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Capítulo 2

Três semanas antes – Narrado por Ethan

O pior lugar para se pensar em humanidade é dentro de uma empresa bilionária.

Geralmente, quando alguém começa uma frase com “mas veja bem, ele tem um coração”, é porque uma falha grave está prestes a ser encoberta por emoção.

E emoção... é disfuncional.

Ou era o que eu costumava acreditar.

Naquela terça-feira cinzenta, tudo que eu queria era entrar na maldita sala de reunião, apresentar as métricas da fusão com Hoshikawa e sair de lá antes do meu café esfriar.

Mas a sala estava ocupada. E barulhenta.

Parei no corredor, irritado. A voz feminina que atravessava as paredes de vidro não era alta, mas era firme. Quase desafiadora. Uma cadência que prendia a atenção, mesmo quando você não queria. Eu não queria.

Olhei pela divisória.

Olivia Vasques.

A advogada júnior. A brasileira. Recrutada direto da universidade com mais diplomas do que anos de vida. Tinha fama de brilhante e de... excessivamente ética. Isso costuma ser um defeito nesse meio.

Ela estava de pé, apoiada sobre a mesa, discutindo com três sócios e o coordenador do setor fiscal como se fosse ela quem mandasse ali.

— Ele não falsificou nada. Só cometeu um erro no preenchimento. Foi um formulário online, em inglês técnico, e ele está aqui há menos de dois meses — dizia. — Isso não justifica demissão por "má conduta".

O estagiário a que ela se referia estava sentado no canto, encolhido. Estrangeiro também. Jovem. O tipo que não dura muito por aqui.

Pensei em sair. Aquilo não me dizia respeito. Mas alguma coisa... me fez ficar.

Talvez fosse a forma como ela argumentava. Não era uma defensora impulsiva. Ela era metódica. Brava, sim, mas com razão. Certeira. Não hesitava. Não pedia desculpas por estar certa.

Ela sabia que estava incomodando. Sabia que estavam tentando silenciá-la com hierarquia. E mesmo assim, não parava.

Corajosa demais pra alguém que ainda nem tem sala própria.

— E humanamente, o que é? — ela disse, encarando os outros. — Esse garoto tem 22 anos. É refugiado. Estuda à noite. Vocês sabiam que ele pega três conduções pra chegar aqui? Ele pediu ajuda pra entender o formulário, e ninguém teve tempo. Agora ele é o culpado?

Silêncio.

Por um instante, desejei que ela olhasse na minha direção.

Ela não olhou.

Porque não sabia que eu estava ali.

Porque estava ocupada demais defendendo alguém que o mundo teria esquecido em cinco minutos.

Quando a reunião acabou, ela saiu da sala com os olhos ainda acesos, os ombros erguidos. Passou por mim no corredor, sem perceber. Sem hesitar.

Eu fiquei ali mais um instante.

O café, agora, estava morno.

Mas o nome dela, Olivia Vasques, queimava na minha cabeça como se tivesse sido recém-descoberto.

Mais tarde, revisei o histórico de desempenho do estagiário.

Solicitei pessoalmente que ele fosse realocado em vez de desligado. Ninguém precisaria saber.

Também não comentei nada com ela.

Nem elogios. Nem advertências.

Mas naquela noite, pela primeira vez em muito tempo, eu me peguei digitando o nome de uma funcionária no sistema interno da empresa.

“Olivia Vasques.”

Duas vezes.

Não sei exatamente o que estava procurando.

Talvez... só uma lembrança de que, no meio dessa selva corporativa, ainda existia alguém que enxergava seres humanos em vez de peças de reposição.

Ou talvez — e isso eu nunca admitiria —

... porque pela primeira vez em muito tempo, alguém me fez lembrar como é ser visto.

Narrado por Olivia

Eu sabia que estava cavando a própria cova, mas não consegui calar a boca.

O calor subia pelas minhas bochechas como lava. Eu não estava nervosa. Estava indignada. O tipo de indignação que queima atrás do estômago, que faz as palavras escaparem antes de serem filtradas pela lógica ou pelo bom senso.

— Ele não falsificou nada. Só cometeu um erro no preenchimento — insisti, ouvindo a minha própria voz ecoar na sala pequena. — Foi um formulário online, em inglês técnico, e ele está aqui há menos de dois meses...

A cara da sócia à minha frente era a mesma de quem assiste alguém se afogar lentamente e não pretende estender a mão. Internamente, eu sabia que não devia confrontar os superiores assim — ainda mais por um estagiário que, para eles, era tão descartável quanto um copo de plástico.

Mas eu olhava pro Alan, sentado no canto, e pensava: Poderia ser meu irmão. Poderia ser eu.

A gente só precisa de uma chance. Às vezes, só de alguém que diga: “eu te vi”.

Eu disse.

Com todos os olhares pesando sobre mim, mesmo sem saber se sairia dali demitida, continuei:

— E humanamente, o que é isso?

Silêncio. Olhares baixos. A sócia passou a mão no próprio queixo, claramente controlando a resposta. Eu sabia que estava perdendo pontos. Que provavelmente me rotulariam como "emocional", "intensa", "difícil de lidar".

Mas, de repente, senti.

Um arrepio na nuca. A estranha sensação de estar sendo observada.

Desviei os olhos discretamente, e então vi.

Ele.

Ethan Blake.

Apoiado à porta de vidro, com um copo de café na mão e aquele maldito olhar de quem escaneia tudo e todos como se o mundo fosse um tabuleiro e ele o único jogador com as peças certas.

Meus músculos se retesaram. Merda.

Não havia nada mais perigoso do que atrair a atenção de Ethan Blake — o CEO mais jovem da história da empresa, conhecido por cortar departamentos inteiros com a frieza de quem apaga um e-mail.

Tentei disfarçar o pânico com a mesma rigidez com que mantinha a coluna ereta. Continuei a reunião, mesmo com a presença dele martelando no canto da minha visão.

E ele... continuava lá.

Imóvel. Observando.

Se eu fosse mais ingênua, talvez achasse que ele estava ali por acaso. Mas nada em Ethan Blake é acidental.

Quando a reunião terminou e eu cruzei o corredor, senti seu olhar me acompanhando. Mas ele não disse nada. Não sorriu. Não acenou. Apenas me acompanhou com os olhos como quem avalia um projeto.

Ou uma ameaça.

No elevador, de volta à minha mesa, meus joelhos quase cederam. Só percebi que segurava a respiração quando a porta se fechou e eu pude soltar o ar.

“Pronto”, pensei. “Agora ele sabe meu nome. E talvez amanhã eu não esteja mais aqui.”

Mas, no fundo, algo me dizia que ele já sabia meu nome antes disso.

E por algum motivo que eu ainda não compreendia... ele não parecia bravo.

Ele parecia intrigado.

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