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A parte merda da minha vida onde quase me tornei um assassino, se iniciou em 2019, mas antes disso precisamos de contexto. Não é o que você está pensando, não é a parte onde eu me humanizo para parecer menos doentio, porque na verdade eu não sou nada doentio e você mesmo vai afirmar isso. Sou um jovem normal, na verdade um pouco fodido, o que para mim é algo normal do jovem, ser um merda. É impressionante o quanto famílias aparentemente estáveis têm a capacidade de criarem filhos fodidos.

A primeira pessoa que culpo por ser um jovem fodido, é minha mãe; sei que parece clichê ter uma mãe narcisista, mas infelizmente é uma coisa muito comum. No Brasil o aborto não é legalizado, então se você acabar engravidando antes de se sentir pronto para tal responsabilidade e não tiver muito dinheiro, azar o seu, vai ter que lidar com isso!

Muitas mulheres ainda sofrem carregando o escroto fardo de serem mães o mais cedo possível pois aparentemente, ter um útero faz disso uma obrigação e tanto e agem como se esse órgão apodrecesse após os 30. Algumas mulheres se impõem, outras têm a sorte de serem inférteis e também temos o padrão onde se encontra minha mãe: mulheres que nunca quiseram ser mães, mas cederam a pressão da sociedade. Na verdade, eu tenho quase certeza de que fui um acidente, mas eu viria de um jeito ou de outro e em todas as situações, acredito piamente que não seria muito bem vindo por minha mãe. E as vezes eu achava que nem era a situação de ser mãe em si, só ser a minha mãe. Mas enfim, juro que não é para tentar me humanizar, mas vou falar um pouco sobre minha família.

Meus pais cresceram juntos, sendo minha mãe alguns anos mais velha. Eles eram vizinhos pois em alguma época, meus avós paternos invadiram o terreno ao lado da casa da família de minha mãe, motivo de minha avó materna, uma racistinha de merda, brigar todo santo dia com a parte legal da minha família. Apesar de minhas avós estarem sempre batendo boca e praticamente se mordendo, seus filhos viviam muito bem e meu pai tinha uma queda por minha mãe desde seus doze anos, sendo correspondido alguns anos depois.

Os dois tinham uma coisa em comum: odiavam Jardim com todas suas forças e queriam sair dali a todo custo, o que fizeram quando minha mãe completou dezoito e finalmente teve acesso ao dinheiro que meu falecido avô lhe deixou. Eles vieram para Capital, compraram uma casa pequena e minha mãe começou a ganhar dinheiro da forma que odiava, que era costurando, pois aquilo era algo que minha avó a forçava fazer. Mas logo seus vestidos foram ficando famosos e saiam tanta encomenda que chegou a precisar de ajudantes. Por incrível que pareça, foram os vestidos da minha mãe que pagaram a faculdade do meu pai, que no segundo ano de curso, já conseguiu emprego em uma boa empresa.

Meu pai, por algum motivo, apesar de não ser o melhor funcionário — palavras totalmente dele. — conquistou a afeição de seu chefe e eles eram tão íntimos que Cássio foi meu padrinho de batismo e quando ele faleceu, deixou uma grande parte de sua empresa pro meu pai. Contrariando a mãe de minha mãe, que por total preconceito e despeito dizia que meus pais iam fracassar na vida em outra cidade, meu pai deu uma baita sorte na vida e com sua subida econômica, ajudou minha mãe, que até os dias de hoje apenas desenhava suas roupas para outras pessoas costurarem e além da virtual, tinha duas lojas físicas em Capital; uma voltada para sua marca própria, quase toda de vestidos de festa e outra de roupa casual a preço popular. Seus desenhos eram tão bons que ela fazia sucesso no Brasil todo, mesmo tento apenas duas lojas físicas.

Eu cresci muito bem. Meus pais queriam que eu tivesse tudo que eles não puderam ter e eu fiz vários cursos durante a adolescência e sempre tive tudo do bom e do melhor. As coisas não eram fáceis com a pressão toda de ser um garoto como eu, obviamente algumas coisas me frustraram, mas ao menos eu tinha uma família estável, na verdade foi o que pensei por anos.

Meus pais nunca brigaram uma vez sequer e nunca me pareceram um casal distante, mas na casa dos meus doze anos, nossas vidas mudaram drasticamente. Meu pai me convidou para passar o natal com a sua família e sem minha mãe. Não achei muito estranho pois suas viagens à Jardim eram mesmo muito recorrentes e a cada ano minha presença junto dele, menor. Achei que fosse uma viagem perfeita sem as críticas de minha mãe sobre qualquer comportamento que eu tivesse, mas na real não foi bem assim, aquela estava longe de ser uma viagem só nossa.

