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Entre presas e cicatrizes:O retorno

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AUTORA VAL VEIGA
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Resumo

"Entre Presas e Cicatrizes" Ela foi rejeitada. Não por fraqueza. Mas por ser forte demais. Isara nasceu do sangue da lua. Era a promessa de união entre dois clãs. A escolhida. A marcada. Até que foi traída pelo destino — e pelo Alfa que deveria protegê-la. Diante da alcateia inteira, Kael cuspiu no vínculo. Rasgou o elo. E com ele… o peito dela. Isara foi banida. Caçada como maldição viva. Sumiu nas florestas geladas com o coração em carne viva e o instinto em chamas. Ela morreu naquela noite. Mas o que voltou… não era mais uma loba. Era a fúria da lua em forma de mulher. Anos depois, ele retorna. Kael. O mesmo olhar. A mesma marca. Mas agora, é ele quem precisa dela. A profecia mudou. A rejeitada virou salvação. A loba virou lenda. E o Alfa… vai sangrar pra merecer o que um dia jogou fora. Porque amar Isara nunca foi destino. Foi maldição. E agora… é escolha dela.

alfaRenascimento com vingançaromanceSangue quente / Cheio de energiaVingança / Retorno triunfanteInvencível / Todo-poderoso

Prólogo

PRÓLOGO — POR QUE A LUA A ESCOLHEU

Antes do primeiro uivo, houve silêncio.

E no silêncio, uma pergunta: quem aguenta segurar dois ventos no mesmo peito sem rachar?

Naquela noite, a mais fria do ano, a floresta prendeu o fôlego. A neve caiu sem vento, como se cada floco estivesse com medo de fazer barulho. As sombras se juntaram nas bordas da clareira — não por covardia, por respeito. E a Lua… a Lua ficou cheia antes da hora, redonda feito promessa antiga lembrada de repente.

Isara nasceu assim: punhos fechados, queixo teimoso, um uivo seco na garganta antes mesmo de aprender o que era choro. A mãe, loba do Norte, sangrou em silêncio, mãos cravadas na terra, como quem dá à luz à própria guerra. Do pai, ninguém dizia o nome. Não por fofoca — por costume. Em terra de lobo, o que interessa não é assinatura no papel; é o que a cria traz aceso por dentro.

Isara trouxe a marca.

Não uma pintinha bonita pra contar história.

Marca viva: pulsava antes da pele, acendia sob a luz, parecia luz líquida correndo entre as omoplatas quando o destino chegava perto. Quando ela respirava, a marca respondia — um lampejo prateado, curto e teimoso, tipo “tô aqui, não finge que não viu”.

Cresceu diferente.

Olhos muito claros pra alguém do Norte.

Pele quente no meio da neve.

O ouvido que pescava o que os outros não ouviam: árvore cochichando, rio chamando, bicho negociando a própria fuga. À noite, virava pro céu e parecia que a Lua respondia de volta, não em palavra, mas em pulso. Quem via achava que era exagero. Quem sabia, calava — porque reconhecer milagre também é disciplina.

As outras fêmeas eram criadas pra curar, selar aliança, costurar paz depois da briga.

Isara caçava.

Rasgava.

Mandava calar.

Não por capricho — por instinto com propósito. A força dela não gritava; queimava. Brasa escondida sob a pele, dessas que cozinham feitiço sem alarde.

Foi num entardecer de lua minguante que a velha Sora, do Círculo da Lua, decidiu: “Chega de adivinha. Vamos perguntar pra quem manda.” Levaram Isara pro Poço Lunar — nascente funda, água que parece segurar o céu nos olhos. Mirla, a curandeira, traçou um círculo com sal e pó de grafite; Iane, caçadora de passo leve, vigiou os arredores; Tarek, mestre de guerra, ficou de braço cruzado, cara fechada e o coração certeiro de quem sabe a diferença entre força e violência.

Isara entrou na água. O frio mordeu, e ela mordeu de volta, sem recuar. A marca prateou inteira. O poço respondeu com ondas miúdas, como pele arrepiando. Sora cantou baixo na língua antiga — aquela que não se aprende, lembra. O ar ficou mais pesado, mas bom de respirar. E quando o vento parou de tremer, a Lua falou.

Não com boca. Com luz.

A claridade encostou na testa de Isara e a voz veio dentro do osso — límpida, limpa, sem floreio, do jeito que verdade gosta de chegar:

“Eu a escolhi.”

Sora, a velha, não tremeu. Perguntou do jeito certo, direto, sem ajoelhar:

“Por quê?”

A Lua não se ofende com perguntas honestas. Respondeu em golpes, simples e definitivos, como lei gravada em pedra:

“A escolhi porque é filha de dois ventos.”

O Norte nela dá fôlego, o Leste nela dá faro. O sangue se encontra sem pedir permissão aos mapas. Ela carrega dois territórios dentro do peito e não se parte.

“A escolhi porque nasceu no silêncio certo.”

Não o silêncio da covardia — o da escuta. Ela escuta o que o mundo sussurra quando ninguém está performando coragem.

