CAPÍTULO 2
Caio.
Eu realmente não sei há quantas horas eu estou deitada em minha cama encarando o teto.
A "última" noite não foi nada fácil pra mim, eu tive pesadelos atrás de pesadelos e o meu passado voltou a me assombrar, só que dessa vez foi ainda mais assustador, foi tudo muito real.
Eu pude sentir o cheiro da minha mãe, pude ouvir os gritos do meu pai e consegui captar cada pequenos detalhe daquela noite.
Anos atrás.
Hoje é mais uma daquelas noites a qual meu pai não volta do trabalho no horário normal, isso sempre acontece uma ou duas vezes na semana.
Meu pai é um bancário, ele trabalha em um banco de renome em nossa cidade, nos olhos das pessoas que convivemos ele é um grande homem de respeito, um marido exemplar e um ótimo pai, mas quem convive com ele sabe o quão terrível é a nossa realidade.
Meu pai é um alcoólatra, mas acho que esse não é o seu maior problema, ele não é ruim apenas quando bebe, ele é ruim o tempo inteiro.
Ele é aquele típico homem que ajuda todos em sua volta, o "amigão" animado no churrasco de mim e aquele cara que é um homem espelho pra toda a família, mas dentro de casa ele se transforma em um homem totalmente diferente, ele é aquele típico cara que humilha a mulher por um prato de comida, agride a esposa diariamente e faz do nosso lar um verdadeiro inferno.
Eu não deveria odia-lo, mas é inevitável vendo o que ele faz minha mãe passar dia após dia, eu não o odeio pelo que ele faz por mim, mas sim pelo que ele faz com minha mãe.
A porta se abriu em um estrondo me fazendo tremer na cama, meu corpo se arrepiou e um frio tomou conta da minha espinha.
- mãe...- digo já sentindo medo do que pode vir a seguir.
Viver em uma família aonde existe um alcoólatra é difícil, mas quando essa pessoa se torna um perigo pras pessoas em sua volta se torna dez vezes pior.
Eu tive que aprender a ser homem ainda quando criança, é horrível ter que ser forte aos oito anos, eu ainda sou uma criança e tenho que fingir estar tudo bem pra não magoar minha mãe.
- xiuuu...vai ficar tudo bem meu amor, pode voltar a dormir.- ela disse afagando meus cabelos.
Eu me preocupei mesmo com ela tentando me acalmar, pois algo me dizia que aquela noite não terminaria bem.
- Alessandra, cadê você sua vagabunda?!- os gritos do meu pai me fez encolher.
Minha mãe me abraçou mais forte e eu senti seu corpo tremendo contra o meu, ela falava algo baixinho, ela estava orando.
- ALESSANDRA!- ele gritou novamente e eu pude ouvir barulho de objetos se quebrando em contato com o chão.
Minha mãe se levantou no mesmo instante, me levantei também pensando em segui-la, mas ela me impediu me segurando pelos ombros.
- fica aqui não importa o que aconteça, mamãe já está voltando...vai ficar tudo bem!- ela disse com lágrimas nos olhos e com o corpo trêmulo, ela me puxou pelos ombros e me deu um abraço forte e apertado.
Alguns segundos depois ela saiu pela porta a fechando e o quarto ficou totalmente escuro.
Eu até quis ir atrás dela, mas meu medo falou mais alto, o máximo que fiz foi ficar sentado em minha cama abraçado com meus joelhos e rezando baixinho pra tudo dar certo.
Tudo que eu ouvia era os gritos do meu pai e o choro da minha mãe e o barulho de coisas se quebrando, eu estava totalmente apavorado, meu corpo não parava de tremer e as lágrimas escorriam por meu rosto sem parar.
No ápice da briga quando eu achei que tudo ia ficar pior um silêncio pairou sobre a casa e assim continuou exatos seis minutos e meio.
Eu me levantei da cama e corri até a porta abrindo a mesma, corri pelo corredor, mas quando pisei na escada o meu coração quase saltou pela boca.
Minha mãe está caida no chão desacordada.
Minha única reação foi correr em direção ao seu corpo, eu a balancei com toda minha força tentando acorda-la, mas ela ao menos se mexeu.
