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Capítulo 03. A luz e as sombras

"Entre o fogo da paixão e o peso da coroa... alguns destinos precisam ser queimados para renascer."

A neve chegou antes do esperado. Nos primeiros dias do mês da tempestade prateada, flocos finos começaram a cair sobre as muralhas de Aldrion, tingindo as torres de branco e silenciando até o som do vento. As pedras ancestrais, acostumadas à fúria do verão e à calmaria da primavera, agora tremiam sob o manto gelado. As árvores do jardim real, antes verdes e vibrantes, haviam se transformado em espectros cobertos de gelo, e o céu... o céu parecia feito de vidro fosco, imóvel, opaco, inquebrantável.

No salão de mármore negro, o trono permanecia vazio. Mas ninguém ousava sequer sussurrar. Todos os olhares estavam fixos nas portas duplas, esperando, ou, temendo, a chegada de um homem que há muito tempo não pisava naquele chão sagrado. Então ele chegou. Aric Daryen. O primogênito da casa Daryen. O herdeiro que recusou a guerra para abraçar algo ainda mais perigoso: a política. Um homem moldado não pelo aço, mas pelas intrigas, alianças ocultas e jogos de poder.

Caminhava como quem não precisava provar nada. Vestia negro sobre negro, tecido tão fino e perfeito que parecia absorver a luz, e sobre os ombros, um manto de pele cinza que arrastava pelo chão como a cauda de um lobo prestes a atacar. Seus olhos... ah, seus olhos eram de um azul quase branco, frios, translúcidos como o gelo da mais cruel nevasca. Diferente de seu irmão Kaelan, que trazia nas mãos as marcas da guerra, Aric não carregava espadas nem vestia armaduras. Sua única arma era a palavra, afiada, venenosa e letal.

E seu rosto... seu rosto era uma máscara. Fria. Imperturbável. À medida que passava, a multidão se curvava em reverência, mas ele não parecia vê-los. Seu olhar atravessava a todos, fixo no único homem que, naquele instante, merecia sua atenção. Kaelan estava ali. Firme. Sério. Um sorriso contido e perigosamente afiado desenhava-se em seus lábios.

— Meu irmão. — A voz de Aric soou baixa, porém firme. Ele fez uma breve reverência, nada além do necessário. — Ainda vivo, pelo que parece.

— Lamento decepcioná-lo. — Kaelan avançou, altivo, com a postura de quem liderava exércitos e derrubava muralhas. — Achei que nunca mais pisaria no salão sagrado de Aldrion.

— As notícias voam... — Aric respondeu, deslizando as palavras como se testasse lâminas afiadas. — Ouvi dizer que acolheu uma forasteira em nossos salões. Quer dizer que eu não posso vir para este lado do palácio, mas uma forasteira qualquer pode?

Kaelan não vacilou. Seu rosto permaneceu impassível, impenetrável.

— Temos uma visitante… e ela está sob minha proteção. É hóspede oficial da corte. O Conselho aprovou.

O sorriso que se formou nos lábios de Aric não trazia calor. Era feito de gelo e veneno.

— Um gesto ousado de sua parte. — Sua voz parecia uma seda prestes a rasgar. — Acolher uma mulher sem linhagem. Sem sangue nobre. Sem clã…

Kaelan ergueu o queixo, e seus olhos brilharam como lâminas refletindo fogo.

— E ainda assim, ela carrega a Marca da Lenda. — A voz dele tinha peso, autoridade e um toque de desafio. — Talvez os deuses saibam algo que nós não sabemos.

Aric se aproximou até quase encostar o ombro no do irmão. O cheiro de couro, metal frio e gelo parecia emanar dele.

— Ou talvez... os deuses estejam apenas brincando com você. — Sussurrou, antes de se afastar com a mesma elegância cortante com que havia chegado.

***

No salão das concubinas, o som seco de um cálice se partindo ecoou como uma sentença. Meilin, que antes era a favorita da corte, estava de pé, os olhos estreitados e faiscando com uma fúria contida. Seus dedos ainda tremiam sobre os cacos de cristal espalhados sobre a mesa de jade.

— Hóspede oficial? — Sua voz cortava o ar como uma lâmina recém-forjada. — Ela chegou há duas luas. E já tem um título?