Fomos para a cidadezinha no dia 23 de dezembro e ficamos na casa de minha tia Nora, a minha favorita. No dia seguinte, meu pai me acordou cedo e disse que no almoço me apresentaria pessoas importantes; ele estava bem nervoso, o que me deixou muito tenso. Quando chegamos no restaurante, antes de meu pai dizer alguma coisa eu já estava me queimando de raiva.

Em uma das mesas havia um garoto aparentemente da minha idade e uma mulher segurando uma bebê. Nunca fui uma pessoa muito inteligente, mas não precisava ser nenhum gênio para perceber que aquele garoto era meu irmão pois ele era praticamente um xérox do meu pai. A mesma pele escura, o mesmo cabelo preto e cacheado, os mesmos olhos azuis e até a merda da covinha no queixo. Eu tive vontade de correr, sair gritando e matar meu pai, mas só me sentei e tentei absorver toda a merda que ele disse. O filho da puta tinha a merda de uma vida dupla e queria que eu vivesse com o fruto de sua traição e disse que minha mãe estava de acordo.

Depois de usar todo o meu rico vocabulário de palavrões, saí do restaurante enraivecido. Jardim é bem pequena, mas eu mal ia até lá naquela época e me perdi enquanto tentava voltar pra casa de minha tia. Fiquei desesperado no começo, mas acabei me sentindo muito bem me negando a atender o telefone e consequentemente deixando meu pai preocupado, mas meu ato de rebeldia não durou muito; logo minha mãe me ligou e deu sua versão da história suja, que não me deixou melhor, muito pelo contrário. Basicamente minha vida toda até ali era uma farsa, eu vivia numa casa de bonecas porque meus pais me achavam problemático demais para encarar a verdadeira situação e fingiram estar juntos até eu ter idade o suficiente para encarar as coisas como eram.

Depois daquilo eu surtei de verdade e prometi à minha mãe que mostraria a ela o que era uma pessoa problemática de verdade. Eu fiz muita merda da qual me arrependo da metade, mas de nada adiantou e no fim eu tive que fazer o que eles queriam e acertaram com a lei, que era passar algumas temporadas anuais com a família do meu pai, ele quase sempre roubava minhas férias escolares. Mas antes dessa data, eu o via muito, já que sua empresa ainda é em Capital.

Ele vinha para Capital umas duas ou três vezes na semana e às vezes ficava um fim de semana que a gente usava para passear em livrarias e bibliotecas e depois tomar um café. Eram passeios agradáveis, apesar de que no início eu não suportava ficar perto do meu pai, mas ele ainda era uma presença melhor que minha mãe.

Ao menos em sua casa com sua família eu não tinha que tirar os sapatos e lavar as mãos antes de entrar (não que eu não o fizesse mesmo assim), não tínhamos que desinfetar o local todo após a saída de uma visita (eu fazia isso também) e não tinha toda uma organização muito doida e sistemática que não podia sair do eixo de jeito nenhum, o que não nos permitia ter empregados mesmo com situação financeira para tal. Minha mãe até já tentou ter uma, mas na real eu sempre tive certeza que ela tem TOC e demitiu a pobre mulher em seu primeiro dia. Ela nunca quis fazer tratamento para tentar amenizar aquelas coisas; minha mãe era jovem, mas velha o suficiente para achar que terapia era coisa de doido, o que se tornava até ofensivo já que por muitos anos frequentei bastante psiquiatras e psicólogos, parando bem antes do que gostaria e deveria, pois não aguentava quando ela encaixava em qualquer conversa que eu não era normal e muitas outras ofensas; ela tinha um prazer em falar aquelas coisas perto de mim, eu sentia em seu rosto. Mal sabia ela que a culpa de muitas das minhas merdas, era dela.

Não a culpo por ser doente, não sou uma pessoa tão merda assim. Mas toda vez que lavo as mãos vezes demais ou passo álcool em gel como se fosse creme hidratante, sinto raiva dela. Sempre que entro numa residência comum e fico nervoso por ainda estar calçado e até ouço sua voz gritando no meu ouvido que estou infectando aquele local, sinto raiva dela; o que também acontece quando como algo em horários não oportunos como antes de uma prova na escola e tenho que correr para o banheiro e escovar os dentes por longos minutos. Todo dia eu tento me distanciar um pouco mais do que minha mãe é e afirmo que nos dias atuais, estou até indo bem. Eu sei que você não acredita nisso só porque eu disse que quase matei uma pessoa, mas é verdade!

Apesar de estar melhor, ainda sou um fodido. Pais lixos criam filhos ruins, bens materiais e boas condições de vida contribuem muito para um bom futuro, mas não há presente caro ou mansão que substitua o amor fraterno que nunca senti por parte de minha mãe, mas eu juro que não estou tentando me humanizar para parecer uma vítima, porque na real eu sou mesmo vítima de tudo e continuaria sendo mesmo sem falar nada disso, acredite!

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