
Resumo
No coração do império de Aldrion, um reino dilacerado por guerras entre clãs e casas rivais, sombras ancestrais se entrelaçam com a chama da ambição. Celine Valemont, uma jovem historiadora do mundo atual, é misteriosamente transportada ao século XIV, lançada em um universo de intrigas palacianas, traições e segredos há muito enterrados. Em meio a uma corte que silencia mulheres, ela descobre carregar a enigmática Marca da Fênix, símbolo de um poder ancestral capaz de reescrever o destino do império. Ao seu lado está Kaelan Daryen, o príncipe herdeiro marcado por conflitos internos, que vê na união com Celine uma esperança para desafiar tradições e quebrar correntes. Enquanto paixões ardentes se entrelaçam a jogos de poder, alianças frágeis e a ameaça constante do cruel irmão de Kaelan, Aric, Celine e Kaelan precisarão decidir até onde estão dispostos a ir. Nas cinzas do destino e nas sombras do passado, surgem verdades capazes de incendiar reinos e transformar tudo para sempre.
Capítulo 01. A fenda do tempo (Parte I)
"O destino, quando chama, não bate à porta. Ele rasga o tempo, queima a lógica e costura novas linhas onde o impossível floresce."
O céu sobre Jiayun estava de um cinza doentio, pesado, sufocante, como se o próprio firmamento carregasse o peso dos séculos. Nuvens densas rodopiavam em círculos lentos, ameaçando desabar a qualquer instante, e os ventos cortavam como navalhas, sussurrando em línguas esquecidas, ancestrais, que nem mesmo os livros ousavam registrar. A antiga aldeia estava completamente engolida pela natureza selvagem, um esqueleto do que um dia foi vida, agora tomado pelo silêncio e pelo mato que avançava sem piedade. Aquele pedaço esquecido do mundo ficava a muitos quilômetros da civilização mais próxima.
As montanhas que cercavam o vale pareciam sentinelas de pedra, guardiãs de segredos há muito tempo enterrados. As árvores, gigantes e tortuosas, pareciam vigiar os intrusos com olhos invisíveis, como se respirassem junto à própria terra. No meio de tudo isso, ajoelhada sobre uma laje coberta de musgo e raízes, estava Celine Valemont, uma arqueóloga de vinte e seis anos, filha de um mundo moderno, mas apaixonada pelo passado. Cabelos castanhos presos de qualquer jeito, mãos calejadas pela escavação, olhos ávidos por respostas.
Não era mulher de se intimidar facilmente, ou, pelo menos, era o que costumava repetir a si mesma cada vez que o medo tentava apertar seu peito. Ela passava os dedos, sujos de terra, por inscrições talhadas na pedra. Linhas sinuosas, traços precisos. Símbolos antigos... antigos demais para pertencerem a qualquer dinastia conhecida. Nenhum catálogo arqueológico explicava aquilo. O ar ali parecia mais denso, pesado, como se uma força invisível vibrasse sob seus dedos, viva, pulsante.
— Você... de novo... — murmurou, apertando levemente os olhos, deslizando a ponta dos dedos sobre o símbolo central: uma fênix envolta em chamas, asas abertas, olhos como brasas vivas.
O mesmo desenho que carregava tatuado nas costas desde os dezoito anos. Na época, escolheu por impulso, achando que era apenas uma imagem bonita, forte, simbólica... nunca imaginou que aquele traço pudesse, de fato, significar algo muito além de estética. Um arrepio percorreu sua espinha, e ela percebeu que o vento mudou de tom. Uma rajada mais fria, cortante, soprou, fazendo suas roupas colarem ao corpo. O solo tremeu, não um simples tremor, mas um estremecer profundo, vindo das entranhas da terra.
As pedras sob suas mãos começaram a emitir um brilho dourado, suave no início... depois, um clarão avassalador que engoliu tudo ao redor. Celine gritou. O corpo inteiro se contraiu em choque, o peito apertado, os ouvidos zunindo, como se o próprio tempo estivesse sendo rasgado ao meio. Mas não havia ninguém ali para ouvir. Nenhuma mão estendida. Nenhuma voz amiga. Tudo virou luz.
