Mas saber daquilo não dissipava minha indignação, naquela época ele não devia mais nada para minha mãe, ambos eram independentes e donos de negócios muito bem sucedidos, não devia lidar com ela como se pisasse em ovos.
Depois do meu chororô, decidimos esquecer da minha mãe e tivemos uma noite agradável na medida do possível. Ficamos na nossa área confortável que era falando sobre livros e meus irmãos, até cairmos no sono. Quando eu acordei para me arrumar para a escola, meu pai já havia saído para trabalhar, deixando apenas sua chave extra em cima da mesa da cozinha. Mesmo estando cedo, tive que me arrumar correndo para ir à escola, (que felizmente também ficava no centro) pois tinha outras coisas para resolver. Durante as férias eu até tinha me planejado para o início das aulas, mas não me lembrei de ajustar o despertador. Eu nem pensei na possibilidade de acordar tarde, já que naquela época, mal dormia há meses; depois de algum sonho esquisito, sempre acordava como se meu corpo tentasse pular da cama e não voltava a dormir; deitado com meu pai, foi a primeira vez em meses que dormi uma noite completa sem auxilio de meus hacks nada saudáveis.
Na entrada da escola, cumprimentei o porteiro, senhor Olavo, dentro da guarita; como sempre ele ouvia Agnaldo Timóteo em seu radinho e abriu um sorriso simpático e sincero ao ouvir minha saudação. Eu nunca tinha visto aquele homem triste.
— Como é que você tá, meu filho? Passou bem de férias? — ele perguntou enquanto eu revirava minha mochila a procura de meu crachá para passar pela catraca. Graças a minha mãe, minha mochila não estava tão bem organizada e até faltava algumas coisas, mas felizmente nada que me faria surtar.
— Bem. E o senhor?
— Bem também, graças a Deus! E mais uma vez, meu filho, muito obrigado pelas roupas e a cesta, você fez a alegria do natal das minhas crianças.
— Que isso! Quando tiver mais coisas eu trago pro senhor! — com a mochila aberta e todo desengonçado, passei pela catraca me despedindo de senhor Olavo antes de seguir meu caminho, fechando a mochila enquanto andava.
Ainda estava cedo para o início das aulas quando cheguei, quarenta minutos para as sete da manhã para ser mais exato; mas eu já podia entrar na escola por ser aluno do terceiro ano. O motivo pode parecer idiota para muitos, mas era um verdadeiro evento para todo aluno do Santa Cecília.
As escolas Santa Cecília sobreviviam com o dinheiro de uma frota de igrejas, era como um instituto privado pois não era da prefeitura, mas nós estudávamos de graça; os fiéis pagavam para elas estarem de pé e a única coisa que saia de nossos bolsos eram os uniformes e material didático. Tínhamos o maior índice de alunos aprovados em universidades e institutos federais, mas só existíamos em Minas, o que por um lado era uma pena pois seria incrível se outros jovens tivessem a oportunidade de estudar numa escola tão boa, mas por outro lado era extremamente incrível: a interclasse.
Durante todo o ano todas as escolas faziam eventos para arrecadar dinheiro e com ele, pagavam excursões até a primeira Santa Cecília erguida — que felizmente era a de minha cidade — para os alunos do terceiro ano competirem no futsal a fim de ganhar as taças e cinco pontos em todas as matérias.
A coisa toda era muito bem organizada e planejada o ano todo. Logo no primeiro mês de aula começava o recrutamento dos times, o feminino e masculino. Só pessoas do terceiro ano podiam se candidatar e passavam por vários testes de capacidade e condicionamento para entrar no time principal, que jogava contra os alunos das outras escolas durante a primeira semana de férias de julho. Parecia ridículo ficar indo à escola durante cinco dias das nossas duas semanas de férias, mas eu só perdia aquele evento se fosse obrigado por meu pai a não estar na cidade. Além de ser uma ótima competição, ainda conhecia pessoas novas com as quais eu poderia ficar e nunca mais ver.
Os responsáveis por comandar e recrutar o time eram os capitães da equipe do ano anterior, tudo bem amador e por pura diversão apesar de ser levado muito a sério por todos. Naquele momento, a quadra da escola havia virado a sala de inscrição para tentar uma vaga no time da interclasse, mas eu não precisava me preocupar com isso, sim em chegar o mais rápido possível em minha sala de aula, que achei com facilidade no mural de avisos pois estava na primeira lista. Não havia muita gente com o nome iniciado com a letra O na sala e o meu se destacou; sem ler o nome de meus colegas de turma pois confiava que a escola não nos separaria no último ano, corri até a sala 12; novamente estávamos na mesma sala no primeiro andar.
