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Eu nunca tinha estado na casa de Gustavo antes, mas fui recebido com todo o carinho do mundo. Me lembro de parar de chorar enquanto estávamos em seu quarto e sua mãe tinha trazido chocolate quente, eu soluçava tanto que mal conseguia beber e só conseguia pensar o quanto o quarto de Gustavo contrastava com a sua personalidade, que na verdade era a personalidade que eu achava que ele tinha.
Na verdade, mesmo após conhecer o verdadeiro Gustavo, às vezes ainda era difícil olhar para ele e assimilá-lo ao grande imbecil que era alguns poucos anos atrás. Naquela época, aos dezessete anos, apesar da terrível escolha de ter feito uma tatuagem tribal no braço, Gustavo era bem maduro; ele tinha um grupo de voluntários que saíam pela cidade limpando ruas e terrenos, ajudando pessoas em situação de rua com o que podiam, desde roupa e alimento a tentar achar a família. Sua página do Instagram, Foco Na Missão, já havia conseguido encontrar a família de quatro moradores de rua. Sua meta futura era criar um lar para aquelas pessoas que fosse mais funcional que o albergue da prefeitura de Capital, que como a prefeitura de várias outras cidades do Brasil, não fazia quase nada para a comunidade. Mas ainda sobre seu quarto, ele era grande e tinha um cheiro agradável de limpeza.
Gustavo tinha uma mesa de estudos bem organizada, uma cama grande demais para ser de solteiro e pequena demais para ser de casal, com uma colcha bem esticada; a parede da cama estava enfeitada com prateleiras com uma quantidade bizarra de funkos e um violão pendurado, ele também tinha uma estante enorme cheia de livros mas seu modo de guardá-los não era nada prático pois as lombadas onde se leria os títulos, estavam viradas para a parede; ainda assim a coleção parecia atraente e pela cor amarelada das folhas dava para perceber que ele tinha livros bem antigos e gastos, como se tivessem sido lido várias vezes. Observar aquelas coisas até me acalmaram, sentir o cheiro de seu perfume também; não era nenhuma fragrância especial, descobri algum tempo depois que era uma linha da Natura, que ele usava desde o sabão até o perfume; mas na sua pele parecia que ficava diferente, era total o cheiro exclusivo de Gustavo.
Naquela noite, mesmo achando que me tornar vulnerável ao menos melhoraria as coisas, percebi que estava muito errado porque na verdade, piorou tudo. No quarto de Gustavo, roubando sua cama enquanto ele dormia no chão, tive meu primeiro sonho esquisito de uma coletânea extensa. Eu não entendia como estava ali num corredor claro demais com Mari numa versão criança puxando meu braço, me forçando a andar atrás dela, que batia o pé com ódio, o que me pareceu muito engraçado porque ela era baixinha, muito mais naquela versão. Mas além de me sentir ligeiramente humorado, também sentia dor, porém não sabia o motivo, só conseguia sentir.
— O que você está fazendo? — a voz que saiu de mim era infantil, e nem era como se eu realmente quisesse perguntar aquilo. Era como se eu estivesse dentro de outra versão de mim só observando tudo.
— Aquele cretino, ele acha que é quem pra bater numa garota?! Vou contar pra tia! — as palavras de Mari me causaram desconforto e foi quando me dei conta de que estava numa lembrança. Era um sonho lúcido de algo que realmente tinha acontecido, mas eu não conseguia mudar nada, apenas assistir.
— Não! — Parei no corredor, fazendo Mari olhar pra trás. Seu mau humor também estava transparecido na face infantil de cara suada. Sua face era tão meiga que era fofa ainda assim, os olhos verdes chamavam atenção e de algum modo destacava ainda mais sua beleza indígena herdada da mãe.
— E por que não? Guto te bateu!
— Eu também bati nele!
— Mas menino não bate em menina!
— Para de falar isso!
— Você não quer ver o Guto de castigo?
— Eu não tô nem aí, eu ganhei a briga! E não quero que vocês fiquem me chamando de menina!
— Mas… Você é uma menina!
— Não sou não! — minha mini versão gritou e saiu irritado, correndo na direção oposta a Mari. Foi quando acabei escorregando na escada e desci dez degraus rolando.
O sonho não se seguiu na parte onde eu chorava feito louco e Mari gritava, foi para outra lembrança, um pouco distante daquela. Mari e eu estávamos em meu quarto e fazíamos de todos os meus vestidos, uma montanha de tiras de tecido, que cortávamos com tesouras que peguei da área de costura da minha mãe. Estávamos quase acabando quando Mari soltou o que sobrou de meu vestido da primeira vez que fui à praia, coincidentemente o favorito da minha mãe, e me encarou com um sorriso banguela.
— O que você acha de a gente cortar seu cabelo, Otávio? — Mari havia me rebatizado logo depois do incidente da escada e fazíamos com que todos me chamassem daquela forma, caso contrário eu não respondia. Meus pais e direção estavam super irritados com isso e minha consulta com a psicóloga, marcada.
— Mas você não é cabelereira.
— Mas eu vou ser um dia. — aquele estava longe de ser um bom argumento, mas éramos novos demais para eu me importar e Mariana fez meu primeiro e horrível corte de cabelo.
Minha mãe ficou dividida entre ficar desesperada e querer matar a gente quando entrou no meu quarto e viu aquele mar de roupas rasgadas junto com cabelo.
— Maria Carolina! — ela gritou a todos pulmões me puxando pelo braço. — O que é isso aqui?
— Eu não me chamo Maria Carolina, me chamo Otávio!
— O que tá acontecendo com você, garota? Olha esse cabelo! Eu vou ligar pro seu pai agora!
E novamente a lembrança mudou, me livrando de ter que sonhar com meu pai me dando uma enorme bronca. Fomos pra uns dois anos depois, no meu aniversário de doze anos, o qual ninguém compareceu porque seus pais achavam meus pais bizarros; eles diziam ser coisa de doente meus pais deixarem que eu me vestisse da forma que eu quisesse e me chamassem de Otávio, os mais radicais até tentavam arranjar formas de que meus pais perdessem minha guarda pois nas palavras deles, eles não estavam aptos para criarem uma criança quando me deixavam viver na depravação do mundo antes mesmo de me entender como gente.
Na lembrança eu chorava sentado na sala enquanto Mari dizia que eu não precisava de mais ninguém além dela para ter uma baita festa de aniversário. Depois daquilo, se passaram vários flashes de lembranças quase iguais àquela, todas de mim chorando feito o bobão que era, por motivos diversos. Nunca era Mari chorando, sempre eu. Até então, eu nunca fazia nada sem um conselho de Mariana, até roupa nós combinávamos e até mesmo meu nome, havia sido escolhido por ela.
Eu nunca havia me apaixonado e achava que isso fazia de mim uma pessoa emocionalmente independente, mas na verdade sempre vivi às sombras de alguém. Não achem que isso é uma confissão depressiva onde coloco minha melhor amiga como vilã pela minha falta de gostos próprios, eu literalmente não me importaria de continuar vivendo assim até os últimos dias da minha vida. Talvez eu tenha enrolado demais só para dizer que sou um filho da mãe completamente emocionalmente dependente de carinho e imagino ter desenvolvido um bom início de alguma história sobre o amadurecimento de uma relação de autoconhecimento, mas infelizmente essa história não é sobre isso; mas se quiser saber como fui de um adolescente normal a um quase assassino, não vai se importar de continuar por aqui.
