capítulo 2
CAPÍTULO DOIS — ANTES DA QUEDA
Narrado por Isara
A brisa esfriou de repente.
Não era o frio da noite.
Era outro. Frio que caminha. Frio que tem dono.
Frio que cheira a pinho úmido, ferro polido e tempestade guardada no bolso — Leste.
Abri os olhos no meu refúgio de pedra, ainda deitada, ainda loba, ainda crua.
E lá estava ele.
Kael.
De pé na borda do círculo, mãos vazias, peito subindo devagar, como se tivesse medo de me acordar… ou de me tocar.
Ele já tinha me visto nua mil vezes de ritual — corpo, símbolo, função.
Mas agora tinha outra coisa nos olhos.
Algo entre raiva e rendição.
Algo que dizia: “Eu devia te temer. Mas não consigo parar de te olhar.”
—
Voltei à forma humana num piscar.
Quando o corpo aprende a ouvir o instinto, a mudança não dói; destranca.
Pele de volta, cabelo caindo como véu escuro sobre os ombros.
Mesmo exposta, não encolhi.
Eu era loba, mesmo de carne.
— Veio me caçar? — perguntei, a voz ainda rouca de metamorfose.
Kael demorou. O olhar dele percorreu meu corpo como quem tenta entender um idioma antigo sem dicionário.
Deu um passo. Depois outro. Mais um — até o meu faro morder o cheiro dele.
Cinza. Tempestade.
Fúria contida.
Desejo enjaulado.
— Não consegui dormir — disse, por fim. — Os anciãos falaram que você some quando a cerimônia acaba. Eu… quis entender.
— Não há o que entender — rebati. — Isso aqui é o que resta quando o mundo tenta me encaixar à força.
— Você é o encaixe.
— Não sou — sussurrei, sem baixar os olhos. — Sou o fogo. Você queima comigo… ou foge.
Ele não fugiu.
Sentou ao meu lado na pedra fria.
Ficamos em silêncio por um tempo que não pertencia a ninguém.
Só o rio conversando baixo.
Só o vento assistindo.
Kael estendeu a mão e prendeu um fio do meu cabelo nos dedos, como se isso pudesse segurar o que ele não sabia nomear.
— Você me assusta — ele admitiu, num sussurro raspado.
— E você me atrai — respondi antes que o orgulho gritasse.
Foi a primeira vez que deixei.
Deixei meu rosto encostar no ombro dele.
Deixei meu corpo inclinar.
Deixei a pele querer pele.
Ele não recuou.
A palma dele pousou na minha coxa, subiu devagar, como quem toca prece.
— Eles querem te domar — disse.
— E você?
— Eu só queria entender por que me sinto pequeno quando você me olha.
O mundo ficou quieto nesse “pequeno”.
Pequeno não cabia num Alfa.
Mas coube.
— Você tem muitas — falei. — Lobas.
— Tenho.
— E todas obedecem.
— Porque é fácil domar quem já nasce dobrada.
Silêncio denso.
Bonito e perigoso.
— E eu? — perguntei.
Kael soltou o ar devagar.
— Você me dobra.
Não era confissão de fraqueza.
Era constatação de gravidade.
A blusa dele saiu do corpo como quem oferece abrigo, não convite.
Lã grossa com o cheiro de casa dele: ferro, pinho, fumaça.
Vesti rindo de canto.
— Tem ideia de quantas lobas dariam a cauda por essa blusa?
— Todas as que eu nunca quis — cortou, sem titubear.
A frase entrou em mim como dente.
Não sangrou por fora.
Arranhou tudo por dentro.
— Vai ficar assim? — ele perguntou, com um sorriso torto.
— Assim como?
— Despida. Selvagem. Impossível.
— Tem medo de se perder olhando?
O sorriso dele quebrou num riso real — raro como sol em dia de neblina.
A mão dele subiu da minha nuca pela coluna, devagar, mapeando cada vértebra como caminho pra perdição.