- mamãe?- disse pegando em seu rosto, mas ela não me respondeu.
Deitei minha cabeça sobre o seu peito e abracei o seu corpo, eu pude sentir o cheiro do perfume do seu shampoo de erva doce.
- mãe, acorda...por favor.- pedi sentindo uma tristeza que nunca senti antes.
Eu passei o resto da noite ali na esperança de vê-la de pé novamente.
Eu não tinha noção da gravidade do acontecido, não tinha noção que minha mãe estava morta, eu apenas fiquei sabendo que ela estava morta na manhã seguinte quando minha avó veio nos visitar e me encontrou dormindo em cima do cadáver da minha mãe...
Atualmente.
Fechei os olhos na tentativa de afastar aquelas lembranças, mas não deu certo, quando fechei os olhos a imagem da minha mãe se fez presente como nunca havia feito.
Depois da morte da minha mãe eu tive anos e anos de pesadelos totalmente reais, eu busquei por ajuda médica e esses "problemas" foram diminuindo a cada seção de terapia, mas nessa última semana eles voltaram com força total e isso está me matando aos poucos.
Lembrar da minha mãe não é nada fácil, é sempre um verdadeiro martírio te-la presente em minha mente porque minha última lembrança não foi nada boa, eu queria poder ter boas recordações dos nossos momentos bons, mas isso raramente acontece.
- Senhor Araújo?- uma voz soou acompanhado de duas batidas na porta, uma voz que vive invadindo meus momentos, Maria minha governanta.
Levantei meu corpo me sentando na cama e passei minhas mãos por meu rosto tentando tirar aquela cara de cansaço, eu mal consegui dormir na última noite então nem imagino como devo estar agora.
- O senhor está aí?- ela voltou a me "incomodar".
Me levantei por inteiro e caminhei em direção a porta, abri a mesma e encontro com "ela" parada com uma expressão de preocupação.
- Graças a Deus, eu pensei que havia acontecido algo com o ensejo...- ela diz e solta um suspiro de alívio.
Dou um suspiro acompanhado da clássica revirada de olhos, eu realmente não acredito que ela me tirou da cama por causa de um de seus devaneios.
- Maria, eu estou ótimo, me faça o favor de desaparecer.- respondi sem o mínimo humor e fechei a porta.
Me virei com a intenção de voltar pra cama, mas "alguém" na porta novamente.
Abri a porta com toda minha força, mas sem nenhuma paciência.
- Maria, mas que porra! Fala logo o que você quei...- disse a encarando com toda minha firmeza.
Ela deu um sorriso amarelo, engoliu seco e arrumou sua postura.
- a nova agente chegou, o senhor me pediu pra avisar caso ela chegasse, me desculpe pelo incômodo...- ela disse sem graça.
Fechei os olhos dando um suspiro pesado e me senti culpado por ter a tratado daquela forma.
- tudo bem, eu que te peço desculpas pela grosseira, eu já vou descer, deixe algo preparado pois eu estou faminto...- digo, fecho a porta com mais tranquilidade e caminho em direção ao meu banheiro.
Me despi e logo após me pus debaixo da água quente que cai do chuveiro, fechei os olhos e uma sensação ruim invadiu o meu corpo.
É sempre assim, quando eu sonho com algo relacionado com minha mãe eu tenho um dia totalmente atribulado.
O pior é quando o meu pai participa do sonho, isso tira a pior parte de mim.
Até hoje é muito difícil falar sobre o meu pai, ele é um homem totalmente desprezível, mesquinho e soberbo.
O único sentimento a qual eu atribuo a essa homem é a pena, ele é um ser humano digno de pena.
Atualmente ele vive uma vida que ele realmente não merece, ele tem sua empresa de transportes, se casou novamente e tem dois filhos.
Um homem que mata alguém merece uma vida assim? Ele merecia estar apodrecendo dentro da cela de uma dessas prisões degradantes, mas não.
Ele não ficou nem quatro anos preso, foi solto por "bom comportamento" e vive como se realmente fosse uma boa pessoa.
Eu me seguro os dias pra não pegar uma arma e fazer justiça com minhas próprias mãos, eu realmente tenho que ser forte pra não fazer uma besteira.
