capitulo 4
NARRADO POR KAEL VELKAR
“Ser Alfa não é gritar mais alto.
É sangrar em silêncio… sem nunca deixar o sangue pingar no chão.”
—
Me chamam de Kael Velkar.
Filho único de Velkar, o Gélido.
Nascido nas montanhas do Leste, onde até o vento corta como lâmina.
Sou o herdeiro da alcateia mais antiga entre as vivas —
Sangue de Velkar, uma linhagem moldada no rigor, no aço, na guerra.
Aqui, a Lua é reverenciada com temor.
Aqui, a palavra do Alfa vale mais que juramento ancestral.
E o amor… é visto como fraqueza.
Foi nesse chão congelado que me moldaram.
Braços largos, costas marcadas por treinamento.
Mãos grandes, pesadas… feitas pra lutar.
Mas que nunca esqueceram o toque dela.
—
Fui treinado desde os cinco invernos.
Acordava com açoite. Dormia em pedra.
E aprendi que sentir… era sentença de morte.
> “Controle, Kael,” — meu pai repetia. —
“Você não nasceu pra ser amado. Nasceu pra ser temido.”
E eu obedeci.
Aos quinze, me transformei com perfeição.
Sem erro. Sem dor.
A pele rasgou, os ossos romperam, e o lobo surgiu firme, completo, pronto pra caçar.
Desde então… nunca mais fui visto como garoto.
Fui arma.
Fui símbolo.
Fui promessa.
Mas promessa pra eles.
Nunca pra mim.
—
Sou feito de silêncios longos.
De pensamentos afiados.
De uma fúria que aprendeu a andar de terno.
Me tornei o lobo que comanda sem precisar mostrar os dentes.
Que resolve guerra com um olhar.
E que carrega o peso do trono com a espinha reta — mesmo quando ela quer dobrar.
—
Mas aí…
Veio ela.
Isara.
Nascida do Norte, onde a floresta uiva junto com o coração.
Ela não pisou. Ela rasgou caminho.
Não sorriu. Ela cravou presença.
Me olhou… e me viu.
E isso, pra mim, foi mais brutal que qualquer batalha.
—
Ela não foi feita pra ser minha fêmea.
Ela foi feita pra ser minha ruína.
A cada vez que Isara me desafia com os olhos, meu peito aperta.
Não por raiva.
Por reconhecimento.
Porque ela é tudo que eu nunca pude ser:
Livre.
Intensa.
Forte sem precisar provar.
Ela não quer o título.
Ela É o título.
—
Me disseram que o vínculo com ela era estratégico.
Um gesto político pra selar a paz entre o Norte e o Leste.
Mas a verdade?
Desde que a vi… a paz foi a última coisa que senti.
Ela me tira do eixo.
Me quebra por dentro e reconstrói em silêncio.
Me faz querer ser homem antes de ser Alfa.
E isso…
Isso é perigoso.
—
Já comandei tropas.
Já fiz rivais ajoelharem.
Já fui reverenciado por matilhas inteiras.
Mas nenhuma dessas vitórias me pesou tanto quanto o momento em que vi Isara caminhando na clareira.
Sozinha.
Com a cabeça erguida.
Com a pele ainda carregando meu cheiro.
E percebi que o mundo queria vê-la cair.
—
Mas eu?
Eu só queria segurá-la.
—
Tenho 27 invernos marcados na pele.
Sou Alfa.
Sou Velkar.
Sou lenda viva entre os meus.
Mas diante dela…
Sou só homem.
O sol ainda engatinhava pelas montanhas quando a batida soou na porta da minha cabana.
Três toques secos. Sem urgência. Sem medo. Só familiaridade.
— “Entra.” — disse, sem levantar da cadeira.
Era Torren.
Meu irmão de vínculo. Não de sangue.
Filho do conselheiro Tyvor, mas mais lobo que qualquer Alfa vestido de medalha.
Foi ele quem me salvou na primeira caçada.
Foi ele quem arrancou flechas do meu ombro sem tremer.
Foi ele quem me viu chorar escondido aos dezessete… e nunca contou a ninguém.
Ele entrou como sempre fazia: sem cerimônia, mas com respeito.
Carregava um odre de couro nas mãos. Água fresca. Rito antigo.
— “Tá preparado?” — perguntou, entregando o odre. — “Hoje é o dia. O dia em que o Velkar mais teimoso da história finalmente vai marcar sua Luna.”
Tomei um gole. O líquido desceu rasgando. Não por estar gelado — mas por saber o que vinha depois.
— “Posso te contar uma coisa?” — perguntei, sem encarar.
Torren não respondeu de imediato. Só puxou o banco de pedra e sentou. As botas cruzadas, os olhos postos em mim como quem sabe que o que vem é grande. E feio. E bonito também.
— “Fala.”
