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Capítulo 02. A fenda do tempo (Parte II)

Do alto da torre, Celine ouviu os sons que cortavam a noite: tambores, gritos, música, cheiro de incenso e carne assada flutuando no vento. Era dia de festival, Linhuá lhe explicou, o Festival da Caça à Lua, uma cerimônia ancestral onde os nobres se reuniam para honrar os espíritos da floresta, celebrar as vitórias nas batalhas e, claro, exibir suas riquezas, alianças e... rivalidades.

— O Príncipe ordenou que você esteja presente. — Linhuá disse, ajudando-a a se levantar. — Não me pergunte por quê. Eu mesma... não entendo.

O coração de Celine disparou. Presente? Num festival da corte? Por quê? Para ser humilhada? Para ser julgada em público? Ainda trêmula, deixou-se vestir. Linhuá trouxe um hanfu claro, de tecido simples, mas limpo, bordado com flores cinzentas e uma fita azul no centro. O cabelo foi preso em um coque despretensioso, com alguns fios soltos moldando o rosto pálido. Quando saiu da torre, escoltada por dois guardas, o choque foi imediato. O palácio era majestoso, opulento, cruel em sua beleza. Colunas de mármore negro, paredes adornadas com tapeçarias douradas, fontes de jade, e escadarias que pareciam tocar o céu.

E então, os olhares. Centenas de olhos. Julgando. Desprezando. Avaliando. Nobres vestidos em sedas reluzentes, com penteados elaborados, leques, joias, perfumes enjoativos... e risinhos abafados. Mas nenhum olhar foi tão cortante quanto o das concubinas reais. Entre elas, uma se destacava. Deslizava pelo salão como uma sombra sedosa: Lady Meilin. De beleza estonteante, olhos de jade, pele alva, cabelos negros como a noite e uma expressão doce... falsa como veneno destilado em mel. Ela se aproximou, sorrindo com a delicadeza de uma lâmina recém-afiada.

— A nova curiosidade do Príncipe... — sua voz era doce, melodiosa, e ao mesmo tempo cortante como seda afiada. — Que pena... ele costuma se cansar rápido de novas curiosidades.

O sangue de Celine ferveu. Um calor desconfortável subiu-lhe do estômago até o rosto. Apertou os punhos, os dedos tão tensos que quase cravavam nas palmas. Lutava contra o impulso de reagir... mas até quando? O peito subia e descia, pesado, como se as paredes do salão estivessem se fechando ao seu redor. Uma mistura sufocante de humilhação, indignação e fúria queimava sob sua pele. Kaelan estava ali. Alto. Imponente. Uma muralha viva, cercado de conselheiros, generais e da própria Imperatriz Vanyra, cuja presença era tão opressora que parecia dobrar o ar à sua volta.

Mesmo sentada, exalava uma autoridade que poderia calar campos de batalha inteiros apenas com o levantar de uma sobrancelha. Seus olhos, frios, cortantes, de um tom pálido que lembrava vidro sob neve, a miravam de longe. Havia neles uma mistura perigosa de desconfiança, cálculo... e uma curiosidade afiada como uma lâmina recém-forjada. E então, os olhos de Kaelan encontraram os de Celine.

Por um instante, tudo desapareceu. O som. As cores. As pessoas. O salão inteiro virou um borrão indistinto. Só eles dois existiam ali. Ele a olhava como quem observava um milagre... ou uma maldição. Algo que não deveria existir, e, ainda assim, existia. Mas, tão rápido quanto veio, ele desviou o olhar. Frio. Controlado. Indecifrável. E Meilin sorriu. Lenta, venenosa. Saboreando, no fundo da garganta, o gosto da vitória que acreditava ter conquistado.

— Mas se enganou... — Celine sussurrou para si mesma, mais um pensamento do que um som.

O peito dela arfava. Os músculos, tensos. Algo queimava sob sua pele, e não era apenas raiva, era algo mais. Como se a própria marca da fênix pulsasse, latejando em brasas invisíveis, acendendo-se como se respondesse a um chamado mudo, vindo das próprias entranhas daquele mundo. Meilin virou-se de lado, satisfeita, lançando lhe aquele olhar de desdém que mulheres seguras de sua posição usam como arma. Mas, no exato momento em que seus pés começaram a se afastar, uma voz cortou o ar. Firme. Clara. E absolutamente letal.

