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Após terminar de fazer minha mala, fui com meu pai para seu pequeno apartamento no centro, onde ele não passava muito tempo e isso era visível pelo acumulo de poeira. Organização nunca foi seu forte e minha mãe vivia esbravejando que era dele que herdei minha “porquisse”, apesar de que para qualquer pessoa normal, eu tinha higiene até demais. Tudo cheirava a poeira e parecia escuro demais; para melhorar o visual, a sua mala estava desfeita bem na mesa de jantar.
Na cozinha a geladeira estava vazia, o fogão intocado e o micro-ondas com sujeira velha; no quarto a cama estava desarrumada e o único local verdadeiramente limpo da casa, era o banheiro. Depois de abrir a janela da sala, me sentei no sofá empoeirado sentindo meu nariz arder, o chão do apartamento estava grudento. quando nos encontrávamos aqui em Capital, era sempre em lanchonetes, restaurantes ou locais bonitos e naquele momento agradeci por isso, não seríamos tão próximos se passássemos tempo ali. Minha mãe me ligou e pela sétima vez rejeitei a ligação, fiz o mesmo com o celular do meu pai que ainda não havia subido, ele tinha me deixado no hall do prédio com sua chave e foi comprar pizza, seu celular já estava em cima do sofá quando cheguei; mesmo tenho filhos e esposa em outra cidade que poderiam precisar entrar em contato em uma emergência, meu pai quase sempre saia sem o celular. Eu podia não ter herdado a porquisse dele, mas nesse aspecto, era tão esquecido quanto.
Enquanto o aguardava, ajeitei a casa o máximo que conseguia tendo como produtos de limpeza apenas detergente e desinfetante; os panos de chão e prato da área de serviço estavam intocados, do jeito que organizamos quando ele comprou o apartamento em 2017 para fugir das diárias de um quarto de hotel e ter um lugar para guardar suas coisas. Ao meu ver, o apartamento era apenas um gasto já que havia os custos de condomínio e tudo mais e ele não deixava nada ali, mas se ele tinha dinheiro para gastar, que o fizesse! Minha pensão e mesada ainda estavam em conta todo dia primeiro do mês.
— Uau, isso aqui tá bonito! — ele disse quando voltou, enquanto colocava a garrafa de refrigerante e as caixas de pizza na mesa de jantar, naquele momento já desocupada.
— Você vive em uma lata de lixo quando vem pra cá! Não tem vergonha? — me levantei do sofá e fui até a cozinha pegar os talheres que havia lavado para a gente usar.
— Nossa, você é igualzinho a sua mãe! — aquela era a última coisa que eu gostaria de ouvir naquele dia.
— Não me ofenda assim! — eu sei que sou a cara da minha mãe, mas ter minha personalidade comparada à dela já era demais. Nos sentamos na cadeira da mesa de jantar para devorar as pizzas.
— Não fale assim, Otávio... É tão ruim ver o quanto você e sua mãe não se dão bem.
— Não é culpa minha, eu também não gosto de não me dar bem com minha própria mãe, mas ela não colabora! Agora ela quer me arrancar de tudo que eu conheço para me substituir por uma nova criança!
— Mas você também conhece tudo de Jardim.
— Não é a mesma coisa, pai. Eu cresci aqui, eu sempre estudei aqui e planejei todo o meu terceiro ano, não vou deixá-la tirar isso de mim. Se ela não quer mais viver comigo, ok! Nunca gostei de viver com ela mesmo, minha mãe é insuportável. Não acho que traição seja justificável, mas eu também iria querer outra família se minha esposa fosse como ela.
Meu pai quase engasgou com minhas palavras; sem querer eu havia tocado em seu ponto fraco e estava contente por isso, talvez eu conseguisse tirar dele coisas que nunca consegui, aquele nunca tinha sido o tema de nenhuma conversa nossa.
— Não fala isso, Otávio. A sua mãe...
— Pai, eu já tô bem velho pra você continuar com essa ladainha! Minha mãe é uma grande mulher, ergueu nossa família do chão para que você pudesse chegar onde está hoje e blá, blá, blá! Mas você a traiu e isso é um fato! Se a achasse tão perfeita, não tinha procurado a Mayara.
— Eu não procurei, Otávio.
