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Capítulo 3

Chiara

O homem deitado sobre a mesa de cirurgia, mesmo de olhos fechados, tinha uma expressão extremamente enigmática. Enquanto eu preparava o medicamento que aplicaria em sua veia para evitar que sentisse dor ao acordar, analisava suas feições.

Com um rosto retangular, de maxilar marcado, pele bronzeada, barba por fazer, cabelos lisos com fios grossos e escuros, sobrancelhas grossas, nariz arrebitado e lábios carnudos e bem desenhados, sim, ele era lindo, no entanto, não era esse o motivo de eu o encarar tanto, mas, sim, o fato de que, pelo terno que estava usando quando o trouxemos para o hospital, não me parecia ser como esses moleques que se envolviam no mundo do crime, ou usavam aquela porcaria de droga. Não, ele era diferente, então porque teria levado um tiro?

Será que havia sido assaltado? Uma bala perdida em meio a um tiroteio?

Eram muitas perguntas em minha mente e todas elas sem respostas. Balancei a cabeça para os lados, dispersando todos os meus questionamentos, porque já havia amanhecido, eu estava morta de cansaço devido a madrugada tensa socorrendo este homem, e tinha que me concentrar em fazer o que era necessário. Normalmente, esses cuidados pós-cirúrgicos eram feitos por uma enfermeira, mas algo me fez querer fazer isso pessoalmente.

Segurando a seringa com a mão esquerda, dei três toques rápidos nela com o dedo indicador da mão direita, vendo o líquido transparente ali dentro se agitar e guiei a agulha em direção ao condutor de medicamento preso a veia da mão dele, quando senti uma mão firme e quente sobre a minha. Isso fez todos os meus pelos se arrepiarem, então subi o olhar pouco a pouco, encontrando os olhos castanhos-claros desse homem, que não esboçava nenhum tipo de emoção.

— Quem é você? — a voz rouca e carregada de frieza soou.

— Sou a doutora Chiara, não se lembra de mim? — no mesmo instante em que fiz essa maldita pergunta, me repreendi mentalmente. É claro que ele não se lembrava, estava tão desnorteado na noite anterior, que não teve tempo de reparar em nada, ele malmente ouvia minha voz — Anh… Me desculpe — pela primeira vez, o vi ter uma reação, ainda que pequena, ao franzir o cenho — Minha amiga e eu te encontramos caído em um beco, com uma bala no peito e te trouxemos para cá.

Para não haver dúvidas do que havia acontecido, levei minhas mãos até seu peitoral, que estava envolto em um curativo de gaze e esparadrapo, afastei o lençol branco, expondo seu ferimento já cuidado. Ele olhou para baixo, onde minhas mãos tocavam e pôs uma de suas mãos sobre as minhas, me fazendo engolir em seco com aquele toque repentino.

Normalmente, eu não tinha problemas com nenhum paciente, em estar perto, em ser tocada por eles, no entanto, dessa vez, parecia ter algo diferente. Eu só não sabia explicar o que era.

— Você precisará ficar aqui pelo menos mais essa noite, até garantirmos que não haverá nenhum problema.

— Não se preocupe, estou bem. — falou, já se levantando.

Era nítido que sentia dor no peito, pela maneira como comprimiu os lábios ao levantar-se, contudo, ele parecia não se importar com isso.

— Senhor, você não pode sair assim, é arriscado. — aflita, sem saber como fazer para mantê-lo ali, falei, me aproximando dele e, com isso, acabei ficando em sua frente e espalmando minhas mãos em seu peito nu.

O homem, sentado na maca, abaixou a cabeça, olhando para minhas mãos novamente em seu peito, depois voltou a olhar para mim. Percebi que, assim como eu, ele encarou minha boca, depois retornou para meus olhos, fixando o olhar por um instante, mas que pareceu uma eternidade.

Sem graça, retirei as mãos de seu peito.

— Já disse, estou bem. Agora, se me der licença… — como se eu não pesasse absolutamente nada, me afastou para o lado, puxando com brutalidade a mangueira de acesso à veia, onde havia uma agulha, me fazendo arregalar os olhos.

Olhou ao redor, parecendo procurar por alguma coisa, até que caminhou em direção a porta, me deixando lá, completamente estupefata.

Quando voltei a mim sobre o que havia acontecido, me apressei em tentar segui-lo, porém, sem sucesso, o homem já havia sumido de minhas vistas.

— Alô! Terra chamando Chiara! — estalando os dedos em frente ao meu rosto, Beatrice chamou minha atenção.

— O quê? — perguntei, a encarando, após piscar algumas vezes.

— O quê, digo eu. Parece que viu um fantasma. — disse, me entregando um copo descartável com café.

Parecia estar adivinhando que eu necessitava disso.

— Não, é só que… — fiz uma pausa, formulando a frase em minha mente — Você viu aquele homem saindo tranquilamente, como se não tivesse acabado de ser vítima de uma bala?