***
Quando abriu os olhos, tudo estava diferente. O gosto metálico de sangue preenchia sua boca, e folhas secas estavam grudadas em seu rosto. O céu... não era mais o mesmo. Estava absurdamente azul. Limpo. Sem rastros de poluição, sem o som distante de aviões, carros ou qualquer civilização familiar. O cheiro... Céus... o cheiro era puro, denso... uma mistura de madeira úmida, barro, mato e um toque de flores selvagens. O silêncio era profundo. Vivo. Aquele tipo de silêncio que pesa nos ouvidos, onde até o som do próprio coração parece estridente. Ela tentou se levantar, mas as pernas tremiam como se fossem de papel. Enfiou a mão no bolso da calça, vazio.
— Cadê o celular? Cadê o relógio? O comunicador de campo? Sumiram todos. Minha mochila… ela desapareceu.
Cambaleou alguns passos. As árvores agora eram muralhas vivas, enormes, ancestrais. Um rio estreito e sinuoso cortava o caminho adiante. Cada passo que dava era mais irreal que o anterior. A sensação de desencaixe, de estar fora do eixo da realidade, apertava seu peito como uma mão invisível. E então, vieram os sons. Primeiro, abafados. Depois, claros: cascos de cavalos batendo contra a terra, vozes masculinas, o som metálico de espadas, armaduras e elmos se chocando.
Ela se escondeu atrás de uma árvore grossa, tentando controlar a respiração. Três homens a cavalo se aproximavam. Usavam armaduras pesadas, escuras, com elmos ornamentados com penas e entalhes dourados. Suas lanças brilhavam sob o sol, e o estandarte negro e rubro balançava ao vento. Falavam uma língua estranha, uma variação antiga do mandarim, que Celine reconheceu vagamente de seus estudos, mas estava tão arcaico que parecia quase outra língua.
***
Quando a venda foi retirada, Celine piscou várias vezes, cegada pela luz do sol refletindo nas pedras. O que viu à sua frente a fez prender a respiração: A Capital de Aldrion. Uma cidade colossal, cercada por muralhas negras, com torres pontiagudas que pareciam tocar o céu. Estandartes rubros tremulavam ao vento, soldados treinavam em pátios internos, e as ruas de terra batida fervilhavam com comerciantes vendendo especiarias, tecidos exóticos, talismãs e armas. O cheiro de incenso se misturava ao de carne assada, couro e ferrugem.
Aldrion era um reino dividido em quatro grandes províncias, governado pela lendária Casa Daryen, uma linhagem marcada por guerras, alianças e traições. O palácio real se erguia no alto das Montanhas Cinzentas, feito de pedra negra e ouro, um símbolo de poder absoluto. Ali, os jogos de poder eram mais letais do que qualquer espada. Celine foi levada até os portões do palácio. A entrada era dominada por esculturas de dragões alados, e soldados com armaduras negras mantinham os olhos atentos a cada movimento.
E então ela o viu. Kaelan Daryen. Sentado em um trono de pedra escura, esculpido com antigos símbolos de guerra e sabedoria, Kaelan mantinha os ombros largos erguidos com uma dignidade que parecia inata. Colunas entalhadas em mármore negro o cercavam. A luz filtrava-se pelas altas janelas da sala do trono, dançando sobre o manto carmesim que cobria seu corpo, pesado, bordado com fios de ouro, onde reluzia o brasão da Fênix Dourada, símbolo sagrado da Casa Daryen.
Seus cabelos, negros como o abismo, caíam em mechas suaves sobre a testa. Mas era nos olhos que residia a verdadeira tempestade. Um deles, de um cinza glacial, quase prateado, carregava o peso dos ancestrais, a visão clara e cortante de um estrategista nato. O outro, mais escuro que a noite sem lua, parecia guardar os segredos e tormentos de um coração marcado por escolhas difíceis. Eram olhos de guerra e silêncio, e todos que se atreviam a encará-los sabiam que diante deles não havia espaço para mentira ou fraqueza. Sobre sua cabeça, uma coroa leve repousava como um fardo invisível. De ouro puro, simples e ancestral, parecia pesar como o próprio mundo.
