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3 Alice Giordano

Não era tão tarde quando chegamos ao apartamento de Julia.

Ela me mostrou todos os cômodos e deixou claro que eu podia mexer

em tudo — exceto no que estava dentro de seu quarto, o que era

bastante óbvio.

Ainda custava a acreditar no que estava acontecendo comigo.

Nunca imaginei que um dia estaria em Londres, cursando Literatura,

com a chance real de viver aqui — desde que conseguisse um

emprego fixo. Esse era o meu objetivo agora.

Jamais voltaria para a Polônia. E, sinceramente, acho que nem

para Alessandria eu poderia voltar — tudo por causa do meu pai.

Depois do que Sara me contou, passei a temê-lo ainda mais. Um

homem capaz de matar uma família inteira e, além disso, vender a

própria filha para um desconhecido, era capaz de qualquer coisa.

Mais uma vez, minha consciência gritava, lembrando que minha

tia ainda estava perto demais daquele homem. E isso me apavorava.

Liguei para ela assim que me sentei na minha nova cama,

deixando a mala para desfazer depois. Julia tinha saído para comprar

alguma coisa que eu nem consegui entender o que era, e eu estava

sozinha até que ela voltasse.

Embora minha viagem não tivesse sido tão longa, eu me sentia

exausta. Uma mistura de ansiedade e medo apertava meu peito, e eu

esperava que ouvir a voz da minha tia trouxesse algum alívio.

O telefone chamou três vezes antes de ela atender. Pelo tom

da respiração, percebi o quanto estava preocupada — e como se

aliviou ao ouvir minha voz.

— Estava preocupada, menina. Minha amiga disse que você

ainda não tinha chegado, e eu sei que o voo chegou no horário

previsto — disse, com aquele tom típico de quem já estava imaginando

o pior.

Senti-me culpada por tê-la deixado tão preocupada,

especialmente por não estar no endereço que havíamos combinado.

— Desculpa, tia... mas eu não estou na casa da sua amiga —

confessei, apreensiva com sua reação. — Antes que me dê uma

bronca, quero que saiba que sou muito grata por tudo o que fez por

mim. Juro que, no futuro, vou recompensá-la. Mas achei que ficar na

casa da sua amiga facilitaria que Luca me encontrasse.

Houve um silêncio do outro lado da linha, e meu coração

disparou. Eu sabia que o fato de ela não saber exatamente onde eu

estava a deixaria aflita. Mas eu tinha vinte anos. Sabia me cuidar.

— Você é uma menina inteligente, Alice — respondeu ela, após

suspirar fundo. — Seu pai surtou quando soube que você fugiu, mas

eu não fui burra. Disse que você estava apaixonada e que escondeu

até de mim o seu relacionamento com um francês.

Consegui ouvir o sorriso em sua voz, e acabei sorrindo

também. Minha tia era ótima em inventar histórias — quase tão boa

quanto Julia.

— Quem não gostou de saber disso foi Oton. Ele veio aqui

exigir seu dinheiro de volta, como se você fosse um produto com

entrega atrasada.

Não consigo descrever o quanto essa informação me feriu.

Odiava aquele homem tanto quanto odiava meu pai. Só de lembrar a

maneira como ele me olhava, sentia não apenas raiva, mas um medo

profundo.

— Eu queria que os dois fossem... para o inferno — soltei,

contida. Meus anos no convento ainda me impediam de dizer um

palavrão de verdade. Não que eu fosse santa, mas fui criada na casa

de Deus, e isso sempre ficaria comigo. — Só espero que nada

aconteça à senhora. Nunca me perdoaria se algo a atingisse por minha

causa.

— Não se preocupe, querida. Luca pode ser o próprio demônio,

mas morre de medo de ser deportado para a Itália. Se algo acontecer

comigo, ele não terá para onde correr — afirmou com convicção.

Eu me agarrava a essa esperança. Sabia que ele estava preso

à Polônia e, se a polícia local o pegasse, seria preso na hora. Ainda

assim, não confiava em sorte. Preferia me prevenir.

— Pode ficar tranquila comigo. Vou ligar todos os dias. Estou

num quarto confortável e pretendo procurar emprego logo. — Aquela

ligação me deu ânimo. Estava menos assustada e mais determinada.

— Amanhã vou até a Universidade de Londres para me apresentar.

Depois disso, tudo vai melhorar.

— Tenho certeza que sim, meu amor — disse ela, cheia de

carinho.

Tentei segurar o choro quando desliguei, mas foi em vão. Estar

longe da única família que me restava doía. Mas eu sabia que era por

um bom motivo. Lutaria com tudo o que tivesse para trazê-la para cá,

quando eu estivesse firme, formada e segura.

***

O dia de ontem foi muito bem aproveitado por mim e por Julia.

Precisei confessar que não estava conseguindo acompanhar seu ritmo

quando falava. Ela riu e explicou que costumava falar rápido quando

ficava nervosa. A partir daí, conseguimos relaxar.

Foi divertido conhecer um pouco de Londres através dela, que

morava aqui há três anos com o irmão. Julia era brasileira e sempre

sonhou em estudar fora do país. Me fez experimentar alguns doces

típicos do Brasil e, sem dúvida, eu amei todos.

Conversamos até tarde da noite. Ainda me parecia surreal ter

feito uma amizade em apenas um dia, logo ao chegar em um novo

país.

Hoje, acordei cedo, rezei e pedi a Deus que nada desse errado

na minha apresentação à universidade. Se algo desse errado, eu

estaria perdida.

Esperei por um ano inteiro até ter minha bolsa aprovada, e isso

não foi fácil. Passei metade da minha vida em um convento e, após

irmos para a Polônia, não frequentei uma das melhores escolas —

tudo culpa do meu pai assassino.