— Sabe… — A voz de Celine saiu sem tremor, carregada de aço e fogo. — É curioso... como certas pessoas precisam se agarrar a títulos... para se sentirem importantes.

O sorriso de Meilin congelou. Como porcelana trincando sob pressão. Celine deu um passo. Pequeno, mas tão carregado de significado que Meilin enrijeceu no mesmo instante.

— Imagino que deva ser... — Ela arqueou uma sobrancelha, o olhar afiado como lâmina recém polida. — Desesperador... ser esquecível. Viver na sombra dos caprichos de um homem... pra ter algum valor.

O silêncio caiu como um manto de chumbo. Pesado. Absoluto. Os músicos, que tentavam disfarçar, simplesmente... pararam. Os leques das damas congelaram no ar. Até o som do vento pareceu sumir. Por um segundo, Meilin ficou ali. Estática. Os olhos arregalados, as pupilas tremendo, o rubor subindo-lhe do pescoço até as maçãs do rosto, como uma chama descontrolada.

— Como... OUSA?! — sibilou, a doçura derretendo, dando lugar a uma criatura muito mais próxima de uma serpente prestes a dar o bote. Mas não teve tempo.

— Silêncio! — A voz da Imperatriz Vanyra cortou o salão como um raio riscando o céu antes da tempestade. Fria. Afiada. Irrefutável.

Ela se ergueu, e quando Vanyra se erguia... até o próprio chão parecia tremer.

— Me cansei da sua voz irritante — declarou, seca, a cada palavra pingando veneno e autoridade.

Seu olhar, aquele olhar… deslizou como lâmina até encontrar os olhos de Celine. E naquele exato momento, Celine entendeu com uma clareza cortante: não estava diante de uma mulher qualquer. Estava diante de um império inteiro, encarnado em carne, sangue e coroa.

— Levem-na. — Sua voz saiu baixa, perfeitamente controlada, como se nem valesse o esforço elevar o tom. — De volta à torre. Agora.

Dois guardas se adiantaram imediatamente, seus passos ecoando como trovões sobre o mármore do salão. As mãos de ferro se fecharam sobre os braços de Celine, que, por instinto, deveria ter se encolhido. Deveria. Mas não. Ela ergueu o queixo. O olhar firme, faiscando. A mandíbula cerrada, os ombros retos. Postura de alguém que, se fosse cair... não cairia de joelhos. Kaelan permaneceu imóvel. As mãos, antes relaxadas, agora cerradas em punhos, os “nós” dos dedos, brancos.

Seus olhos seguiam cada movimento dela, e embora seu rosto permanecesse inexpressivo... algo fervilhava por trás daquela máscara de gelo. Meilin ajeitou, com toda a elegância possível, as mangas do hanfu de seda, tentando disfarçar o tremor dos próprios dedos. Sabia que, apesar da vitória aparente, não havia enfrentado uma mulher comum. E quando Celine cruzou os portões do salão, arrastada pelos soldados, ouviu o sussurro seco, cortante, da imperatriz, mais para si do que para qualquer outro:

— Esta forasteira precisa aprender... que em Aldrion, até mesmo o silêncio tem um preço.

E aprisionada novamente na frieza implacável da torre norte, Celine apertou os joelhos contra o peito. O manto fino tremia sobre seus ombros. O que era aquilo? Medo? Raiva? Desespero? Ou algo mais perigoso... uma vontade indomável, feroz, selvagem... de não se render? A marca em suas costas pulsava. Quente. Viva. Como se as chamas da fênix que carregava tivessem começado, naquele instante, a se acender de verdade.

— Se acham que vão me dominar... — sua voz saiu baixa, rouca — que venham. Vão descobrir... que sou muito mais do que imaginam.

Do lado de fora da torre, a lua começava a se esconder atrás das nuvens. E Celine mantinha os olhos fixos no pequeno círculo prateado que se projetava no chão, um feixe de luar tímido, filtrado pela abertura estreita no teto. Aquilo parecia tudo... menos uma janela para a liberdade. O peito apertava. O nó na garganta queimava, áspero, sufocante. Estava perdida. No tempo. No espaço. E, talvez... no próprio destino. Não sabia se algum dia conseguiria voltar. Nem se realmente desejava voltar.

