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capítulo 5

NARRADO POR ISARA

“A dor não vem com aviso.

Ela só abre a porta… e entra.”

A primeira coisa que senti foi o frio.

Mas não era o frio da manhã, da relva molhada, da brisa cortando a pele.

Era o frio de dentro.

Aquele que sobe pelas costas feito presságio.

Aquele que avisa: algo foi tirado de você.

Abri os olhos devagar.

O teto era estranho.

Feito de galhos entrelaçados, palha mal amarrada, cheiro de mofo e isolamento.

Minha cabeça latejava.

A boca estava seca.

E meu corpo…

Meu corpo doía como se tivesse sido arrastado pela terra, não pela dança da noite.

Tentei sentar — os músculos pesavam.

Como se o sono tivesse sido forçado, não vivido.

E então…

Então eu vi.

O braço.

Um braço masculino, jogado sobre minha cintura.

A pele morena. O cheiro amadeirado. O calor de alguém que não era Kael.

Meu peito travou.

Meu instinto rugiu.

Empurrei com força, me arrastando pra longe como uma fera encurralada.

O lobo ao lado nem se mexeu.

Dormia.

Ou fingia.

Me encolhi num canto da cabana, o coração batendo no ritmo da desgraça.

Passei as mãos pelo corpo, pela roupa torta, pela sensação úmida que eu não sabia nomear.

Minha memória… um nevoeiro.

A última coisa que lembro?

Lyra.

A taça.

O gosto amargo disfarçado de ritual.

E depois… nada.

Silêncio.

Escuro.

Vazio.

— “Não…”

Minha voz saiu falha.

Rasgada.

— “Não. Não.”

Comecei a tremer.

Não era medo.

Era revolta.

Era nojo.

Era a alma tentando sair do corpo pra não precisar carregar aquilo.

— “Vocês armaram pra mim…”

Falei mais alto, como se as paredes pudessem responder.

Como se Elora estivesse escondida ali atrás, se alimentando do meu desespero.

Levantei.

Com raiva.

Com vergonha.

Com a força que só quem foi traída conhece.

Olhei de novo pro lobo deitado.

Meu sangue ferveu.

Fui até ele.

Segurei o queixo com brutalidade e ergui o rosto dele.

Dormia.

Um sono pesado, esquisito.

Droga?

Algo dentro de mim se moveu.

Algo selvagem.

Algo antigo.

O lobo.

Minha loba despertou.

Não por escolha.

Por proteção.

Meu corpo enrijeceu, os olhos dilataram, as unhas se estenderam só o bastante pra marcar a madeira da parede atrás de mim.

A respiração ficou funda. Grave. Quase um rosnado contido.

— “Acorda…” — sussurrei, com a garganta embargada de ódio e confusão. — “Acorda, seu desgraçado…”

Me aproximei dele de novo. O cheiro… era estranho. Não era só suor ou sono.

Era… entorpecido.

Fechado.

Droga.

Apertei a mandíbula. Passei a mão pelo peito dele. O coração batia lento.

Muito lento.

Minha loba, dentro de mim, se eriçou.

Não havia marca.

Não havia cheiro de cio, nem de acasalamento consumado.

Não havia nós naquela cama.

E mesmo assim, era isso que tinham feito parecer.

Sacudi o ombro dele, com força.

— “Acorda!”

Ele gemeu. Se mexeu. Os olhos pesados tentando abrir.

— “Uhn… onde…?” — murmurou, com a língua enrolada.

— “O que fizeram com você?” — perguntei, mais pra mim do que pra ele.

— “Isara…?”

Me afastei um passo, ainda em posição de ataque.

Ele sentou devagar, com as mãos no rosto.

Confuso.

Desorientado.

Perdido.

— “O que… o que aconteceu? Por que eu tô aqui?”

— “Você não lembra?”

— “Não. Eu… eu tava na clareira. Lyra veio falar comigo. Disse que tinham me chamado pra uma conversa. Depois disso… branco. Nada.”

Meu sangue ferveu mais alto.

