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Alice Giordano
Ainda não era tão tarde quando chegamos ao apartamento de
Julia. Assim que cruzamos a porta, ela fez questão de me mostrar
cada cômodo — a cozinha compacta, mas moderna, a sala com um
sofá aconchegante e algumas plantas que davam vida ao ambiente, e
o banheiro de azulejos claros. Ao final, apontou para o seu quarto e
disse, com um sorriso leve, mas firme:
— Pode se sentir em casa, mexa em tudo que precisar...
menos aqui. — disse, referindo-se ao próprio quarto.
Era compreensível. Um limite que eu respeitaria sem
questionar.
Enquanto caminhava pelo apartamento, ainda tentava acreditar
que tudo aquilo estava mesmo acontecendo comigo. Londres. Eu, em
Londres. Nunca imaginei que estaria nessa cidade, prestes a cursar
Literatura, com a possibilidade real de construir uma vida aqui —
desde que conseguisse um emprego fixo. Era esse o caminho que eu
precisava seguir.
Voltar para a Polônia? Nunca mais. E muito menos para
Alessandria. Meu pai havia tirado de mim qualquer chance de retorno.
Depois do que Sara me revelou, o medo que eu sentia dele se
multiplicou. Um homem que fora capaz de matar uma família inteira e,
ainda por cima, vender a própria filha para um desconhecido… era
capaz de qualquer atrocidade.
Minha consciência martelava em minha mente, me lembrando
que minha tia continuava próxima daquele monstro. E esse
pensamento me fazia apertar o peito.
Assim que me sentei na cama do quarto que Julia havia
reservado para mim, liguei para ela. A mala, largada no canto, seria
desfeita depois. Julia tinha saído para comprar alguma coisa que não
entendi muito bem o que era — talvez um produto de limpeza ou
algum item de cozinha — e, até seu retorno, eu estava sozinha.
A viagem, embora não tão longa, me deixara exausta. O
cansaço se misturava à ansiedade e ao medo, embaralhando minha
tranquilidade. Queria ouvir a voz da minha tia, torcendo para que isso
me acalmasse.
O telefone chamou três vezes antes de ser atendido. Quando
ouvi sua voz, percebi o quanto ela estava apreensiva. A respiração de
alívio do outro lado da linha quase me fez chorar.
— Estava preocupada, menina! — disse, com a voz tensa. —
Minha amiga comentou que você ainda não havia chegado, e eu sabia
que seu voo chegou no horário.
Um peso caiu sobre mim. Senti culpa por tê-la deixado
apreensiva, ainda mais sabendo que nem estava onde ela imaginava.
— Me desculpa, tia... — falei, hesitante. — Mas eu não fui para
a casa da sua amiga.
A pausa dela foi imediata. Meu coração acelerou. Continuei,
tentando conter a voz trêmula:
— Antes que me dê uma bronca, eu só queria agradecer. De
verdade. Tudo que a senhora fez por mim foi incrível, e um dia, juro
que vou retribuir. Mas pensei melhor... ficar na casa da sua amiga
seria fácil demais para Luca me encontrar.
O silêncio que seguiu foi ensurdecedor. Eu sabia que ela ficaria
preocupada por não saber exatamente onde eu estava, mas também
sabia que, com vinte anos, eu já podia — e precisava — me virar
sozinha.
Depois de um suspiro audível, ela respondeu com serenidade:
— Você é uma menina inteligente, Alice.
Havia orgulho em sua voz.
— Seu pai ficou descontrolado quando contei da sua fuga. Mas
eu não fui burra. Inventei que você estava apaixonada por um francês
e que tinha escondido o relacionamento até de mim.
A maneira como ela soltou um leve riso me arrancou um
sorriso, mesmo que tímido. Minha tia sempre foi boa em inventar
histórias, quase tão boa quanto a própria Julia.
— Quem não gostou nada disso foi Oton. Ele apareceu aqui
exigindo o dinheiro de volta, como se você fosse uma encomenda que
nunca chegou.
A raiva me queimou por dentro. Odiava aquele homem tanto
quanto odiava meu pai. Só de lembrar do jeito como ele me olhava, um
calafrio me percorria a espinha. Não era só nojo — era medo.
— Quero que esses dois vão para... o inferno. — resmunguei,
contendo o palavrão mais pesado que me veio à mente. Meus anos no
convento ainda deixavam suas marcas. Eu não era nenhuma santa,
mas também não conseguia deixar de lado certos ensinamentos da
casa de Deus.
— Só espero que nada aconteça com a senhora. Eu não me
perdoaria.
— Não se preocupe, querida. Luca pode ser o diabo em
pessoa, mas morre de medo de ser deportado para a Itália. Se fizer
algo contra mim, não terá para onde correr. — A convicção dela me
trouxe algum alívio.
E eu realmente precisava acreditar nisso. Sabia que ele vivia
preso àquela cidade por conveniência e medo. Se fosse pego, seria
detido imediatamente. Mas preferi não contar com sorte. Precaução
era minha melhor amiga agora.
— Não precisa se preocupar comigo — continuei, tentando
parecer confiante. — Vou ligar todos os dias. Estou em um lugar
confortável, e amanhã começo a procurar um emprego. Já me sinto
melhor depois de falar com você.