Esse acabou com minha infância, minha adolescência e está acabando com minha vida agora, o mais difícil de tudo é vê que no final tudo deu certo pra ele.
Fechei o registro fazendo a água parar, peguei a toalha me enrolando na mesma e segui até o meu closet, me vesti com uma roupa social, como de costume e completei minha rotina de todos os dias.
Depois de me arrumar eu separei alguns documentos que irei precisar durante o dia, inclusive um mine dossiê da nova segurança, eu sou um homem totalmente ligado a segurança da minha casa é minha segurança pessoal, jamais deixaria qualquer entrar em minha casa.
Eu jamais pensei que uma mulher pudesse se aventurar em uma área que é tomada por homens, mas quando vi o seu currículo profissional fiquei muito surpreso, é de deixar qualquer marmanjo no chinelo, apesar de alguns incidentes ela tem uma bela ficha de trabalho, não posso negar.
Guardei aquilo dentro da minha pasta e peguei a mesma saíndo do meu quarto, passei pelos corredores e desci as escadas e fui direto para a sala de jantar, la encontrei Cida, a cozinheira da casa.
Me sentei em uma das cadeiras colocando minha pasta sobre a mesa.
- bom dia, Cida!- a cumprimentei.
Ela que estava de costas pra mim fazendo algo no fogão praticamente pulou de susto, ela se virou em minha direção com as mãos sobre o coração e deu um sorriso amarelo.
- bom dia patrão!- ela respondeu ofegante.
Acenei com a cabeça de volta.
A mesa já está posta com tudo que costumo comer no dia a dia, pães, frutas, queijos, iogurtes e sucos.
Peguei o meu jornal que já estava sobre a mesa e li folha por folha enquanto tomava o meu café.
Meu celular apitou chamando minha atenção, o desbloqueei, mas quando vi que era uma das garotas com quem eu saio eu voltei a bloquea-lo, eu odeio qualquer tipo de cobrança, isso me tira do sério.
No meio daquele "processo" algo me chamou atenção, uma voz feminina, mas tão imponente que me fez levantar no mesmo segundo.
Caminhei por minha sala em busca daquela voz, mas meu telefone tocou me fazendo parar.
- alô?- atendi no primeiro toque.
- Caio, todos estão te preocupados com você, aonde você estava que não atendia o telefone?- a voz de Carlos soou do outro lado, um companheiro de trabalho.
Suspirei passando as mãos pelos cabelos.
- eu estava resolvendo algumas coisas...- respondi sem me prolongar e passei pela porta principal saindo em direção a garagem.
- a gente precisa de você aqui, você pode vir para o fórum?- ele perguntou.
- sim, já estou a caminho!- afirmei e levantei minha cabeça, no mesmo instante meu olhar se cruzou com uma mulher.
Ela está parada em frente aos meus carros e tem Douglas ao seu lado, seu olhar também está sobre mim e ela me encara com um afinco.
Afastei meu telefone do rosto abaixando a mão e não pude evitar de encara-la.
Ela é uma mulher bastante despadronizada, não é do tipo meiga, mas também não é ousada, a sua postura é dura e imponente e o seu olhar parece estar nos analisando a todo o momento.
É uma mulher interessante, o seu corpo é tomado por curvas, ela é parcialmente alta, seu rosto é sério e seus traços fortes, seus olhos são grandes e negros, mas seu rosto é fino, sua boca e grande é carnuda, os seus cabelos excessivamente cacheados estão pressos em um rabo de cavalo, no seu ombro direito a uma borboleta negra tatuada e em seu braço direito a uma frase tatuada.
Ela está com as mãos para trás, com uma postura ereta e me encara com tanto afinco que chega me incomodar.
- Senhor Araújo, eu quero te apresentar uma pessoa...- Douglas diz e no segundo seguinte ela desvio seu olhar do meu.
Caminhei na direção deles parando em frente aos mesmos.
- essa é a nova agente a frente ao seu caso, Patrícia Villela!- ele nos apresentou.
Ela olhou em minha direção, diretamente em meus olhos pra ser mais correto e acenou com a cabeça, sem dar ao menos um sorriso.
- muito prazer em conhece-la!- disse apertando sua mão.
- prazer!- foi o máximo que saiu de sua boca.
