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capítulo 1

CAPÍTULO UM — A PROMETIDA DA LUA

Narrado por Isara

A clareira cheirava a espera.

Seiva fria. Couro molhado. Cinza de fogueira velha.

E por baixo de tudo, aquele fio de ferro: sangue fresco riscando o chão em trilha sagrada.

Até os corvos, insolentes por natureza, calaram na copa retorcida do Norte.

O vento parou só pra ouvir.

E eu?

Eu passei no meio em passo de lobo —

não devo nada a Kael,

não devo nada à alcateia,

não devo nada nem à Lua que me marcou.

Eu sou a marca.

Meus pés descalços morderam a terra dura. Pedra enfiou agulha na sola. Não tremi.

Loba nascida em eclipse aprende a andar no escuro antes de abrir os olhos.

Os olhos deles em mim.

Machos com peito estufado e rabo invisível levantado.

Fêmeas com o queixo cedido por séculos.

Anciãos com o cheiro suave de fim.

Criança tentando lembrar de respirar.

Ao centro, o altar de pedra. Três degraus.

E a trilha de sangue do lobo que eu abati —

porque loba marcada não recebe oferta. Entrega.

Kael me esperava ali.

O Leste nos ombros, o sobrenome nos ossos.

Cinza de incêndio nos olhos. Queixo travado.

A marca dele: traço escuro, bruto, tatuado à força por geração de homem com pressa de parecer destino.

Ele era o herdeiro.

Eu… o elo que eles achavam que podiam amarrar.

Que pensassem.

Eles não me conheciam.

Acreditavam que prometer é possuir.

Que anunciar vínculo me põe de joelhos.

Que “prometida” é sinônimo de “posse”.

Eu não nasci pra caber.

Fui temperada na neve.

Curei espera com dente.

Aprendi silêncio com vento.

Meu lobo ri de grade.

Subi os degraus devagar.

Demorei de propósito.

Queria que sentissem o peso do meu silêncio, o ranger do ar na claridade da manhã.

Nos ombros, a pele da minha primeira caça do Norte.

Nos pulsos, as presas da minha mãe em bracelete.

Nos olhos… tempestade de baixa altitude.

Por dentro, a certeza simples e cortante:

prometida, sim. Possuída, nunca.

Lenda não vem com coleira.

— “Isara do Norte.” — a voz do ancião arranhou o ar, cerimonial, velha como o musgo — “Marcada pela Lua, escolhida para guiar, chamada a selar o vínculo com Kael do Leste, sangue de Alfa.”

Meu nome caiu na clareira como trovão em serra seca.

A mata deu um passo pra trás.

Eu mantive o queixo erguido.

— “Aceita ser promessa viva da união?” — ele perguntou, como quem oferece corda embrulhada de fita.

Respirei. O frio cortou por dentro.

Encarei Kael. Ele me olhou tentando costurar domínio na íris.

Mas o faro não mente: cheiro de medo fino, o incômodo de homem que percebe que a fêmea à frente não dobra.

— “Aceito o papel.” — falei.

— “Mas não o dono.”

A clareira estremeceu em silêncio.

Ancião pigarreou.

Mães puxaram os filhos como quem protege da palavra “sacrilégio”.

Kael franziu a testa, o orgulho mostrando os dentes.

— “Você ousa rejeitar o Alfa antes da marca?” — ele perguntou, grave sem raiz.

Firmei os pés.

Meu corpo é território da Lua.

— “Eu ouso ser o que a Lua escolheu.” — respondi. — “E ela não me fez sombra.”

Ele não respondeu.

Mas os olhos queimaram — não de desejo. De vaidade ferida.

Que arda.

O ritual seguiu. Lei é lei.

Linha de sal no chão.

Sangue aberto em oferenda.

Fogueira com folhas do Norte e do Leste — duas músicas na mesma chama.

Três toques de tambor no osso do mundo.

E o conselho selou:

eu era a prometida;

a fêmea da paz;

o elo sagrado ao herdeiro do Leste.

Por fora, carimbo.

Por dentro, tempestade contando relâmpagos.

As estrelas se esconderam.

Os corvos voltaram a graça.

A floresta sussurrou meu nome como reza de faca:

“Isara… Isara… Isara…”

Quem nasce pra quebrar ciclo não aprende a curvar.

A cerimônia se desfez. Barulho baixo, passos de sobra, olhos que evitam se ver.

O silêncio deles era medo fantasiado de respeito.

Kael me deu a última olhada antes de virar as costas — altivo, estudado, tentando fingir que não sentiu o tamanho do meu dente.

Eu vi o enrijecer do ombro dele quando passei.

Vi o desvio de olhar dos outros Alfas.

Eu não era só promessa de paz.

Eu era o lembrete incômodo de que paz cobra preço.

E quem manda sempre quis pagar em coluna alheia.

Esperei a clareira esvaziar.

Deixei tambor morrer.

Deixei brasa virar sombra.

Quando a noite ficou certa, tirei a pele da caça, larguei as presas no chão e segui nua pela trilha de musgo.

Vento batendo faca na pele.

Terra sugando o passo.

A cada movimento, algo que não era de ninguém voltava a ser meu.

Na beira do penhasco da Pedra Vazia, o céu mudou de humor.

Nuvem baixa, véu puxado.

A Lua ainda escondida — mas eu já a sentia no estômago.

Comigo é assim: a marca sabe antes do olho.

Fechei os olhos.

Abri os braços.

Deixei o vento atravessar a carne como quem passa portal.

A marca esquentou entre as omoplatas — quente bom, quente de verdade que chama pelo nome.

Primeiro doeu no osso.

Depois na pele.

Depois virou libertação.

Prata líquida correu pela espinha, acendeu calcanhar, chamou o resto do corpo pro jogo.

Eu me desfiz.

Me refiz.

Garra no lugar de dedo.

Pelo como labareda curta.

Olho de lago noturno.

O corpo alongando até perder nome, papel, rótulo.

Só loba.

Inteira.

Fora da jaula de qualquer frase.

Corri.

Com tudo.

Desci o penhasco em ziguezague que minha mãe me ensinou, rindo por dentro, deixando pra trás o nome que quiseram colar em mim.

A mata abriu como quem reconhece parente.

O mundo sumiu num borrão bom.

O silêncio voltou — não vazio, lar.

Meu lugar é um círculo de pedra escondido entre montanhas do Norte.

Musgo velho, rio baixo falando língua antiga, cheiro de menta brava.

Ali, voz humana não chega.

Aliança política não pega.

Marca vira respiração — não bandeira.

Ali, eu não era promessa, nem ameaça.

Era eu.

Deitei no coração do círculo.

Pelo úmido de neblina.

Pulso na boca.

Respiração em compasso com a água.

A Lua rasgou a nuvem com lâmina sagrada.

A luz encostou no meu dorso e a minha marca respondeu inteira.

Ela me reconheceu.

Ela sempre me reconhece.

Uivei.

Alto.

Largo.

Da barriga.

Uivo que corta medo no meio,

uivo que busca os seus,

uivo que avisa pros outros:

— Eu não pertenço a ninguém.

E se vierem com corrente, eu mordo até o metal lembrar que também é pó.

A noite mordeu de volta.

Eu sorri com dente.

Que venham pelo frio.

Eu sei o caminho.

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