As outras concubinas, espalhadas por almofadas de seda e véus dourados, hesitavam em respirar. Sabiam que Meilin era muito mais que uma pessoa com astúcia. Ela era o próprio veneno disfarçado de mel. Ardilosa. Perigosa. Capaz de destruir impérios com um sussurro.

— O príncipe Kaelan a protege... — murmurou uma das mulheres, com a voz tão fina que quase se perdeu entre o tilintar dos sinos ao vento. — Dizem que viu algo nela... algo ligado à Fênix.

Meilin apertou os olhos, o rosto pálido agora tingido de vermelho.

— Ele viu um capricho. — Sua boca se curvou em um sorriso venenoso, quase felino. — E como todo capricho... vai passar. Mas enquanto durar, nós... precisamos agir.

Ela deslizou até o biombo florido no canto do salão, suas mangas de seda roçando pelo chão como serpentes silenciosas. Atrás do biombo, alguém aguardava. Oculto. Na penumbra. Meilin ajoelhou-se, abaixando a cabeça. Sua voz saiu num sussurro envenenado.

— Temos um problema crescente, alteza.

Das sombras, uma silhueta emergiu. Rosto anguloso, elegante, moldado em pedra e gelo. Cabelos escuros, presos por um fio prateado. E aquele sorriso... frio. Cruel. Precisamente calculado. Aric. Ele cruzou os braços, como quem observava uma peça de xadrez prestes a ser derrubada.

— Então... vamos podar a erva daninha antes que ela floresça demais. — Sua voz era baixa, mas carregava um tom de sentença.

***

Enquanto isso, no alto da torre leste, Celine observava a neve cair. O branco infinito parecia engolir o mundo, apagando fronteiras, caminhos e certezas. Do parapeito, ela via os telhados do palácio desaparecerem sob a dança hipnótica dos flocos. Agora tinha permissão para caminhar pelos jardins e corredores, sob horários estritos e constante vigilância. E claro... nunca estava realmente sozinha. Linhuá, sua guarda disfarçada e amiga inesperada, caminhava sempre a seu lado, olhos atentos, sorriso fácil.

— Estão cochichando sobre mim o tempo todo. — Celine cruzou os braços, apertando o manto contra o corpo. — Me chamam de feiticeira. De impostora. De... aberração.

Linhuá sorriu de canto, ajeitando uma mecha de cabelo escuro que escapava do coque.

— E você é? — perguntou, arqueando a sobrancelha, com aquele brilho maroto nos olhos.

Celine respirou fundo, e pela primeira vez sorriu, ainda que sem humor.

— Ainda estou decidindo.

Ambas riram, cúmplices. Mas por trás da leveza, uma verdade silenciosa pesava no peito de Celine. Todas as noites, ela sonhava com a Fênix. Sonhava com fogo, asas em chamas, e uma voz antiga que ecoava, pulsando junto à marca em suas costas. A marca ardia. Queimava. Como se quisesse lembrá-la de algo que ela ainda não compreendia. E um nome... sempre o mesmo... sussurrava em sua mente como um tambor ancestral: Althera.

***

Na manhã seguinte à sua nomeação como hóspede oficial, os corredores do palácio ferviam como um caldeirão de boatos, olhares desconfiados e sussurros venenosos. Alguns acreditavam que ela era uma enviada dos deuses. Outros, que se tratava de uma bruxa ocidental, uma impostora vestida de seda. Havia até quem jurasse tê-la visto conversar com as chamas, ou que sua pele brilhava na penumbra, como se carregasse o fogo dentro de si.

Mas, acima de todas as lendas, uma verdade cercava como uma muralha invisível: Ela estava sob a proteção direta do Príncipe Herdeiro. E isso, em Aldrion, significava mais do que qualquer sangue nobre. Naquela tarde, durante um passeio rigidamente vigiado pelos jardins do norte, Celine percebeu, pela primeira vez, que alguém a observava além dos olhares curiosos e maldosos habituais. Havia algo mais ali. Uma presença. Quando a voz soou às suas costas, era tão suave quanto uma lâmina deslizando pela seda.

— Perdoe-me a ousadia... — disse, e cada palavra parecia escolhida com precisão cirúrgica — ...mas a curiosidade venceu a prudência.

