Biblioteca
Português
Capítulos
Configurações

capítulo 3

CAPÍTULO DOIS — ANTES DA QUEDA

Narrado por Isara

Quando estava a caminho da minha cabana, sozinha, fingindo que a noite não tinha me riscado por dentro, o cheiro dela veio primeiro que o corpo.

Elora.

Filha de Beta.

Unha afiada, olho mais ainda.

Língua treinada pra cortar o que a garra não alcança.

Desde o primeiro dia ela farejou o que ninguém queria dizer em voz alta:

eu era ameaça.

Mesmo sem tentar.

Sobretudo sem tentar.

A clareira respirava curto — pinheiros em vigília, brasa de ontem segurando o último calor sob cinza, um vento fino que penteava a grama contra o sentido. O sal do círculo desenhava um anel opaco no chão. Minha marca acendeu um lampejo miúdo nas costas — tô vendo, disse a Lua — e apagou.

Elora estava encostada na pedra cerimonial, braços cruzados, queixo alto, sobrancelha arqueada como quem tempera veneno antes da mordida. No pulso, a trança verde que as filhas de Beta usam quando esperam anúncio; no pescoço, duas presas polidas — herança de família que gosta de troféu.

— Veio da floresta? — mel que arde.

— Como sempre. — Passei, dando a ela o espaço que eu escolhi dar, não o que ela achou que merecia.

Silêncio não alimenta cobra. Ela veio atrás.

Passo leve. Fala cortante.

— Engraçado… o Alfa também sumiu por umas horas. Vocês andam caçando juntos agora?

Parei.

Enchi o peito — não de ar, de paciência.

— Se quer saber onde ele esteve, pergunta a ele. Não a mim. — sem virar o rosto.

O riso dela escorreu ironia, feito baba de víbora.

— Não preciso perguntar. Eu vi. Chegaram juntos. Você com a blusa dele. O cheiro dele na tua pele. A boca dele no teu pescoço…

Ela se aproximou um passo além do necessário — hálito de hortelã e maldade.

— É isso que você é, Isara? Luna de desejo apressado? Deitou antes do ritual?

Virei.

Devagar.

Firme.

Letal.

Nosso olhar se bateu, e por um segundo o joelho dela lembrou que joelho também treme. O que ela carregava era ciúme. O que eu carregava era história.

— Você me vê como ameaça porque nasceu pra esperar ser escolhida — falei baixo, deixando o sentido fazer o trabalho. — E eu? Eu nasci pra ser temida antes de ser tocada.

Ela recuou meio passo e tentou disfarçar com um arqueio de queixo.

— Você deita com o Alfa antes da marca… e ainda se diz digna de ser Luna?

— Eu não me deito. Eu me entrego. Quando quero. Pra quem quero.

Se isso te incomoda… talvez seja porque ninguém nunca te quis o suficiente pra esquecer protocolo.

Silêncio.

Daqueles que afinam lâmina.

Ela respirou pesado. Eu não dei espaço.

— Não me mede com a tua régua, Elora.

Enquanto você quer trono pra ser vista, eu sou a Lua acesa no escuro.

— Você se acha intocável porque ele te olhou diferente? — cuspiu, voz meio tom acima. — Acha mesmo que vai ser a Luna dessa alcateia?

Dei um meio sorriso.

— Eu não acho. Eu sinto.

E quando a Lua escolhe, nem a tua inveja tem mão pra desfazer.

O riso que ela soltou veio nervoso — medo vazando pelas bordas da raiva.

— Tem certeza, Isara? Certeza que ele vai te marcar amanhã?

Que vai te apresentar como fêmea do Alfa, na frente de todos?

Que vai te dar “Luna” sem cuspirem teu nome depois?

— Tenho certeza de quem eu sou.

Se ele for metade do que eu sou inteira… então sim. Eu vou ser Luna. Com ou sem cerimônia.

Ela chegou tão perto que o nariz quase roçou no meu.

— Sabe o que eu acho? — sussurrou. — Acho que você vai acordar da tua ilusão na hora mais humilhante.

Ele vai te deixar ali… exposta.

Queimada.

Sem marca.

Sem nome.

Sem lugar.

Meu maxilar lembrou que sabe trincar. Eu não dei o gosto.

— Se isso acontecer, não destrói a mim. Destrói a si mesmo.

Loba como eu só passa uma vez.

Os olhos dela escorregaram pro lado — não por vontade, por reflexo. Fêmea reconhece fêmea quando a alma lateja. A minha, naquele instante, rugia.

Um tambor seco bateu ao fundo. Chamada.

Nos olhos de Elora, entrou outra coisa.

Não era só ódio.