— Queria saber que horas são... — sussurrou, amarga. — Queria um lanche. Batatas fritas. Um sorvete. Um copo bem gelado de refrigerante... — apertou os olhos, sufocada. — Queria meu celular. Acesso à internet... Céus, como conseguem viver sem tecnologia?

O som de passos leves rompeu seus devaneios. A porta rangeu, e Linhuá entrou, segurando um embrulho de tecido fino, as mãos trêmulas, os olhos arregalados.

— O Príncipe... — sua voz soou mais surpresa do que qualquer outra coisa — pediu que isso fosse entregue... a você.

Celine respirou fundo, hesitante. Seus dedos deslizaram pelo laço de seda, desfazendo-o. Dentro, um manto leve, de um tecido que ela jamais viu antes. Macio como brisa, forte como aço. Bordado em dourado estava o símbolo da Casa Daryen, a Fênix de asas abertas, envolta em chamas que pareciam dançar sob a luz da lua. Um gesto. Um sinal. Mas também... um gesto perigosamente ambíguo. Ela segurou o manto contra o peito, o coração disparado. Não sabia dizer o que era pior: continuar presa naquela torre... ou ser libertada dentro de um jogo de poder que poderia, lenta e silenciosamente... destruí-la.

***

Na manhã seguinte, o som metálico de armaduras rompeu o silêncio da torre, ecoando escada acima. Passos firmes. Autoridade em cada batida. Logo, um arauto real, ladeado por dois soldados de armaduras negras com o brasão flamejante dos Daryen, bateu à porta com o punho fechado.

— O Príncipe Kaelan exige sua presença. — Sua voz soou firme, sem espaço para dúvidas. — Nos jardins de treinamento. Ele deseja vê-la... sem máscaras.

Celine arqueou as sobrancelhas, cruzando os braços.

— Máscaras? — repetiu, a incredulidade gotejando em cada sílaba. — Eu... não uso máscaras.

O olhar do homem permaneceu impassível, rígido, como pedra polida.

— Apenas... obedeça. — disse, antes de virar as costas com a mesma rigidez com que chegou.

Linhuá se apressou, ajudando-a a se vestir. Escolheu roupas simples, práticas, mas minimamente apresentáveis, uma túnica leve de linho, ajustada na cintura por uma cinta de couro trançado. Prendeu os cabelos com uma fita branca, deixando alguns fios soltos, rebeldes, dançando contra a brisa fresca da manhã. Ao atravessar os portões da torre, o cheiro de grama molhada, folhas cortadas e aço recém polido encheu seus pulmões. O sol filtrava-se por entre os ramos altos, lançando manchas douradas no chão, como se a própria natureza pintasse aquele instante. E então, lá estava ele. Kaelan. Postura ereta, ombros retos, espada firmemente presa à cintura, a capa preta ondulando atrás dele como sombras líquidas. Cercado por soldados em formação, era a personificação do príncipe moldado pela guerra e pelo peso do trono. Quando seus olhos encontraram os dela, algo no ar pareceu vibrar. Ele deu um passo à frente, sem desviar o olhar.

— Caminhe comigo. — Sua voz era baixa. Líquida. Afiada. Uma ordem suave... que não admitia recusas. Celine assentiu, mas manteve o queixo erguido. E o seguiu. O silêncio entre eles era denso. — Eu vi sua marca. — Parou de repente, virando-se. — Você sabe... o que ela significa?

Celine engoliu em seco. As mãos tremiam, mas tentou manter o olhar firme.

— Não. — Sua voz saiu mais fraca do que gostaria.

Kaelan passou os dedos por um galho, afastando-o do caminho. O olhar dele parecia atravessá-la.

— Dizem... que aqueles que carregam a Fênix são renascidos. Mensageiros dos deuses. — Fez uma pausa. — Ou monstros... destinados a trazer destruição.

Ela respirou fundo. E, mesmo com o medo latejando nas veias, ergueu o queixo.

— E você? — desafiou. — Em qual dessas opções... acredita?

O príncipe segurou seu olhar por longos segundos. Então, seus lábios se curvaram levemente, não em um sorriso..., mas em algo mais perigoso.

— Ainda... estou decidindo.