Celine se virou, e seus olhos encontraram um homem de presença tão imponente quanto perturbadora. Aric. Sem o manto, trajava apenas uma túnica de linho escuro, ajustada, simples, mas impecável. Os cabelos presos por um cordão prateado, como o de alguém que não precisava provar seu status, ele simplesmente era. Seus olhos, de um azul glacial, analisavam-na como se decifrasse um quebra-cabeça antigo, e o sorriso... um jogo perigoso entre charme e ameaça.

— Sou Aric. Irmão primogênito do Príncipe Kaelan. — Sua voz soou com uma polidez quase teatral.

Celine piscou, cruzando os braços.

— Ah... Então é você. O homem que deseja ver o trono ensanguentado, conspirando contra o próprio irmão.

Ele arqueou uma sobrancelha, surpreso, mas não ofendido. Curioso, até. Então riu. Um sorriso lento, quase indulgente, surgiu em seus lábios.

— Que julgamento apressado... — disse ele, com a voz suave como seda, mas com um fio cortante. — Mal chegou a este império e já se vê como guardiã da verdade?

Deu um passo à frente. A expressão ainda cordial, mas com algo de predatório no olhar.

— E o que mais lhe contaram sobre mim? Que desejo usurpar o trono? Que sou um traidor? Ou foi sua “intuição divina” que sussurrou essas palavras ao seu ouvido?

Celine não recuou. Manteve o olhar fixo como se quisesse cravar uma lança.

— Vejo um homem que finge esperar..., mas já traçou o caminho da destruição.

Aric gargalhou.

— E eu vejo uma forasteira intrometida, com olhos de julgamento e pés sem raízes neste chão. Uma presa... fácil demais.

Ele cruzou os braços com calma. Mas cada músculo parecia à espreita, como um guerreiro em pausa, não em paz.

— Digamos que as pessoas exageram. Esse título de “traidor” é... injusto. Prefiro “observador”. Não gosto de agir antes de entender o terreno. — Suas mãos se uniram atrás das costas.

— E o que vê... quando olha para mim? Já que é tão observador. — A voz de Celine saiu seca, afiada como lâmina recém-forjada.

Aric inclinou levemente a cabeça. Os olhos a percorreram de cima a baixo, não com desprezo, mas com frieza analítica. Como se ela fosse uma peça rara, colocada por engano no tabuleiro errado.

— Vejo um enigma. Uma peça deslocada. De outro tabuleiro. — Seu sorriso se ampliou: cínico, encantador e, ao mesmo tempo, profundamente ameaçador. — Mas... se me permite dizer... bela demais para ser apenas um peão.

Celine apertou os braços ao redor do corpo, mas não desviou o olhar.

— Estou longe de ser peça de qualquer jogo.

Aric respirou fundo, olhos semicerrados. Sorriu mais uma vez, um sorriso carregado de manipulações antigas, traições calculadas e vitórias silenciosas.

— Aí é que está... até quem se recusa a jogar... já está no jogo.

Com um aceno elegante, quase zombeteiro, retirou-se, deixando atrás de si um rastro de perguntas que queimavam mais do que qualquer resposta.

***

Naquela noite, quando os sinos da quarta vigília soaram sobre as torres, Celine foi convocada aos aposentos privados de Kaelan. Linhuá, sempre atenta, ajudou-a a se vestir. Escolheu um hanfu azul-acinzentado, de tecido leve e delicado, ajustado na cintura por uma faixa escura. Prendeu seus cabelos de forma simples, com uma fita de seda, deixando alguns fios soltos que emolduravam seu rosto.

— Está nervosa? — perguntou Linhuá, fingindo casualidade enquanto ajeitava o laço nas costas dela.

— Eu nunca sei o que esperar dele. — Celine respirou fundo, olhando pela janela fechada. A neve se acumulava, silenciosa, como se o mundo inteiro estivesse segurando o fôlego.

Os corredores do palácio estavam mergulhados num silêncio denso, quebrado apenas pelo rangido ocasional da madeira ou pelo som abafado do vento batendo nas vidraças. As tochas acesas ao longo das paredes lançavam sombras inquietas, que dançavam e desapareciam à medida que ela caminhava, escoltada por Linhuá até a porta do salão menor.