Cerrei os olhos não entendendo a postura daquela mulher, quem ela pensa que é pra me tratar com tamanha falta de interesse.
- a senhorita tem um segundo? Gostaria deixar algumas dúvidas em claro...- a questionei.
Ela manteve o olhar sobre mim e acenou com a cabeça.
- como o senhor quiser!- ela fez questão de afirmar sem esboçar nenhuma reação.
Ela parece ser aquele tipo de pessoa que vive com tédio, isso me deixa fora de mim, odeio quando falo e a pessoa finge que não escura.
- me acompanhe até o meu escritório, por favor.- disse dando as costas e ouvi seus passos atrás de mim, não usamos uma palavra se quer durante o trajeto, ela me manteve inerte com a mesma feição de tanto faz.
Abri a porta do escritório dando passagem pra ela entrar e entrei logo em seguida fechando a porta atrás de mim.
- sente-se, por favor.- pedi e assim ela fez, dirigi até minha cadeira e me senti de frente pra ela.
Ela cruzou os braços e manteve o seu olhar sobre mim.
- eu só queria fazer algumas perguntas, tudo bem pra você?!- disse.
Ela confirmou acenando com a cabeça.
Abri a primeira gaveta da minha mesa e tirei um papel da mesma, passei o olho por toda a folha e voltei a encara-la.
- bom, o seu currículo é incrível, gostaria de te parabenizar...- confessei.
Ela deu um sorriso fraco e acenou com a cabeça com resignação.
- muito obrigada!- ela disse sem prolongar.
Cerrei os olhos a encarando, ela aparenta ser uma pessoa bastante contida, não parece ser do tipo tímida, aparenta ser daquele tipo de pessoa que sabe com quem fala e sabe muito bem o que falar.
Eu não sei bem o que essa mulher carrega dentro de si, mas tem algo dentro do seu olhar que me incomoda profundamente.
- eu sou uma pessoa muito precavida quando o assunto é segurança, então gostaria que você seguisse a risca cara regra que o Douglas passar pra você daqui em diante.
Ela acenou com a cabeça rapidamente concordando.
- em quantas missões você esteve antes dessa?- a questionei.
- eu não sei ao certo senhor, eu estou a muito tempo envolvida nessa vida, é difícil saber.
Acenei com a cabeça e reli o papel, mesmo não gostando da sua resposta.
- você já matou alguém?- perguntei.
Ela se inclinou encostando suas costas na cadeira, cruzou os braços e deu um sorriso fraco.
- sim senhor!- ela respondeu com pesar.
Levantei uma sobrancelha.
- quantas pessoas?
Ela balançou a cabeça.
- não sei ao certo senhor, não foram muitas...- ela respondeu me lançando um olhar de desaprovação.
O que essa mulher tem? Eu estou apenas executando o meu trabalho e ela não para de me olhar como se eu fosse um idiota ou algo do tipo.
Me mantive firme, se ela acha que irá me calar com um olhar está mais que enganada.
- você é casada?- perguntei.
Ela negou com a cabeça.
- tem filhos?- voltei a questionar.
- não...- ela respondeu com uma certa mágoa na voz.
Deixei o papel sobre a mesa e a olhei no fundo dos olhos.
- eu quero deixar algumas coisas as claras antes de você começar, eu sou um homem extremamente reservado, a minha casa funciona com regras a quais devem ser seguidas finalmente, quero deixar claro que não aceito qualquer tipo erro e muito menos deslize...- eu comecei a falar, mas ela se levantou no meio da minha fala com uma expressão que me fez calar a boca.
- senhor, mil perdões, mas eu estudei anos e anos e sei muito bem como me portar em uma missão, não estou aqui a quatro dias e não preciso que me ensine a como conduzir o meu trabalho, eu sou uma ótima e experiente agente, peço que me deixe fazer meu trabalho com paz e sossego...com licença!- ela falou de uma rude, mas contida e deu as costas saíndo do meu escritório.
Eu fiquei encarando a porta sem uma reação ao certo, mas algo ascendeu em meu peito me alertando que eu não deveria manter essa mulher a frente do meu caso, eu sinceramente não sei ao certo, mas sinto que algo não acabará bem se ela continuar aqui...