“A escolhi porque tem ouvido triplo.”

Ouve a floresta, ouve a matilha, ouve a si. E sabe qual dos três calar quando a decisão precisa caber em um só gesto.

“A escolhi porque morde e guarda.”

Sabe ferir para salvar, e sabe salvar quem um dia feriu. Não confunde vingança com justiça. (E sim, isso é raro.)

“A escolhi porque aguenta o frio.”

Vai pelo caminho que morde — o da água funda, da pedra lisa, da verdade que não massageia ego. Quem vai pelo frio chega do outro lado sem dívida com a própria consciência.

“A escolhi porque me escolheu primeiro.”

Antes de ser vista, ela já tinha dito ‘sim’ — não com palavra, com postura. Não dobra joelho pra mentira. E eu, que sou Lua, não caso com covarde.”

A água sossegou. O brilho assentou como mercúrio domado. Isara ficou de pé, pingando, o cabelo grudado no rosto, e aquele jeito dela de quem pergunta pro mundo: “Mais alguma coisa? Porque se tiver eu dou conta.” Sora sorriu, faltando dente e sobrando certeza. Tarek pigarreou para esconder o orgulho. Mirla guardou três gotas do poço num frasco minúsculo — remédio de emergência pra quando a coragem lembrar que também é carne.

Foi assim, sem fumaça de teatro, que ficou decidido: a Lua tinha posto a mão.

---

Daí em diante, nada foi místico por preguiça. Foi treino.

Tarek ensinou o corpo dela a não desperdiçar força. “Força sem mira é barulho”, ele dizia, botando Isara pra subir a Pedra Partida com um saco de sal nas costas. Ela bufava, resmungava, ria no topo — o lobo por baixo da pele, contente como cachorro em rio.

Mirla ensinou a ler pulso e febre. “Chefe que não sabe estancar sangue vira estatística”, soltava, jogando tintura amarga como se fosse doce. Isara fazia careta, mas engolia. “Se for pra salvar o meu, meu gosto aguenta.”

Iane afinou o silêncio dela. “Não pisa — assina”, dizia, ensinando a deitar o peso no chão sem acordar a montanha. E, a cada queda, um aprendizado. (Inclusive a descoberta de que ovelha com medo voa — registre isso. Joelho que o diga.)

Isara não virava lobo por descontrole. Virava por escolha. Com doze luas completas, já tinha a transição na palma da mão — cinza de tempestade, listra de prata correndo da testa à cauda, olhos que refletiam a Lua como lago quieto. O cheiro dela, em forma de lobo, não era ameaça vazia — era aviso: “Se vier, venha certo.”

A marca? A marca acompanhava.

Em lua nova, dormia.

Em quarto crescente, coçava — presságio de passo importante.

Em cheia, ardia um pouco, mas não de dor: de chamado.

E a Lei que Sora sussurrou na orelha dela, uma noite, ficou tatuada por dentro:

“A Lua não escolhe a mais forte.

Escolhe a que segura o peso sem quebrar.

A que não confunde brilho com vaidade,

silêncio com medo,

ordem com obediência.”

Isara segurava. Sem exibicionismo, sem discurso. O respeito que ela arrancava não vinha do volume da voz, vinha da coerência. Quando mediava briga de faca emprestada, ela não fazia sermão; fazia acordo. Quando um caçador acusou um pescador de roubo, Isara desfez o nó seguindo pegada leve na lama — raposa. Os dois engoliram seco, e a clareira ganhou uma piada: “Se acusar à toa, a loba te acha até no pensamento.”

A alcateia começou a testar Isara do jeito que alcateia testa: no contrário. Deram a ela o que não é de ninguém — o problema — e esperaram. Ela dividiu carne do jeito certo (velho, pequeno, guarda; ela por último), colocou sentinela onde ninguém queria ficar, carregou peso que não era dela quando faltou braço, e não aceitou atalho quando o atalho custava caráter. Virou referência, mas sem trono. Trono ela não queria. Ela queria resultado.

E o mundo — esse bicho grande — percebeu.

---

Na virada dos quinze pra dezesseis, o Cobalto subiu além do normal, abarrotado de degelo. Uma anciã e dois filhotes da Serra ficaram presos numa pedra lisa, a correnteza lambendo o tornozelo deles com fome. Gritaram. O Vale ouviu e correu com corda e desespero. Todo mundo quis ser herói na pressa. Isara levantou a mão, pediu um segundo de silêncio, farejou o vento e decidiu: “A gente vai pelo frio.”

“Pelo frio?”, riram, sem maldade — só susto.

“Pelo frio”, repetiu, e entrou primeiro, a água mordendo até o osso. Onde morde mais é onde o fluxo é direto. Menos redemoinho. Menos mentira. Amarraram corda, fixaram na raiz funda, trouxeram um por um. Ninguém morreu. “Ir pelo frio” virou modo de viver: escolher o caminho difícil certo em vez do fácil errado. (Dica que serve de amuleto e de tapa na cara.)