Em sala de aula, Gustavo já estava presente e até um pouco impaciente pois eu não era o único atrasado para a nossa reunião. Nós tínhamos um grupo que era nossa espécie de grêmio estudantil denominado Armada; seu nome inicial já fora mais legal, mas acabou se tornando apenas Armada, pois as vezes é difícil separar uma obra do autor. Armada nasceu no sétimo ano quando a escola abriu um grêmio estudantil. Como sabíamos que aquele grêmio nunca seria tão legal quanto imaginávamos, acabamos montando um tipo de grêmio estudantil voltado apenas para nossa classe.
No começo o presidente e todo o resto da Armada eram decididos por uma votação no começo do ano letivo, mas dois anos depois viramos uma ditadura e vetamos o voto; na verdade só entramos num consenso de que os membros que ganharam as eleições até ali, eram capazes o suficiente para carregarem a Armada durante todo o ensino médio. A formação original da Armada, naquele ano infelizmente desfalcada, era formada por mim, Mari, Raquel, Camilly e Gustavo. Juntos planejávamos cafés da manhã, gincanas, festas, passeios e um jeito de fazer tudo isso sem tirar dinheiro do nosso bolso, já que muitos dos alunos não tinham a melhor condição financeira.
Quando iniciamos a Armada, nosso dinheiro cabia facilmente numa caixa de sapatos da Adidas personalizada por Mari com fitas adesivas coloridas, mas com o tempo, depois de tantos eventos e vendas de doces e bugigangas, guardávamos na conta poupança de Camilly, a tesoureira; éramos tão bons naquilo que no nono ano já tínhamos dinheiro o suficiente para a nossa formatura do terceirão, que estava planejada nos mínimos detalhes. Por conta dos desencontros que o grupo começou a sofrer no segundo ano por conta das responsabilidades fora da escola depois do horário letivo, Gustavo decidiu que algumas de nossas reuniões naquele ano, seriam na escola bem cedinho.
— Porra, mano! As vezes simplesmente não dá para contar com vocês!
— Tô aqui, não tô? — tentei agir normalmente quando joguei minha mochila em cima da minha carteira antes de caminhar até Gustavo, mas aquilo ainda me afetava. Por estudarmos juntos desde sempre, mantínhamos um mapa de sala e nele, Mariana se sentava na minha frente. Era doloroso saber que a carteira ficaria vazia e que ela nunca mais iria chegar atrasada, resmungando que não deu tempo de arrumar o cabelo enquanto comia algum salgado frito mesmo sendo muito cedo.
— Camilly sempre inventa que a gente quer mandar em tudo por sermos presidente e vice, mas me fala quando foi que ela participou ativamente de uma reunião? Raquel é outra sonsa! Já inscrevi todos os caras que queriam, na interclasse, levantei mais cedo ainda só pra isso! Deixei de fazer meus exercícios matinais pra ficar plantado aqui igual um imbecil, sozinho!
— Não sei das bonitinhas, mas meu atraso é muito justificável! Minha mãe me expulsou de casa, sabia?! Acabei esquecendo de colocar despertador e acordei tarde.
— Você tá bem? Dormiu onde? — sua feição irritada sumiu em segundos.
— No apartamento do meu pai, tá tudo de boa! Mas me fala aí, por que está tão puto? A reunião é para falar sobre camisetas do terceirão, apenas. E a gente vai usar essas camisas de forma obrigatória só no ensaio de fotos pra formatura, então tá de boa, não é nada tão urgente!
— Eu não gosto quando furam comigo!
— Tá! Agora fala aí o que aconteceu de verdade! Eu te conheço e você não tá puto com isso! Eu sou a pessoa que fica puta com atrasos, não você!
Era engraçado olhar para Gustavo e conseguir distinguir algo daquele tipo, ainda mais que antes da morte de Mariana, eu mal conversava com ele fora da Armada e nos eventos dela, onde majoritariamente a gente discutia; e falando em discussão, nossa relação era assim desde sempre. Capital não é muito grande e só há sete escolas de ensino básico onde estudar e só duas delas atendem ao primário, foi na Criança Inocente que nosso surto do ódio começou, no jardim de infância; todo dia era uma confusão diferente e até chegaram a nos separar de turma, mas o pega pau acontecia até no intervalo. No sexto ano, participamos do vestibulinho de Santa Cecília, passamos e acabamos na mesma turma que estamos hoje em dia, mas nossa guerra de ódio intenso se cessou no oitavo ano.