Os dedos falaram por ele: “Você é minha ruína. E eu quero cair com gosto.”
— Você não nasceu pra ninguém — ele sussurrou. — Mas mesmo assim… a Lua te deu pra mim.
— A Lua me marcou — corrigi. — Não me entregou.
Ele me puxou pela cintura.
Me encaixei no colo dele sem pensar.
Calor de vulcão por baixo de orgulho de montanha.
— Eu sou Alfa — ele murmurou no canto do meu pescoço. — Lobo. Líder. Mas contigo… eu esqueço tudo isso.
— Então o que eu sou, Kael?
Ele lambeu o próprio lábio, como quem prova a própria coragem.
— Minha Luna.
Dito cru.
Sem cerimônia.
Sem desculpa.
Verdade jogada entre dentes.
A palavra me rasgou, porque era tudo que eu queria ser e tudo que eu temia virar.
Luna é título se cair no lugar certo.
É prisão se cair no errado.
— Vai me marcar? — perguntei, seca.
— Não agora.
— Por quê?
— Porque te marcar seria fácil.
— E eu?
— Eu não mereço o fácil.
Ele me beijou.
Dessa vez, com vontade.
Sem medo de se perder.
Corpos colados, tempo derretendo, a relva virando altar.
Nos movemos juntos como se a floresta tivesse nos parido praquele instante.
Pele na pele.
Respiração quebrada.
Sussurros que não pediam — davam.
Quando ele entrou em mim, manteve os olhos abertos — como quem registra o mapa da casa onde quer morar.
Eu não desviei.
Porque ali, naquele segundo suspenso, eu fui Luna.
Antes de cerimônia.
Antes de marca.
Antes de qualquer palavra que tentasse nos caber.
A noite caiu inteira quando os nossos corpos tremeram juntos e o meu nome saiu da boca dele como quem sangra doce.
Depois veio o silêncio bom — o depois de quem foi inteiro.
Kael me segurou como se quisesse parar o mundo com os braços.
E eu deixei. Por um instante, deixei.
— Vem — ele murmurou, a mão ainda nas minhas costas nuas. — Vamos voltar… antes que percebam.
A minha testa no peito dele.
E ainda assim eu ouvi.
O “antes que…” veio com cheiro de medo.
Antes que quem, Kael?
Antes que o quê?
“… antes que venham separar.”
“… antes que a alcateia desconfie.”
“… antes que eu me perca de vez em você.”
Levantei devagar.
Corpo pesado de entrega.
Pele vestindo a blusa dele.
Cheiro dele em mim.
Cheiro meu nele.
Me senti marcada sem marca — Luna extraoficial, inteira como ferida fechando por dentro.
Kael me olhou de cima a baixo, queimando culpa e carinho na mesma chama.
“Eu queria te assumir”, diziam os olhos.
“Mas o mundo me esmaga se eu tentar”, confessava a sombra.
Ali, pela primeira vez, eu vi a fraqueza do meu Alfa.
Poder, ele tinha.
Coragem, nem sempre.
— Me promete uma coisa? — pedi, parando com um pé no musgo e outro no chão duro da clareira.
— Qualquer coisa.
— Se for pra me soltar… que seja de verdade.
Não me largue em pedaços.
Cuspir o meu nome na cara do mundo é o mínimo. Não esconda nos cantos da culpa.
Ele baixou os olhos.
Demorou.
Disse:
— Prometo.
Foi aí que eu soube que ele não ia cumprir.
—
Voltamos pela trilha que só a gente conhecia.
Mato úmido batendo na coxa, céu engolindo estrela, uma coruja marcando nosso passo com três cantos — sinal.
Algo no ar mudou.
Primeiro, discreto: um agridoce de erva esmagada que não cresce no Norte — manjerona do Leste, usada por batedor pra mascarar rastro.
Depois, forte: cinza recente. Alguém havia apagado fogo há pouco.