— “Você também foi drogado.”

Ele levantou o rosto.

O choque era verdadeiro.

A culpa, não.

— “A gente… a gente não teve nada, né?”

Fiquei olhando pra ele.

Meu coração queria uivar de alívio.

Minha loba… queria cravar os dentes em Elora.

— “Não. Não teve nada.”

— “Eles quiseram fazer parecer que teve.”

— “Conseguiram.”

Ficamos ali. Os dois com os corpos confusos e as almas em carne viva.

Tão próximos da destruição…

Tão perto da mentira virar sentença.

— “Preciso ir.” — falei, a voz mais firme agora.

— “Isara…”

— “Fica. Descansa. Te usaram. Assim como me usaram.”

Parei na porta.

— “Mas eu não sou o tipo de fêmea que baixa a cabeça. Nem o tipo de Luna que aceita ser queimada.”

— “Vai fazer o quê?” — ele perguntou, assustado.

Virei de lado.

Olhei pra ele com os olhos da loba que mora em mim.

— “Vou à clareira.”

— “Mas Kael—”

— “Se Kael me rejeitar sem saber a verdade… então ele nunca mereceu me ter.”

Abri a porta.

O sol já tava alto.

E eu?

Eu tava pronta pra incendiar a cerimônia.

Nem que fosse com o meu próprio corpo em chamas.

O sol já tava alto no céu, mas o frio no peito…

esse, não esquentava mais.

Meus passos ecoavam pela clareira como socos contra a tradição.

A cerimônia já havia começado.

A roda das matriarcas estava formada.

Kael estava no centro.

De pé.

Majestoso.

Fechado.

O Alfa que eu conhecia…

mas que agora me olhava como quem vê um erro.

Todos pararam quando me viram entrar.

As conversas cessaram.

Os olhos… me cravaram.

Meu vestido cerimonial ainda tava no corpo.

Mas meu corpo já não era o mesmo.

Tinha terra nas pernas, sangue nos olhos e o orgulho cuspido de volta pra dentro — só pra não ser esmagado antes da hora.

Eu caminhei até ele.

Passo por passo.

Com a clareira inteira segurando a respiração.

O mundo parecia pequeno demais pra conter aquela tensão.

Quando parei a poucos metros dele, levantei o queixo.

Mesmo tremendo por dentro.

Mesmo com o lobo dele rosnando no olhar.

— “Kael…” — chamei.

Minha voz saiu firme, apesar da alma quebrada.

— “Preciso falar com você. Não foi o que parece.”

Ele não se mexeu.

Não piscou.

Não cedeu.

O olhar dele era navalha.

Era gelo.

Era tudo que um lobo ferido se torna quando o amor vira desconfiança.

— “Você não tem mais o direito de me chamar assim.” — ele disse, a voz cortando como garra em carne viva.

Meu coração falhou.

Mas fiquei de pé.

— “Eles armaram pra mim, Kael. Me drogaram. Me colocaram lá. Eu não—”

— “Chega.”

O comando veio com força.

A clareira tremeu.

Alguns lobos recuaram instintivamente.

— “Você se deitou com outro.”

— “Não!”

— “Você traiu o elo antes mesmo da marca.”

— “Kael, por favor…”

— “Silêncio!”

A ordem reverberou pelos ossos.

Doeu mais que tapa.

Mais que dente.

Mais que exílio.

Mas ele continuou.

E o que veio a seguir…

foi sentença.

— “Diante da Lua, diante dos ancestrais e diante da minha matilha…”

O peito dele se abriu, a voz engrossou, os olhos não vacilaram.

— “Eu, Kael Velkar, Alfa do Leste, rejeito Isara como minha fêmea.”

Um murmúrio explodiu na clareira.

Alguns gritaram.

Outros prenderam o fôlego.

Mas eu…

Eu congelei.

— “A rejeito como Luna.”

— “A rejeito como parte desta alcateia.”

— “E a expulso do nosso território.”

Silêncio.

Mortal.

Sagrado.

Cruel.

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