Engoli seco. Segurei o odre com força, como se ele pudesse conter o que eu tava prestes a soltar.
— “Eu me deitei com ela.”
Torren não se mexeu.
Nem um músculo.
Só piscou uma vez. Lento.
— “Foi antes do ritual?” — ele perguntou, a voz baixa. Seria julgamento em outro tom. Mas na voz dele… era só certeza de que agora o jogo mudou.
Assenti.
— “Na floresta. No refúgio dela. Ela me deixou entrar. No corpo… e no resto.”
Torren esfregou o rosto com as duas mãos. Depois balançou a cabeça, como quem tava prestes a rir, mas segurou.
— “Puta que pariu, Kael.”
— “Eu sei.”
— “Tu sabe o que isso significa, né?”
— “Significa que não tem volta.” — respondi. — “Que a marca já tá feita. Mesmo que a Lua ainda não tenha tocado.”
— “Significa que se você não marcar ela hoje… vão chamar de profanação.”
— “Eu sei.” — repeti, mais firme.
— “E mesmo assim…”
Olhei pra ele. Finalmente.
— “Mesmo assim, foi a única vez em que eu senti que não era só o herdeiro.”
—
O silêncio caiu entre a gente. Mas era o silêncio bom. Aquele que só existe entre irmãos de batalha. Onde não precisa explicar tudo.
Torren respirou fundo e se levantou.
— “Então marca ela, Kael. E depois segura o que vier. Porque você já é dela. A única diferença… é que hoje o mundo inteiro vai ver.”
—
Ele virou de costas e foi em direção à porta, mas antes de sair, falou por cima do ombro:
— “E por favor… tenta não foder tudo.”
—
Fiquei ali.
Com o gosto dela ainda na boca.
Com o cheiro dela ainda na pele.
Com a coragem pendurada no fio da decisão.
E com a certeza:
A clareira me espera.
Mas é o corpo dela que vai me guiar até o fim.
O cheiro da manhã ainda era úmido quando ouvi a correria se aproximando pela trilha de pedra que levava até minha cabana. Passos rápidos. Pressa de quem não tá fingindo.
A porta se abriu com brutalidade.
— “Alfa!” — a voz arfada cortou o silêncio como garra.
Era Nerya. Jovem. Obediente. Daquelas que seguem ordem como quem reza — mas com olhos grandes demais pra disfarçar a sede de ser útil.
— “Tem… tem uma coisa que você precisa ver. Agora.”
— “Fala,” — ordenei, sem levantar.
Mas ela não falou.
Só me olhou com a expressão tensa. Dura.
E então murmurou:
— “É sobre Isara.”
Meu peito travou.
Não demonstrei.
Levantei devagar, cada músculo atento.
— “Onde?”
— “Na antiga cabana do lobo de Vigia… aquela perto da clareira baixa. Alguém… alguém viu ela entrando ali. Mas… depois… ela não saiu. E tem outro lobo lá dentro.”
Minha respiração pesou.
— “Você viu isso com seus próprios olhos?”
Ela hesitou.
Só por um segundo.
— “Sim.”
O "sim" veio limpo.
Mas o mundo já tava sujo.
—
Fui atrás dela.
O caminho era curto, mas cada passo arrastava um peso ancestral. O lobo em mim já rosnava. Desconfiado. Mas o homem… o homem ainda segurava esperança.
Só que esperança é vidro fino.
E eu já ouvia o estalo.
Chegamos na cabana.
A porta entreaberta.
O cheiro no ar…
O cheiro dela.
Misturado com um outro. Masculino. Familiar.
Dentro, o corpo dela estendido sobre a cama de pele, os cabelos espalhados, a blusa levemente erguida.
E ao lado… o maldito lobo de Vigia. Dormindo. Seminu. O braço jogado por cima da perna dela, como quem sonha com o que não devia.
Meu coração bateu forte.
Forte demais.
Forte até doer.
— “Eles estavam assim quando encontramos,” — murmurou Nerya atrás de mim. — “Ela… bebeu antes do ritual. Talvez tenha exagerado. Ou… talvez não.”
Meu punho fechou.
O lobo dentro de mim se contorceu.
E a raiva… não veio como grito.
Veio como gelo.
Como o frio do norte atravessando os ossos.
Como o silêncio de traição.
—
Dei dois passos pra trás.
Olhei uma última vez pra ela.
Linda.
Macia.
Desperta em mim até enquanto dormia.
Mas ali… naquele instante…
ela era faca.
—
Virei as costas.
Sem uma palavra.
Sem um som.
Só o som do que morre por dentro e não renasce igual.
—
O ritual me aguardava.
A clareira, os olhares, os cânticos, a Lua.
Mas a fêmea que eu levaria ao centro da roda…
não seria ela.
Porque minha Luna…
tinha me deixado no escuro.
E um Alfa no escuro… é só fera sem dono.