Lá dentro, Kaelan a aguardava, em pé, diante de uma lareira acesa. As chamas projetavam sombras sobre seu rosto, endurecendo ainda mais suas feições já marcadas pela guerra e pelo peso da responsabilidade. Quando ela entrou, ele se virou. Seu olhar, sempre firme, parecia diferente naquela noite. Mais denso. Mais... vulnerável, talvez?

— Fiquei sabendo que você viu meu irmão Aric hoje. — Sua voz era baixa, mas carregada de tensão.

Celine manteve a postura.

— Sim. Ele me procurou.

Kaelan apertou levemente o maxilar, e seus olhos faiscaram.

— E...?

— Ele se apresentou como alguém que estuda um inimigo. Mas não precisa se preocupar... Já li o que havia por trás dos sorrisos dele. Ele me avaliou, como se soubesse exatamente onde me posicionar em um tabuleiro. — Ela cruzou os braços, firme.

Kaelan caminhou lentamente até ela, os passos tão silenciosos quanto os flocos de neve que caíam lá fora. O calor da lareira parecia se misturar ao calor que emanava dele, criando uma bolha desconcertante de tensão.

— Aric não é como eu. — Sua voz soou mais baixa, mais grave. — Ele coleciona peças. Usa-as até quebrarem. E quando quebram... ele sorri.

O silêncio se estendeu, pesado. Celine respirou fundo.

— Você tem medo dele?

Kaelan parou. Seu olhar se perdeu momentaneamente nas chamas.

— Eu nunca tive o luxo de sentir medo. — Ele ergueu os olhos para ela, e por um segundo, a máscara de príncipe, de guerreiro, de herdeiro... parecia trincar. — Mas com você... as certezas do reino começam a vacilar.

Ela estremeceu. Havia algo naquele tom. Uma mistura de cansaço, desejo e um peso que ela não sabia nomear.

— Por que me chamou aqui, alteza? — Sua voz saiu mais suave do que gostaria.

Ele estendeu a mão, revelando um anel antigo. A pedra âmbar no centro parecia pulsar sob a luz do fogo.

— Este anel pertenceu a uma das Guardiãs da Lenda. Dizem... que se a lenda for verdadeira, ele reconhecerá o sangue da Fênix. — Seus olhos enigmáticos buscaram os dela. — Se for mentira, ele não fará nada. Mas se não for... então não há mais como negar. Nem para mim. Nem para eles. Nem para você.

Celine olhou para o anel, depois para ele. Seus dedos tremeram levemente quando aceitaram a joia. Assim que o colocou no dedo, a pedra âmbar brilhou, uma luz quente, viva, intensa. Por um instante, o mundo pareceu desacelerar. O ar se tornou mais denso, o fogo mais alto, e o som do vento lá fora... desapareceu. Kaelan segurou a mão dela com força. Seus dedos eram firmes, quentes, decididos.

— Agora todos verão. — Sua voz tinha o peso de uma promessa e o tom cortante de uma ameaça. — Você não é uma prisioneira. Nem uma convidada. Você é um presságio, a escolhida…

***

Enquanto isso, nos corredores vazios do templo ancestral, duas sombras se encontravam em segredo. Meilin caminhava lentamente, seus passos ecoando sobre o mármore frio, até desaparecer atrás de um biombo de seda pintado com flores de lótus e dragões. Ajoelhou-se com elegância, cabeça baixa, como se prestasse reverência. Da penumbra, uma voz cortou o silêncio.

— O anel confirmou. — Meilin falava entre dentes, quase rosnando. — Ela é a escolhida.

Aric emergiu das sombras. Seu rosto, como sempre, era uma máscara impecável de controle e frieza. As mãos entrelaçadas atrás das costas, e um sorriso gélido curvava seus lábios.

— Perfeito. — Ele inclinou a cabeça, avaliando cada palavra antes de dizê-la. — Então será ainda mais interessante... quando ela desaparecer.

— Mas Kaelan... — Meilin hesitou, olhando para o chão, como se a simples menção do nome dele fosse suficiente para trazer consequências.

— Vai culpar o destino. Ou a guerra. Ou a si mesmo. — O sorriso dele se alargou, venenoso. — E nesse caos... o trono, enfim, não sentirá mais o peso da fênix.

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