— Ela caiu do céu? — levantei uma sobrancelha enquanto ele me olhava de cara feia.
— Depois não gosta que eu fale que é igualzinho à sua mãe!
— Depois não gosta que eu fale que todo esse elogio que direciona a ela, é ladainha!
— Quer saber, já estou cansado e odeio esse arzinho de superioridade que você olha pra mim, me colocando como um crápula destruidor de famílias!
— O quê?! — perguntei totalmente espantado.
— Eu sei que você me julga, Otávio. Não o culpo, mas também não gosto disso. Mas sim, a sua mãe não é mesmo perfeita, mas a culpa desse temperamento dela, é da sua avó! Vera foi criada no cabresto, não podia fazer nada e nem nunca teve amigas, vivia em função da mãe, que eu não preciso te dizer que é uma megera, você a conhece.
Minha avó materna é mesmo um amor, para não dizer o contrário. Ela sempre foi uma filha da puta racista e odiava que minha mãe tivesse se casado com um homem preto. Minhas lembranças de infância perto dela se resumiam a ouvir um desaforado “você deu sorte que não saiu tão queimado do forno e ainda com o cabelo bom”, e quando eu comecei a me expressar como sempre me senti, ela me desconsiderou como neto, o que na verdade foi maravilhoso pois eu odiava lhe visitar e tolerar suas visitas. Queria dizer que eu não tinha culpa da criação da minha mãe e que não merecia ser criado de forma ruim também, mas dizer que não fui bem criado seria uma mentira, afinal, estava bem ali, crescido e saudável com todas as vacinas em dia.
— Quando começamos a namorar, sempre senti que sua mãe tinha muito receio, ela não conseguia falar sobre sentimentos e sempre foi muito fechada, eu posso contar com os dedos de uma mão, quantas vezes ela disse que me amava e nem usaria todos. Mas ela demonstrava sentimento por meio de ações. Vera sempre foi muito casca grossa e quando descobriu que estava gravida de você, ficou doida, mas guardou tudo pra ela; não sei o que deu nela, mas no dia que descobriu a gravidez, terminou comigo. Me lembro como se fosse ontem: era uma sexta feira, cheguei do trabalho e minha mala estava feita na sala. Como eu iria mesmo para o aniversário do seu tio em Jardim, não achei estranho; mas daí ela terminou comigo, falou para eu não voltar nunca mais. Já estávamos brigando há alguns dias e aquilo pareceu bem definitivo pra mim, então fui para o aniversário do seu tio, solteiro. “Eu não queria ficar com ninguém, mas eu bebi igual a um filho da puta e acabei perdendo a noção. Pra falar a verdade eu nem me lembro de ter ficado com a Mayara. Só sei que uma semana depois eu voltei com a sua mãe e ela me disse que estava grávida. Eu só descobri que tinha outro filho quando Miguel tinha quatro anos”.
— Mas e a...
— Eu estou me abrindo com você, Otávio. Ao menos me julgue em silencio!
— Eu não ia te julgar, mas ok! — aproveitei a faladeira para comer pizza.
— Eu contei para sua mãe assim que soube e ela ficou possessa e com razão, enquanto ela sofria com a notícia de uma gravidez, eu estava transando com outra; deixamos de ser um casal fisicamente naquele ano, mas ela queria que você crescesse numa família estável, o que ela não teve na infância. Eu quis cuidar de vocês dois e estar presente de ambos, por isso eu viajava bastante; em 2010 a sua mãe arrumou um namorado e eu comecei a me aproximar de Mayara também, mas tínhamos o plano da família estável e eu sei que isso foi uma merda, nem Mayara ou os namorados que sua mãe teve antes de Roberto, concordaram com isso, mas era o que tínhamos; só que ficou pior depois que a Mayara engravidou de novo, comecei a passar mais tempo lá do que aqui e depois de conversarmos muito sobre o assunto por muitos meses, sua mãe e eu decidimos nos divorciar. Ela estava apaixonada por outro, eu tinha uma nova criança para cuidar e você já estava grande.
— Por que você preferiu me jogar na frente da sua outra família há anos atrás, ao invés de simplesmente ter me contado tudo dessa forma? Às vezes eu ainda sinto raiva de você por uma traição que nunca existiu.
— Na verdade eu traí sua mãe sim, mas nunca tive a intenção.