Quando recebi a confirmação, nem acreditava que ainda havia

alguma chance. Mas Deus escreve certo por linhas tortas, e minhas

preces, finalmente, foram ouvidas.

Tive ainda a sorte de Julia estudar na mesma universidade.

Iríamos juntas, o que era um alívio, já que eu não fazia ideia de como

me locomover por essa cidade. Estava pronta para viver tudo aquilo

que me foi negado por tanto tempo.

Sou uma mulher de vinte anos que nunca viu o mundo. E os

cinco anos em que vivi na Polônia foram como uma prisão. Luca não

gostava que eu saísse. Me mantinha trancada como um general

severo. E, sempre que eu tentava sair, era duramente punida.

Talvez fosse pecado dizer que odiava meu pai — que Deus me

perdoe —, mas essa era a verdade. Ele era uma das pessoas mais

cruéis do mundo. Tirava vidas apenas por conta de um sobrenome e,

como se isso não bastasse, me vendeu a um homem de sessenta

anos por pura ambição.

Enquanto penteava os cabelos diante do espelho, pensava no

que poderia acontecer dali para frente. Nunca fui má. Nunca destratei

ninguém da minha família, apesar de tudo que Luca me fez. Ainda

assim, algo dentro de mim sentia medo. Medo de tudo... até do meu

reflexo.

— Já está pronta? — a voz de Julia me tirou dos pensamentos.

Ela estava na porta, sorrindo. Eu realmente devia agradecer por ter

encontrado alguém tão bem-humorada e acolhedora, não importava o

horário. — Você está muito bonita. Quer dizer... você é bonita.

Desculpa, ainda estou nervosa.

Apesar de termos a mesma idade, éramos muito diferentes.

Enquanto Julia era agitada e extrovertida, eu era mais reservada.

Evitava falar de mim mesma. E, se contasse a ela toda a verdade

sobre meu passado e minha família, talvez ela não estivesse tão

contente em me ter por perto.

— Estou pronta, sim. E obrigada — respondi. O último elogio

que recebi não veio de alguém confiável, e nem me fez bem. Desde os

quinze anos, percebi o quanto Oton estava interessado em mim. Era

insano pensar que ele se sentia atraído por uma adolescente, e ainda

pagou ao meu pai para se casar comigo. A lembrança ainda me

deixava inquieta. Se ele realmente me quisesse, poderia tentar me

encontrar e me levar de volta para a Polônia. — Vamos logo. Não

quero te atrasar — disse, levantando-me.

— Não se preocupe. Moramos perto da universidade, e os

horários são bem flexíveis — respondeu com o mesmo sorriso de

antes.

Eu estava ansiosa para colocar os pés fora do apartamento e

finalmente observar a cidade. Ontem, com toda a tensão da chegada,

mal prestei atenção ao que havia fora do táxi.

Assim que descemos e pisei na calçada, senti como se

estivesse me transformando em outra pessoa. As ruas de Londres não

se pareciam em nada com as da Polônia, e muito menos com

Alessandria. O clima frio me envolveu, trazendo uma alegria silenciosa.

As pessoas passavam apressadas, com as mãos enfiadas nos bolsos

dos casacos e sobretudos. Os prédios altos eram lindos, e o trânsito

dava movimento à paisagem.

Foi nesse momento que caiu a ficha: eu realmente estava em

Londres. E era maravilhoso demais. Ri feito boba.

— Vamos, o táxi chegou — disse Julia, puxando-me para

dentro do veículo.

Por mim, teria ido a pé — mesmo sem saber a distância. Eu só

queria aproveitar cada detalhe, mas sabia que seria pedir demais.

Enquanto ela falava sobre mil assuntos, eu só conseguia olhar

pela janela. Observava as pessoas nas calçadas, os carros seguindo

seus caminhos e os belos prédios. As fotos que eu via no Google não

faziam jus à beleza real daquele lugar. Só os olhos podiam captar cada

pequeno detalhe.

Estávamos no inverno, o que me lembrava da Itália. Mesmo no

convento, eu gostava do frio. Quando o inverno chegava, algumas

irmãs abriam as portas e sentávamos em cadeiras de madeira do lado

de fora, cobertas com mantas e segurando canecas de chocolate

quente.

A saudade bateu forte. As lágrimas se formaram nos olhos,

mas segurei para que não caíssem.

Eu não queria ser freira — não era o meu destino —, mas fiz

amigos. Gostava das conversas com as irmãs. E, se meu pai não

tivesse arruinado tudo, talvez eu ainda pudesse viver em Alessandria e

visitá-las de tempos em tempos.

Mas a escolha que fiz também não era ruim. Só me faltava o

contato com quem eu amava. E meu maior desejo agora era deixar

aquele passado sombrio onde ele pertencia: no passado.

Quando o táxi estacionou, percebi o quão grande era o lugar.

Estudantes andavam por todos os cantos do campus, e nada

conseguia tirar o sorriso do meu rosto.

— Está pronta para entrar? — perguntou Julia, notando o

quanto eu estava encantada. — Se já ficou assim só com o lado de

fora, vai surtar quando ver por dentro. Mas olha, já vou te avisando: os

ingleses são muito charmosos. Quando veem uma mulher bonita como

você, eles atacam mesmo. Só tome cuidado com aquele olhar sexy ou

o sorriso irresistível. Isso pode acabar com a sua vida — disse,

pensando em voz alta.

— Falando assim, até parece que aconteceu com você —

brinquei.

Ela me lançou um olhar triste.

— Aconteceu. Eu já fui burra o suficiente pra cair nisso.
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