Kaelan era o terceiro filho do Imperador Edric Daryen, um soberano consumido há anos por uma doença que o afastou do poder. A verdadeira regente era sua mãe, a implacável Imperatriz Vanyra: fria, calculista, estrategista feroz. Era ela quem, nas sombras, movia os fios da política e da guerra, sustentada por uma rede de espiões e alianças sussurradas em corredores escuros. Apesar de ser o caçula, Kaelan foi nomeado herdeiro do trono. Não por nascimento, esse direito cabia a seu irmão mais velho, Aric Daryen, cuja ambição voraz já ameaçou o reino mais de uma vez, mas por mérito. Por honra. Por aquilo que nenhum título poderia impor: lealdade ao povo, força em campo de batalha, inteligência fria de um líder e coragem ardente de um guerreiro. E não apenas isso. Ele era um mestre espadachim, forjado nas trincheiras e campos de treinamento, temido por sua destreza com a lâmina e por sua frieza diante da morte. Diziam que sua espada se movia como o vento antes da chuva, veloz, silenciosa e implacável. Kaelan era mais que um príncipe. Era o herdeiro escolhido pela chama da Fênix.
O segundo irmão, filho do meio, Brenn Daryen, era jovem, impulsivo, mas de coração leal. Sempre esteve mais próximo de Kaelan, servindo como seu aliado e confidente. Por trás de seus olhos frios, Kaelan carregava o peso de um trono constantemente ameaçado, não só pelas guerras externas, mas pelas conspirações internas, onde Aric, seu próprio irmão, tramava constantemente para tomar aquilo que acreditava ser seu por direito. Quando Kaelan ergueu o olhar para ela, foi como ser atravessada por uma lâmina invisível.
— Tragam-na. — Sua voz era grave, cortante, gélida como aço polido.
Ela foi jogada ao chão, suja, ofegante, com as roupas rasgadas e os joelhos esfolados. Tentou erguer os olhos, mas a luz refletida nas pedras a cegava. Kaelan desceu os degraus lentamente. Seus passos ecoavam no salão, e todos os guardas se curvaram à sua passagem. Parou diante dela, os braços cruzados sobre o peito largo.
— Quem és tu? — perguntou, a voz baixa, mas carregada de autoridade. — E de onde vem essas roupas estranhas? Esse tecido... não pertence a nenhum reino conhecido.
Ela tentou responder, mas a boca parecia seca como areia.
— M-meu nome é... Celine Valemont. Eu... eu não sei como... como cheguei aqui.
Os olhos de Kaelan se estreitaram. E então ele percebeu. A fenda da camiseta rasgada nas costas dela deixava à mostra a tatuagem: a Fênix. Só que agora... ela brilhava, de forma tênue, como se estivesse viva. O Príncipe recuou um passo, a tensão visível nos ombros largos.
— A Marca da Lenda... — sussurrou.
Houve um murmúrio geral no salão. Os soldados se entreolharam, desconfiados, tensos. A lenda dizia que aqueles que carregavam a Fênix eram mensageiros dos deuses… ou agentes do caos. Kaelan respirou fundo, recobrando o controle.
— Levem-na à torre norte. Isolada. — Sua voz foi dura. — Até que eu decida se ela vive... ou morre.
Sem olhar para trás, ele virou-se, a capa de veludo arrastando no chão, deixando Celine entregue ao seu destino.
— Ali! — gritou um deles. — Há uma mulher! Uma forasteira! Uma espiã de outro reino!
Celine tentou correr. Tentou. Mas tropeçou em uma raiz e caiu de joelhos, ofegante, desesperada. Em segundos, foi cercada. Três lanças apontadas para seu peito.
— Quem és tu?! — rosnou o soldado à frente, com uma cicatriz marcando-lhe o rosto. — És espiã de Valzekh? Ou criatura dos bosques amaldiçoados?!