— Você não traiu, tinham terminado e você nem ao menos se lembrava do que rolou!
— Você só está falando isso porque está com raiva da sua mãe!
— Talvez — dei de ombros enquanto mordia minha pizza. — Caralho, a de frango tá muito gostosa!
— Vamos voltar ao real foco dessa história: você. Entendo que não queira vir morar comigo mesmo que a minha casa tenha lugar de sobra pra você, eu fiz seu quarto pensando no dia que a gente moraria juntos, mas você tem razão; não é mais nenhuma criança e essa decisão precisa ser totalmente sua. Mas também não acho que você deva sair da casa da sua mãe de mala e cuia e cheio de ódio. Aquela mulher ama você e só está lidando com alguns hormônios a mais.
— Pai, não é querendo ser ingrato nem nada, sei que fizeram muito por mim, mas não tenho tanta certeza assim que a minha mãe me ama. Você pode contar em uma mão quantas vezes ela já disse isso para você, mas eu nem preciso contar porque ela nunca disse pra mim. Não tô puto por me sentir rejeitado, porque eu sinto essa rejeição da parte dela há anos! Eu tô puto com aquela merda de teatro! Ela não está preocupada comigo, não perguntou se eu estava bem ou me deu um abraço nem quando a minha melhor amiga morreu; eu mal fico em casa, nunca fiquei. Sair de lá de vez não vai ser nenhum esforço e eu tenho dinheiro.
— E quanto tempo você acha que consegue viver fora de casa com seu dinheiro da poupança e sem nenhum emprego?
— Eu posso arrumar emprego, fui menor aprendiz aos quatorze e todo mundo me ama naquela loja de sapatos, eu ainda converso com a proprietária! Também fui menor aprendiz na sua empresa em duas áreas diferentes, eu tenho um currículo! E eu basicamente nunca precisei gastar o dinheiro da minha mesada, vocês me dão tudo que eu quero. Acredite, se minha poupança tivesse a permissão legal de render, eu poderia ser um jovem empresário. Consigo me virar por um tempão!
— A vida não é o mar de rosas que você pensa, amigão. Tem consciência de quanto custa seu tratamento hormonal? De quanto custa um plano médico com direito a cirurgia e internação, fora de um convênio de empregado de empresa? O odontologista que você vai trimestralmente? Acha que salário de menor aprendiz ou o mínimo, paga por isso? — ok, eu não havia pensado naquilo e muito menos estava disposto a abrir mão do meu tratamento hormonal ou do meu sorriso perfeito. — Eu quero dar para todos os meus filhos, a vida que eu nunca pude ter. A gente cria filho para o mundo e eu quero sim te ver cheio de confiança conquistando seu espaço, mas não gosto dessa ideia que você tem implantado na cabeça, de que pode tudo e sabe de tudo. Não é querer cortar suas asas, mas você precisa entender as suas limitações.
— Eu não sou assim! Eu só não quero mudar de cidade e você viu que não posso morar com minha mãe! Se isso significa não poder ir mais ao médico particular, bom, então eu madrugo na fila do SUS! Eu sacrifico o que for possível para viver aqui e em paz, sem incomodar ninguém com a minha presença. Você viu como ela falou de mim! “Você sabe que não é fácil ser a mãe de alguém como você”; se isso não é me achar a porra de um estorvo, não sei o que é! Isso dói pra caralho, pai! Me desculpa se estar sendo positivo enquanto absorvo a informação de que minha mãe definitivamente me odeia, me dá o ar de que sou alguém que pode e sabe tudo!
— Eu sinto muito que você não consiga perceber que sua mãe te ama e se importa com você, ela é mesmo uma pessoa difícil e talvez a gente tenha falhado com você enquanto trabalhávamos demais...
— Não preciso ouvir isso de você e não espero ouvir dela — o interrompi. — Não sei o que você quer de mim com essa conversa. Você disse que entende eu não querer me mudar, mas acha ou tem certeza que não posso me virar sozinho, só que sair de casa nem foi uma decisão minha! Ela não me quer lá, a minha mãe não me quer! — sem que eu ao menos me desse conta, estava chorando. Nunca curti me sentir vulnerável, mas daquela vez foi bem pior por ser perto de meu pai.