— Ah, o gostoso… — Beatrice parou ao meu lado, encarando as portas — Você viu aquele corpo? Ele não parece ser da área…

— Estava pensando nisso…

— Tomara que ele leve outro tiro e volte para cá. — Bea comentou, me fazendo olhá-la.

— Tá louca?

— Ué, esse não é o tipo de homem que se encontra em qualquer esquina e, talvez, esse seja o único jeito de vê-lo outra vez.

Ri do jeito que minha amiga falou e balancei a cabeça para os lados, pela primeira vez, tomando um gole do líquido fervente, me permitindo relaxar um pouco.

— Vamos? Estou exausta. — Bea me chamou e eu assenti com um menear de cabeça.

Terminamos o café, retiramos os jalecos, pegamos nossos pertences e, finalmente, pudemos ir para casa.

(...)

— Ciao, mamma! — ao chegar em casa, adentrei a cozinha de paredes em tom de bege, teto com forro de gesso branco, alguns armários de chão cinza, colados ao fogão preto, com as panelas penduradas no suporte da prateleira bem acima e uma mesa de madeira maciça e envernizada no centro, composta por seis cadeiras.

— Ciao, figlia! — a mulher de meia-idade, de pele clara, rosto oval, olhos pretos, sobrancelhas finas, arqueadas e bem feitas, nariz arredondado, boca larga com lábios finos e rosados e cabelos longos e escuros, porém, se misturando a alguns fios grisalhos, que já estavam nascendo, usando um vestido de tecido mole florido, se pronunciou com um imenso sorriso no rosto.

Me aproximei dela e beijei seu rosto, ela parou de mexer na panela que estava sobre o fogão e limpou a mão no pano de prato em seu ombro e segurou meu rosto para retribuir o gesto de afeto.

— Estávamos preocupados com você, raramente passa a noite fora. Seu pai quase foi até você, sabe como ele é, especialmente depois do que aconteceu com o Angelo.

— O papai nunca muda — sentei-me à mesa para relaxar um pouco — Mas estou bem, eu juro. Eu estava vindo para casa, mas tivemos um caso urgente para atender. Encontramos um homem caído em um beco, com uma bala no peito e não podíamos deixá-lo lá. A senhora sabe como sou.

Dona Aurora parou o que estava fazendo e virou de frente para mim, suspirando longamente.

— Já sei exatamente o que vai dizer, então nem precisa se dar ao trabalho, mamma.

— Sim, você sabe, Chiara, mas isso não significa que já tenha entendido! — sua voz se alterou um pouco — Eu sei o quanto você amava o Angelo e o quanto ele também te amava, seu pai e eu fomos testemunhas desse amor e do cuidado que ele tinha para com você, porém, eu duvido muito que esse era o futuro que ele desejava para você.

Abaixei a cabeça, lembrando de tudo o que perdi e que, não importava o que eu fizesse, jamais voltaria.

— Figlia — com um tom de voz mais ameno e manso, mamãe veio até mim e segurou meu queixo, erguendo minha cabeça — Você não pode perder o resto da sua vida apenas se dedicando àquele lugar, sabe que nunca me importei de você fazer o que faz, não é isso. Tudo o que mais queremos é que você seja feliz, nada além disso. Que encontre um bom homem, tenha um belo encontro, que ele te leve para dançar, que te beije apaixonadamente, te peça em casamento e sejam muito felizes, com pelo menos três filhos. — ela disse tudo isso sorrindo com ternura.

Dona Aurora sempre foi muito romântica e sonhadora, especialmente a respeito do meu futuro.

— Mãe, a senhora precisa entender uma coisa — coloquei uma mão sobre a dela que estava repousada em meu queixo — Sonhos e finais felizes não são para todo mundo.

— Está errada, Chiara. Mas não vou insistir nesse assunto, ao menos por hora — beijou minha testa e voltou para o que estava fazendo no fogão — Vai tomar banho, que você precisa comer.

Levantei, carregando minha bolsa, indo fazer exatamente o que ela mandou. Segui até meu quarto, me despi, tomei um banho morno e bem relaxante. Por alguns instantes, enquanto tomava banho, por alguma razão, minha mente ia até aquele homem enigmático e que me deixou com uma pulga atrás da orelha do motivo pelo qual havia levado um tiro.

Saí do banheiro com a toalha enrolada no corpo e fui até meu guarda-roupa a fim de pegar algo para vestir. Com as portas do roupeiro abertas, através do espelho de uma das portas, meus olhos foram direcionados até um porta-retratos na mesinha do abajur ao lado da cama.

Sentei-me na cama e peguei a moldura, sorrindo para a foto de nós dois ali, sorridentes, felizes. O Angelo e eu éramos perfeitos juntos.

Deslizei meus dedos no vidro, como se pudesse traçar cada detalhe do rosto dele e, sem perceber, uma lágrima solitária escorreu pela minha bochecha direita.

Fechei os olhos e respirei fundo, porque eu precisava cumprir minha promessa feita a ele. Tinha que seguir em frente de cabeça erguida e assim faria.

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