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Por minha mãe não ser uma pessoa muito agradável, sempre passei muito tempo na casa dos outros. Na de Mariana eu até tinha parte de seu guarda roupas cheio de coisas minhas e sua mãe me tratava como um segundo filho. Não querer ficar perto da minha mãe foi um dos motivos de no dia seguinte à festa de despedida do segundo ano do meu ensino médio, eu ter continuado na casa de Gustavo mesmo já estando bem e mal tendo intimidade com ele. Eu acordei com ele me chamando para tomar café e foi um dos melhores cafés da minha vida, nunca tinha comido pão de fermentação natural antes daquele dia. Gustavo era um aprendiz de padeiro e tanto, certamente ele já tinha um lugar garantido no mundo caso a faculdade não desse certo: a padaria de seu padrinho e quem sabe, até uma própria no futuro, para vender suas coisas naturebas para outros frescos que não comem carne.
— Por que você só come coisa ruim? É autopunição? O que você fez para querer se castigar tanto? — perguntei uma vez num passeio de classe que fizemos churrasco e ele colocou coisas muito esquisitas para grelhar. Eu sei, não sou uma pessoa agradável, mas sempre posso culpar meus pais por isso.
— Você é completamente desnecessário e grosso e eu não deveria levar a sério o que você diz, mas eu escolhi essa dieta, na verdade desde muito pequeno.
— Eu lembro, te chamava de coelho! — uma vez ele me mordeu dizendo que era o que os coelhos faziam com crianças chatas.
— Enfim, quando criança, carne para mim submetia a morte e eu tinha aversão. Agora que cresci eu só não sinto vontade de comer e não faz falta no meu prato. Você nem faz ideia do quanto sua picanha parece nojenta pra mim.
Eu não gostaria, mas tive que admitir de primeira que a comida de Gustavo era uma delícia mesmo não tendo nadinha de carne, ele nem usava os substitutos de carne como soja de acompanhamento, pois não gostava mesmo de carne e não queria nada que a imitasse, então suas receitas nunca tinham algo para imitar carne; ele ainda tomava leite e comia queijo, mas os ingredientes dificilmente estavam em sua mesa. Naquele dia fiquei em sua casa até tarde da noite sem me importar de estar sendo inconveniente e ainda retornei várias vezes a ponto da casa daquele conhecido distante, se tornar um porto seguro; também culpo minha dependência emocional por isso, eu era tão carente que me escorei com tudo na primeira pessoa que me ofereceu um ombro amigo. Gustavo foi meu primeiro amigo depois de Mariana; e seu grupinho, garotos que na maioria critiquei por anos, vieram de brinde. Eu ainda me sentia putamente sozinho, a falta que Mariana faz provavelmente nunca vai ser preenchida, mas ao menos tinha com quem conversar e sair no meio de tanto ócio. Até tinha aprendido a andar de skate.
— Tu lembra da quadra do Junin? — Gustavo perguntou enquanto jogávamos videogame. Eu havia levado meu console para sua casa já fazia quase um mês. Concordei com a cabeça sem me dar conta que ele não veria nada já que estávamos olhando para a tela da tevê que ele havia se dado de presente de natal e pendurado em cima de sua escrivaninha, de frente para sua cama.
A quadra do Junin era onde jogávamos bola quando molequinhos. Cada um levava dez reais para pagar o local e jogávamos por uma hora ou mais, dependendo do humor de Junior. As peladas na quadra do Junin eram mesmo muito boas, principalmente quando a gente fazia boi para comer pizza depois dos jogos.
— Os muleque tão marcando de jogar lá no fim de semana, quer ir? Tamo pensando em já começar a treinar pra interclasse — Gustavo tirou os olhos da tela quando seu boneco fez mais um gol e olhou para mim. Cansado pela sétima goleada consecutiva, larguei o controle do videogame deixando meu corpo cair na cama de Gustavo, onde estávamos sentados. Eu era um fracasso em todos os jogos que não fossem de tiro.
— Tô de boa.
— Vai sair com a Samantha de novo?
— Não.
— Então por que não quer jogar com a gente? Achei que você quisesse entrar pro time da interclasse.
— Terei leituras para colocar em dia. As aulas começam amanhã. Terceirão, cara.
— Vacilão. Vou procurar outro pra salvar o time. Vai ficar pra jantar hoje?
— Não, na real já tenho que ir embora. Meu pai vai jantar com a gente hoje — me levantei da cama pegando minha mochila no chão. — Minha mãe tá inventando alguma treta e quer ter aliado pra me obrigar a fazer alguma coisa! Ou o meu pai vai me obrigar passar algum fim de semana com ele em Jardim, já que cabulei as férias do ano passado.
— Então falou, até amanhã!
— Falou!
Como naquela época eu já conhecia muito bem a casa, Gustavo não me guiou até a saída. Me despedi de sua mãe antes de sair da pequena casa, já colocando meus fones de ouvido para fazer minha trilha sonora de caminhada. Como aquele dia estava bem fresco, decidi ir andando até em casa, até porque nada é tão longe numa cidade pequena como Capital, sem falar também que as paisagens faziam qualquer caminhada a pé valer a pena pois a cidade é muito bonita, o interior não muito afetado pela modernidade em sua melhor essência; a beleza natural de Capital estava por todo canto estampadas em lindas arvores. Nós respirávamos ar puro e ainda, dependendo da época do ano, podíamos facilmente sentar sob uma arvore frutífera sem dono e se deliciar com frutas livres de agrotóxicos.