— Eu... eu... sou Celine! — gritou, quase sem voz. — Eu não... eu não sei o que está acontecendo!
Seus olhos marejaram, a garganta apertada. Mas os soldados não se comoveram. Um deles desceu do cavalo, amarrou suas mãos com uma corda áspera, puxou uma venda grossa e tapou seus olhos. Foi então jogada, como um fardo, sobre o lombo de um dos cavalos. O que quer que estivesse acontecendo... não parecia ser um sonho.
***
A torre norte era tudo, menos acolhedora. Fria, úmida, com paredes de pedra gélida que pareciam sugar qualquer vestígio de calor ou esperança. Não havia janelas, apenas uma pequena abertura circular no teto, por onde a luz da lua entrava tímida, criando no chão um círculo prateado que parecia mais uma cela espiritual do que um feixe de liberdade. O som das correntes do lado de fora, dos passos pesados dos guardas e das vozes abafadas que ecoavam pelos corredores, fazia seu peito apertar como se estivesse sendo lentamente esmagado.
Por dias, ela não sabia exatamente quantos, porque o tempo parecia não existir ali, a única pessoa que via era uma criada silenciosa, de rosto apagado, que lhe trazia água morna e um mingau ralo, sem dizer uma única palavra. O desespero roía suas entranhas, alternando-se entre o pânico de estar perdida no tempo e o medo puro e simples de ser executada antes de sequer entender onde estava. Foi no quarto dia que tudo mudou. A porta rangeu, pesada, e uma figura entrou com passos leves, quase flutuantes.
— O Príncipe ordenou que eu viesse. — A voz era jovem, mas firme, carregando uma musicalidade estranha, com aquele sotaque arrastado do idioma antigo que Celine começava, lentamente, a decifrar. — Meu nome é Linhuá.
Celine ergueu o olhar, surpresa. Era uma jovem, talvez da sua idade, de olhos amendoados, pele alva como porcelana, cabelos negros lisos e longos, presos em um coque simples, preso apenas com uma fita vermelha desgastada.
— Você... — a garota a olhou de cima a baixo, franzindo a testa. — Não é daqui... não é?
Aquelas palavras, simples, foram o estopim. Celine apertou os lábios, tentou conter..., mas não conseguiu. As lágrimas vieram, quentes, salgadas, silenciosas no começo... depois, desabaram como uma represa rompida. O choque, o medo, a solidão, a saudade... tudo explodiu de uma vez. Linhuá não disse nada. Apenas se aproximou, ajoelhou-se ao seu lado e puxou uma manta grosseira, cobrindo seus ombros.
— Não tema, forasteira. — Sua voz soou mais suave, quase cúmplice. — O Príncipe Kaelan é um homem... justo. Ele não a deixará perecer. — Fez uma pausa, desviando o olhar, como se soubesse que justiça, ali, era uma palavra cheia de arestas cortantes. — Pelo menos... espero.
Celine a olhou, engolindo em seco. A menção a Kaelan fez seu estômago revirar. O rosto dele voltou à sua mente: severo, impenetrável, belo de uma forma cruel. Um homem moldado por guerras e responsabilidades. E com razão. O nome Kaelan Daryen não era qualquer nome. Filho mais novo do imperador adoentado, o Imperador Edric Daryen, e da temida Imperatriz Vanyra, mulher que governava nas sombras, com uma rede de espiões que nem os próprios filhos ousavam desconsiderar.
Kaelan deveria ser apenas o terceiro na linha de sucessão, atrás dos irmãos Aric, o primogênito, e Brenn, o impulsivo. Mas o destino ou a política cruel da corte, o colocou como herdeiro, por mérito, por sua capacidade de liderança e pela admiração que conquistava tanto entre o povo quanto entre os generais. Mas aquele título era uma faca de dois gumes. Enquanto Kaelan brilhava, Aric, arrogante, frio e traiçoeiro, afundava-se em inveja e rancor. E não era segredo que tramava, nas sombras, para derrubar o próprio irmão. O trono, em Aldrion, era um campo de batalha invisível, onde cada sorriso escondia uma lâmina.