Na virada dos dezessete, a marca parou de crescer. Não apagou; amadureceu. Prata espessa, como se alguém tivesse polido por dentro. Sora disse que, a partir dali, a Lua parava de desenhar e começava a cobrar leitura. Mirla entregou o frasco com três gotas do poço: “Pra quando tu esquecer que é feita de osso e achar que é feita de raio.” Tarek apertou o ombro dela sem quebrar: “Coragem não é pressa. É constância.” Iane riu curto: “E não esquece de rir quando puder. Herói mal-humorado é só chato com capa.”

Veio, então, a noite da Revelação — nada de carnaval, tudo de fundamento. Clareira dos Anéis, pedra velha, povo reunido. Representantes do Norte. Enviados do Leste. Anciãos com a história inteira nos olhos. Criança em silêncio por educação, adolescente em silêncio por susto. Isara entrou com a pele da primeira caça nos ombros e galhos secos nos cabelos. Sem joia. Sem medalha. Só aquilo: presença.

As anciãs riscaram na testa dela os quatro cortes do céu: nascente, poente, serra, rio. O tambor não chamou guerra, chamou alinhamento. E quando ela se ajoelhou no centro — não por submissão, por ritual — a Lua desceu um dedo de luz e encostou bem no meio da marca. A claridade percorreu a espinha como fogo frio. O ar mudou de peso. Os animais da mata calaram. E o que tinha sido sussurro no poço virou decreto em praça pública.

Sora ergueu a voz, emprestando a própria garganta pra quem não tem:

“Diz diante de todos: por que ela?”

E a Lua, que não tem pressa, respondeu sem poesia de enfeite — na lata:

“Porque ela carrega dois clãs no sangue e não quebra.”

(Filha de Norte e Leste, ainda que o papel não diga.)

“Porque ela escuta o que importa quando o barulho tenta mandar.”

(A árvore, a matilha, o próprio peito — e escolhe a escuta certa na hora certa.)

“Porque ela nasceu para fechar ferida, não para enfeitar cicatriz.”

(Vai cortar onde tem que cortar. Vai costurar onde tem que costurar.)

“Porque ela sabe que amor não é fraqueza — é fúria com guia.”

(E guia bom não joga o rebanho no penhasco.)

“Porque a coragem dela é disciplinada.”

(Se precisar ficar, fica. Se precisar ir, vai. E em ambos os casos, assume o preço.)

“Porque me escolheu primeiro.”

(E isso, pra mim, basta.)

Silêncio. Daqueles que não pesam — assentam.

Alguns chamaram de milagre.

Outros, de aviso.

Mas ninguém teve a cara de pau de negar: Isara era A Escolhida.

---

Nos dias que vieram, o mundo fez o que o mundo sempre faz quando encontra mulher com marca própria: tentou colar rótulo, tentou por cabresto, tentou domesticar o que só funciona livre. Chegaram oferendas, promessas, propostas. Os Alfas, com a fome antiga de poder, vieram com as histórias de sempre. As mães pediram bênção pros filhos. Os velhos, moldura. Os jovens, norte.

Isara ouviu tudo.

Guardou o que prestava.

Devolveu o resto com um olhar. (E, vamos combinar, aquele olhar não precisava de tradução.)

Não tinha pressa de ocupar cadeira nenhuma. Tinha pressa de aprender o mapa inteiro. Passou a treinar com quem sabia o que ela não sabia: com o pescador que lê a cor da água, com a fiandeira que conhece o tempo pelo cheiro da lã, com o batedor que sente mudança de vento no pelinho do braço, com a parteira que distingue o grito de dor do grito de medo. A marca não faz milagre sozinha. É ferramenta. Na mão errada, vira fetiche. Na mão certa, vira futuro.

Na véspera da cerimônia de celebração — nada de vínculo, nada de noivado, celebração da escolha — Isara sonhou. Neve negra, gosto de ferro, árvores com olhos. Acordou febril, o lobo debaixo da pele rosnando baixo. Não era pavor; era instinto. “Vai ter teste”, ela pensou. E sorriu torto. Teste ela conhecia desde o berço.

Mas isso é depois.

Aqui é o antes.

O que interessa, por enquanto, é que ficou explicado — sem meia-palavra, sem fumaça de palco — por que a Lua pôs a mão:

Porque Isara nasceu capaz de sustentar contrários sem vender a espinha.

Porque tem ouvido pra três mundos e fidelidade a um só: a verdade.

Porque morde com critério e guarda com honra.

Porque escolheu o caminho que morde, quando o caminho fácil piscou bonito.

Porque não ajoelha pra mentira — e a Lua não perde tempo com quem adora plateia.

E agora que você sabe por que a Lua pôs a mão…

vem comigo.

Sente o cheiro da neve.

Ouve o estalar dos galhos.

Vê a marca acender no escuro.

Porque essa história não é de conto bonito pra dormir.

É de dente, de sangue e de promessa.

E se você entrar…

vai ter que ir até o fim.