Eu adorava morar em capital. A maioria dos adolescentes odiavam pois diziam que não tinha nada para fazer e que os roles eram saturadíssimos. Já eu, sempre gostei bastante daqui; apesar dos pesares, Capital é uma boa cidade! Não tão boas tinham ficado as piadas sobre morar em Capital em Minas e não na capital de Minas. A gente podia ficar de boa até tarde na rua em quase todos os bairros e eram raros os acontecidos trágicos como morte por tráfico e essas coisas, nosso máximo eram trombadinhas ladrões de celulares. A única coisa que eu mudaria ali, seriam os caretas religiosos que estavam por todo lado, eu mal podia sair e virar a esquina sem que todos me olhassem torto com espanto, como se alargadores e alguns piercings fossem coisas de outro mundo em pleno século 2019. Na verdade, eu ficaria satisfeito se eles só me encarassem feio, fizessem o sinal da cruz e seguissem seus caminhos, mas vira e mexe eu era obrigado a ouvir ofensas desnecessárias pois em várias igrejas de Capital, eu era alvo de pregações preconceituosas que me colocavam como o filho de satã em terra.
Cheguei em casa cedo o suficiente para tomar um banho antes de meu pai chegar e a comida ficar totalmente pronta. Ainda tive um tempo para ficar sentado em minha cama me preparando psicologicamente para um provável show de horrores. Minha mãe não dava ponto sem nó e não fazia nada que não me deixasse, no mínimo, chateado ou puto. Minha mãe nunca convidava meu pai para fazer nada em nossa casa depois que se separaram oficialmente, apesar de terem uma boa relação; eles só se falavam por mensagem e se encontravam no mesmo local por mais que cinco minutos apenas nos meus aniversários, por isso, antes mesmo de ir para mesa, sabia que tinha caroço naquele angu, principalmente por ela ter preparado uma das minhas comidas favoritas: torresmo de barriga acompanhando arroz, feijão, couve e angu.
O jantar até que começou de boa com perguntas genéricas, mas eu ficava mais tenso a cada minuto. Imaginei, que mesmo sendo o motivo de eu ter saído, minha mãe tinha convocado aquela reunião para me enfiar novamente na terapia, mas as coisas não foram nada das várias que imaginei.
— Bom, eu vou direto ao ponto, estou grávida — minha mãe falou, me fazendo engasgar com o refrigerante.
— O quê? — meu pai e eu dissemos juntos.
— Descobri tem uma semana. É uma gestação de risco então eu preciso de todo repouso e calmaria possível. Não vem sendo um tempo fácil pro Otávio desde que a amiguinha morreu e eu acho que isso é muita coisa para eu lidar, não aguento ver ele o tempo todo sozinho e se negando a socializar — tive que me segurar muito para não revirar os olhos. Se tinha uma coisa que minha mãe não estava, em primeiro lugar, era preocupada comigo. Quanto mais silencio eu fizesse, melhor pra ela. — Daí pensei que talvez fosse bom pra ele ficar com o irmão da mesma idade. Vi com a escola e é super possível transferir...
— Não! — a interrompi alterando a voz mais do que desejei. Não consegui acreditar que apesar de termos uma relação lixo, minha mãe estava querendo começar uma nova família e me descartar — É meu último ano, não vou me mudar de escola.
— Lá também é Santa Cecília, não vai mudar nada!
— Pra você! Quer dizer, vai mudar tudo né? É isso que você quer, me tirar da sua vida! Precisa de toda calmaria possível... Como se eu atordoasse a sua vida!
— Eu não falei isso! Você não atordoa minha vida, mas não é fácil ser mãe de alguém como você e agora sem a Mariana...
— Mãe de alguém como eu?! E como eu sou, dona Vera?
— Me desculpa, Otávio, mas você sabe que todo mundo te olha diferente! Você sabe que não é como os outros meninos e como eles te tratam! Mariana não está mais aqui pra te defender e eu não consigo ficar leve sabendo que alguém pode estar te espancando em algum beco!
— Você vai me desculpar, Vera, mas você é completamente nojenta! Eu passei praticamente o mês passado todo fora de casa o dia inteiro e você nunca nem me perguntou onde eu estava! Tudo bem não me querer aqui, mas não seja falsa! — me levantei da mesa irritado e praticamente sem tocar em minha comida. Dentro do meu quarto, mesmo sem saber pra onde iria, peguei minha mala e comecei a jogar minhas coisas dentro de qualquer maneira.
Sempre soube que minha mãe nunca foi muito fã de mim, nunca nem tive aquelas lembranças de infância de brincar com ela nem nada e sempre estive em acampamentos e atividades extracurriculares que me fizessem passar bastante tempo fora de casa e quando não tinha atividade alguma, sempre estava na casa de alguém; eu podia dizer com todas as palavras, que minha mãe nunca disse que me amava. Eu sabia que na casa do meu pai eu seria totalmente acolhido, mas eu nunca me imaginei morando em Jardim; todas as coisas que eu queria estavam em Capital, mesmo sem Mariana.
— Otávio, vamos voltar pra cozinha e conversar — meu pai apareceu na porta do meu quarto. Ele parecia menos jovem e mais cansado do que me lembrava. Talvez fosse minha mãe sugando sua energia vital.
— Não tem o que conversar. Minha mãe me quer fora e eu vou embora. Faço dezoito anos em um mês e tenho a mesada de anos guardada no banco. Eu posso me virar muito bem longe dela!
— E pra onde você vai às nove da noite?
— Tanto faz, pai! Só vou pra longe dela! Podem continuar com a merda de jantar sem mim.
— Não concordo com isso e estou longe de querer alimentar essa guerrinha boba entre vocês , mas já que está completamente impossível que aja com um pingo de razão, hoje você vem comigo para o meu apartamento.