***

Nos dias que se seguiram, Celine permaneceu dentro dos muros do castelo. Livre..., mas sob constante vigilância. Era uma liberdade enjaulada, onde cada passo era seguido por olhos invisíveis, e cada gesto cuidadosamente avaliado. Ainda assim, ela se recusava a ser apenas uma peça passiva naquele jogo de poder. Passava horas ao lado de Linhuá, aprendendo os traços indecifráveis do idioma antigo, tentando decifrar palavras que até então só conhecia gravadas em pedras esquecidas pelo tempo. Observava os rituais da corte, as inúmeras regras, os olhares que falavam mais que mil sentenças, os sorrisos falsos que envolviam a corte. Absorvia tudo. Cada detalhe. Cada fragmento daquele mundo que, até então, era apenas teoria, pesquisa... passado. Mas quando o sol se punha... tudo mudava. A marca em suas costas começava a pulsar. Primeiro, uma ardência sutil. Depois, uma queimação mais intensa, como brasas acesas sob a pele. A luz dourada, discreta durante o dia, tornava-se mais viva sob o manto da noite, como se algo, em algum lugar, estivesse, lentamente... despertando. E, todas as noites, entre sonhos febris e memórias que não eram suas, um nome ecoava, grave, profundo, carregado de um peso que ela ainda não compreendia. Althera. O nome parecia uma chave. Ou talvez... uma sentença.

***

Muitos dias haviam se passado. Talvez semanas. Talvez meses. Celine já não sabia. O tempo ali parecia uma peça oculta. Não sabia que dia era, nem que mês... muito menos que ano. Mas, se o tempo parecia se dissolver, havia algo que, estranhamente, começava a se solidificar. Kaelan. Ele passou a visitá-la com frequência desconcertante. Sempre da mesma forma: passos firmes, poucas palavras, nenhum gesto que pudesse ser confundido com ternura.

E, ainda assim, no silêncio entre eles... algo nascia. Algo que nenhum dos dois ousava nomear. Até que, naquela noite, tudo mudou. Sem dizer para onde a levava, ele a conduziu até o topo das muralhas do palácio. Dali, a cidade inteira se derramava aos pés deles, um oceano de luzes tremeluzentes. Lanternas, velas, tochas e fogueiras pontilhavam as ruas, como constelações caídas sobre a terra. O vento era fresco, trazendo consigo o cheiro de madeira queimada, flores silvestres e terra molhada.

O som distante de risos, tambores e vida preenchia o ar, como se Aldrion, naquele instante, respirasse em uníssono. Kaelan permaneceu em silêncio por longos minutos, com as mãos cruzadas nas costas, olhando o horizonte como se procurasse respostas que nem o próprio destino sabia oferecer. Então, finalmente, sua voz quebrou o silêncio, baixa, rouca... e estranhamente vulnerável:

— O reinado está em paz... por enquanto. — Seus olhos permaneciam fixos na linha escura onde o céu tocava as montanhas. — Mas... meus irmãos tramam, talvez um deles esteja contra mim. O trono... — sua mandíbula se tensionou — é um campo de guerra invisível. Um jogo... onde até o silêncio pode matar.

Celine respirou fundo. O peito apertava, como se o próprio ar tivesse ficado pesado demais. Olhou para ele. Para aquele homem que parecia carregar o peso de um mundo inteiro nos ombros. E, com a voz quase quebrada, sussurrou:

— E você...? — Seus olhos encontraram os dele. — Quem... é você... nesse jogo?

Por um instante, Kaelan não respondeu. Parecia lutar com algo dentro de si. Mas então... se virou. E, pela primeira vez, seus olhos não eram feitos de gelo. Eram feitos de fogo.

— Eu... — sua voz saiu mais baixa que um sussurro, mas mais potente que qualquer grito — ...sou o escudo.

Deu um passo à frente. Outro. E então, seus dedos se ergueram, hesitantes, até tocarem o rosto dela. Calejados. Ásperos pela espada... e, ao mesmo tempo, incrivelmente suaves, como se temesse quebrá-la. Celine não recuou. Não podia. Não queria. Porque, naquele exato instante, compreendeu que havia coisas que nem o tempo, nem a lógica, nem o destino podiam explicar... nem impedir.

Ali, sob a lua ancestral de Aldrion, dois mundos colidiram. E a fenda do tempo, que até então os separava... começava, lenta e perigosamente, a se fechar. Mas, talvez... talvez fechá-la não fosse libertação. Talvez... fosse o início de uma prisão. Uma prisão chamada destino.

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