Era aviso. Certeza de quem já cheirou o fim antes dele chegar.

— Boa sorte, Isara. — sorrisinho torto. — Vai precisar.

Virou as costas, deixando o tipo de silêncio que só nasce de armadilha pronta.

Segredo escondido.

Sangue na beira de pingar.

Eu fiquei.

Com a blusa dele no corpo.

O cheiro dele na pele.

A esperança dele no peito.

Burra.

Santa.

Loba.

---

O sol mal tinha riscado o céu e as fêmeas já cruzavam a clareira como formiga antes da chuva.

Brilho no olho — não de fé, de expectativa.

Queriam ver o que nunca viram: uma marcada assumida como Luna.

Ou descartada.

Esse mundo adora pendurar loba no altar enquanto prepara o chão pra queda.

Acordei doendo da noite. Não dor ruim — lembrança.

Era ele.

Éramos nós.

O vestido cerimonial me esperava pendurado na boca da tenda: tecido cru, fiapos de pele de lobo, costura de matriarca, banho de erva e silêncio.

Quando vesti, a marca queimou nas costas. A Lua falou dentro do osso:

Vai.

Mas vai com tudo.

Mesmo que arranquem de ti.

Duas anciãs trançavam meu cabelo enquanto os cochichos corriam pela lona:

— “Linda… ousada…”

— “Marca acesa desse jeito é presságio.”

— “Quem nasce ponte carrega alvo.”

— “Luna não se pede. Aguenta-se.”

Saí com a cabeça erguida e a pele acesa.

Elora fingiu não ver.

Lyra veio — jovem, bonita, flor que conselho velho usa pra distrair. O sorriso dela parou longe dos olhos.

Na mão, um cálice.

Líquido rubro, espesso, perfumado. Vinho ritual.

— O Alfa pediu pra te entregar — disse, voz treinada. — Tradição. A fêmea bebe antes de ser marcada. Sela o elo. Aquece a alma.

Passei o dedo no metal.

— Kael pediu?

— Sim — sem hesitar. — Ele disse: “Dê isso à minha Luna.”

Meu peito balançou dentro da caixa.

Lobo que chama Luna antes da marca fala com o coração, não com o título.

Ergui a taça.

Cheirei: fruta do Vale, resina leve, fumaça doce… e, num porão do perfume, um amargo fino que eu não batizei.

Manjerona escura?

Ou só a minha intuição batendo no osso?

Olhei ao redor:

Sora riscava sal no chão — um círculo quebrado em três pontos ao norte. Cuidado.

Mirla revirava a bolsa de couro como quem briga com um pressentimento.

Tarek, braços cruzados, era montanha pronta.

Torren, do Leste, fingia nuvem. O faro dele, porém, tremia.

Elora, dois passos além de Lyra, calma demais — calma de quem sabe.

Confiança é a arma preferida das guerras que se fantasiam de rito.

Eu bebi.

Gole lento, respeitoso.

Como manda a tradição.

Lyra sorriu — por fora.

O cálice escapou antes do pensamento.

Bateu na pedra — som seco, alto, errado.

Os dedos formigaram.

A nuca pesou.

A luz fez bordas.

Meu ouvido virou lago: as vozes chegavam como se alguém falasse do fundo.

— Está tudo bem? — veio de longe, debaixo d’água.

A marca tentou acender — a Lua chamando aríete.

Meu lobo rosnou por dentro, pronto pra queimar o estranho.

Não era veneno de matar.

Era veneno de apagar.

As coisas começaram a sair do foco:

Vi Sora avançar com um punhado de sal, desenhando cruz no ar e murmurando na língua antiga.

Vi Mirla derrubar um pote, xingar baixo, correr atrás da água do Poço.

Vi Tarek levar a mão ao punho da lâmina que não se usa em ritual.

Vi Torren mirar o nada com a cara de quem reconheceu a própria culpa.

Vi Lyra morder o lábio até sangrar, os olhos pedindo perdão pra alguém que não tava olhando.

E vi Elora, meia face por trás da tenda, boca curva, calma demais pra quem torce pelo meu bem.

O chão veio me buscar com a delicadeza de uma pedra.

Antes dele me segurar, uma certeza me segurou primeiro:

Kael não sabia.

Não assim.

Não com esse gosto.

Ele falha em coragem — eu sei.

Mas cálice adulterado não é a mão dele.

A escuridão subiu pelos tornozelos, engoliu joelhos, afogou pulmões.

Abriu a boca no meio do dia e me tragou.

No último fio de luz, jurei:

Se eu cair, eu levanto.

Com fome.

E caí.

continua…

Baixe o aplicativo agora para receber a recompensa
Digitalize o código QR para baixar o aplicativo Hinovel.