— Eu não sei se falei com você sobre a Michele.
— Sim, ela entrou em contato contigo para doar algumas roupas velhas e depois de entregar as roupas, te me mandou mensagem puxando assunto e começaram a conversar — o interrompi me sentando na mesa ao lado da sua.
— Daí hoje de manhã quando eu desci do ônibus no centro, ela estava no ponto do outro lado da rua e acenou pra mim. Meu cérebro bugou e quando fui acenar de volta, mandei o dedo do meio pra ela.
Eu até tentei, mas não consegui conter a risada. Gustavo escondeu o rosto com as mãos enquanto eu me curvava de tanto rir da situação.
— Se você quer saber, esse é um ótimo início de uma história de “como conheci sua mãe”.
— Ótima porque não aconteceu com você!
— É só mandar uma mensagem para ela se explicando, você que tá complicando uma coisa tão boba!
— Eu não vou fazer isso! Eu sabia que ela era areia demais para meu caminhãozinho mesmo.
— Só porque ela é maior de idade?
— Estamos em fases completamente diferentes da vida, nunca daríamos certo.
— Nisso eu concordo, mas ela é maior gata, tá fazendo a faculdade que você quer cursar e até é comedora de mato! Você não pode deixar a chance de dar umas beiçadas nela, passar! Me dá esse celular!
— Cai fora! Vou lidar com isso do meu jeito!
— Nesse caso, então você vai só... Não lidar?
— Talvez! Mas não venha para o meu lado com essa de que sabe lidar com relacionamentos.
— E nem quero saber! Mas sei como fazer uma gostosa ficar na minha!
— Eu também!
— Ah, é? Mandando o dedo do meio pra ela?
— Vai se foder, imbecil!
Nossa discussão se cessou quando uma garota entrou em nossa turma. A garota era asiática, tinha o cabelo preto cortado na altura do ombro e uma franja quase tapando os olhos castanho escuro; ela também era baixinha e magra; além do uniforme ela usava um tênis da Nike colorido e muitas pulseiras de borracha daquelas que foram febre em meados de 2009 e foram proibidas nas escolas pois se popularizaram como pulseiras do sexo. Ela era tão magrinha e o rosto com traços tão delicados, que imaginei que fosse novata do primeiro ano perdida, nem me tocando que ela não estaria dentro da escola se fosse.
— Você deve ser a Manuela, certo? — Gustavo se levantou para receber a garota sem parecer nada irritado. Fiquei confuso enquanto a garota abriu um sorriso para meu colega de classe e afirmou ser Manuela. Em meus anos naquela escola, nunca havia entrado novato na turma no terceiro ano pois Santa Cecilia só abria vestibulinho para o sexto e primeiro ano — Sou o Gustavo, representante de turma; aquele ali é o Otávio, vice representante.
— E fizeram sala só para me receber? — sua voz era grave e aveludada, não combinava nada com sua aparência delicada.
— A gente ia fazer uma reunião, mas é bom que estejamos aqui porque a turma tem mapa de sala! Temos apenas três carteiras vazias. Você veio transferida de outra cidade ou de turma? Acho que nunca te vi por aqui.
— Cidade. Vim da Santa Cecília de Juiz de Fora.
— Maneiro! Ouvi dizer que lá é uma cidade muito boa para se fazer faculdade, tem muitas opções.
— Pois é! Até cheguei a fazer o PISM, a prova de lá para entrar na federal. Não sei como fico esse ano, se vou ou não até lá para concluir as etapas ou tentar algo novo por aqui!
— Independente do que escolher, certamente estamos todos no páreo para conseguir uma bolsa! Mas voltando pra cá, os lugares disponíveis pra você sentar são aqueles dois na frente e aquele no fundo, antes da última carteira perto da janela. — Me incomodou bastante ver Gustavo oferecer o lugar de Mariana para aquela estranha. Para meu azar foi o que ela escolheu.
Como se já não bastasse roubar o lugar de minha melhor amiga, quando Camilly e Raquel apareceram, dez minutos antes de liberarem a entrada de todos os alunos, Manuela se intrometeu dando pitaco sobre nossa camisa personalizada e ninguém abriu a boca para cortá-la.