E, por fim, o que nenhum nariz queria admitir: cheiro de medo em couro de bravo.
Apertei a mão dele.
— Tem gente demais no caminho de pouca gente — falei baixo.
— São batedores do meu pai — ele disse, rápido demais. — Segurança.
Segurança não anda com passo tão leve.
Segurança não risca casca de árvore em padrão de vigia.
Minha palma passou pelo tronco e achou três marcas horizontais, recém-feitas, no nível da cintura.
Código simples: pronto, mirando, esperando.
— Você sabe que eu sei ler — disse, sem tirar os olhos da escuridão. — Não mente pra quem fareja verdade.
Kael não respondeu.
Apertou minha mão.
Apertar é carinho; às vezes, é pedido de desculpa com atraso.
A trilha afunilou perto do Ribeiro Seco.
O chão recebeu pegada pesada de bota do Leste — couro grosso, meia sola de prego.
Duas… três… seis.
Atrás delas, pegadas leves de fibra da Serra. Mistura feia. Aliança apressada.
— Vamos rápido — ele pediu.
— Lobo que apressa tropeça — devolvi, mas acelerei.
O que eu chamava de frio mordia meu umbigo: o instinto apontando o caminho certo, mesmo que morde.
Vai pelo frio, Isara.
Onde a água dói é onde a corrente é limpa.
O rio murmurou um aviso que só eu escuto.
Respirei.
Segui.
—
Foi quando a clareira principal acendeu ao longe — luz de tocha alta, tambor de ego — que Kael parou.
— Daqui pra frente… — começou.
— A gente finge que nada aconteceu? — completei, sem virar o rosto.
Silêncio.
— Você é Alfa, Kael.
Então me diga: o que fazemos com o que sentimos?
Ele engoliu seco.
— Enterra — falou, quase sem voz. — Até virar cicatriz.
Ri sem som.
Riso de faca.
— Então torça pra minha cicatriz não sangrar em cima do seu trono.
Soltei a mão dele.
E foi como arrancar um dente que ainda prestava.
—
Entrei na clareira primeiro.
Cabeça erguida.
Passo de quem sabe o próprio nome.
O círculo já tinha gente demais pra hora errada.
Anciãos do Norte de olho estreito.
Betas do Leste com o queixo pra cima e a mão perto do punho.
Mães reunidas, sussurro dobrado, cheiro de leite misturado ao sal.
Velkar, o pai de Kael, não estava — mas a ausência dele tinha peso.
No chão, areia remexida.
No ar, promessa tentando virar decreto.
Torren, batedor do Leste, fingiu olhar o céu quando me viu.
Fingiu — mas o faro entregou o susto.
Tarek, do meu lado do mundo, cruzou os braços.
Mirla estava encostada na sombra, olhos de quem já viu muito e ainda assim acha espaço pra mais.
Sora — minha velha de Lua — mexia num saquinho de sal, dedo nervoso desenhando constelação na palma.
Eu passei por todos com o meu silêncio de pedra.
Quem sabe ler, lê.
Quem não sabe, tropeça e inventa.
Kael entrou atrás, dois passos depois, máscara reencaixada.
Quando a máscara aperta, o olhar denuncia.
O tambor bateu uma vez.
Duas.
Três.
Eu senti a marca entre as omoplatas acender — não como festa, como aviso.
Parei no centro.
Os mais ansiosos deram um passo pra frente, o tipo de passo que cheira a fome.
Eu inspirei o bastante pra lembrar quem manda no meu corpo.
— Boa noite — falei, simples.
A palavra caiu redonda e rolou.
Ninguém respondeu.
Respeito de mentira é silêncio barulhento.
Os olhos de Kael cruzaram os meus por um segundo que esticou demais.
Tinha um pedido ali, tímido, atrasado, do tamanho da coragem que ele devia.
Eu não dei.
Nem era hora, nem era meu papel.
Se era pra doer,
que doesse bonito.