De fato, aquela ligação me deu ânimo. Menos medo. Mais
determinação.
— Amanhã vou à Universidade de Londres me apresentar.
Depois disso, tudo vai melhorar.
— Vai sim, meu amor. Tenho certeza.
Ao desligar, tentei me conter. Quis ser forte. Mas foi inútil. As
lágrimas escorreram silenciosas. Estar longe da única família que eu
tinha me partia o coração. Mas tudo isso era necessário. Por ela, por
mim, por um futuro diferente. E eu faria o possível — e o impossível —
para trazê-la para cá um dia. Quando estivesse firme. Quando fosse,
finalmente, livre.
****
O dia de ontem foi surpreendentemente leve e bem aproveitado
ao lado de Julia. Confessei a ela, entre risos e alguma vergonha, que
não estava conseguindo acompanhar seu ritmo acelerado de fala. Ela
sorriu e explicou que falava assim quando ficava nervosa — o que de
certa forma nos ajudou a relaxar e quebrar o gelo logo de início.
Foi divertido descobrir um pouco de Londres por seus olhos.
Ela vivia ali há três anos, com o irmão, e conhecia bem cada esquina.
Julia era brasileira e sempre sonhou em estudar fora do país. Falava
disso com brilho nos olhos. Com entusiasmo, me apresentou alguns
doces típicos do Brasil que tinha guardados na despensa — brigadeiro,
paçoca, e um doce de leite macio que quase me fez chorar de alegria.
Amei todos, sem exceção.
Conversamos até tarde da noite. Era curioso e um pouco
assustador pensar que, em apenas um dia, eu havia feito uma
amizade tão verdadeira num país totalmente novo. Era como se
alguma força estivesse me guiando ao encontro de pessoas certas.
Hoje, despertei cedo. Fiz minha oração matinal, pedindo, com o
coração apertado, que tudo desse certo na minha apresentação à
universidade. Se algo desse errado, eu não saberia o que fazer.
Estaria completamente perdida.
Esperei durante um ano inteiro para que minha bolsa fosse
aceita. E mesmo com todas as dificuldades, não desisti. Tive uma
infância reclusa, parte dela vivida dentro de um convento. E depois,
quando fomos para a Polônia, estudei em uma escola fraca —
resultado das escolhas erradas do meu pai. Um homem assassino,
cruel, que me afastou de qualquer chance real de futuro.
Quando finalmente recebi a carta de aceitação, quase não
acreditei. Achava que minhas chances haviam se esgotado. Mas,
como dizem, Deus escreve certo por linhas tortas... e minhas preces
foram ouvidas.
Tive também a sorte de Julia estudar no mesmo campus que
eu. Iríamos juntas para a universidade, o que me aliviava
profundamente. Eu mal conhecia as ruas da cidade, e tê-la ao meu
lado me dava segurança. Agora, eu faria tudo o que por tantos anos
me foi privado.
Sou uma mulher de vinte anos que nunca conheceu o mundo.
Os cinco anos que vivi na Polônia foram como uma prisão. Luca, meu
pai, sempre me manteve trancada em casa como se fosse um soldado
sob vigilância. Ele era controlador, exigente, e qualquer tentativa minha
de sair resultava em punições severas.
Pode até ser pecado dizer que o odiava — Deus me perdoe —,
mas essa era a verdade. Luca era uma das piores pessoas que
conheci. Um homem que matou por questões de sobrenome, que me
trancou como se eu fosse sua propriedade, e que ainda me vendeu,
sem o menor remorso, a um homem sessentão. Tudo isso por
ganância.
Enquanto penteava meus cabelos diante do espelho, observava
meu próprio reflexo como se esperasse encontrar respostas. Não era
má. Nunca fui. Apesar de tudo que Luca fez comigo, jamais destratei
minha família. Mas, mesmo assim, sentia medo. Medo do que viria.
Medo de mim mesma. Medo até do que via no espelho.
— Já está pronta? — A voz de Julia me tirou dos pensamentos.
Ela estava parada na porta, sorrindo como sempre. Parecia ter uma luz
própria, um bom humor inabalável, independentemente da hora do dia.
— Você está muito bonita. Você é bonita. — Riu de si mesma. —
Desculpa, ainda estou nervosa.
Apesar de termos praticamente a mesma idade, éramos muito
diferentes. Julia era extrovertida, acelerada, espontânea. Eu, mais
reservada, introspectiva, discreta. Ela não fazia ideia do que eu tinha
passado. Se soubesse, talvez não sorrisse tanto ao meu lado.
— Estou pronta. E... obrigada. — respondi com um sorriso
contido.
Não estava acostumada a receber elogios. Os últimos que ouvi
vinham de alguém de quem eu preferia esquecer. Desde os quinze
anos, percebi o modo como Oton me observava. Era assustador
pensar que um homem como ele pudesse se interessar por mim
naquela idade. Ele pagou ao meu pai pela promessa de casamento,
como se eu fosse um objeto negociável. Ainda hoje me angustia
pensar que ele poderia me procurar... e me levar de volta para a
Polônia.
Levantei-me, tentando afastar os pensamentos ruins.
— Vamos logo. Não quero te atrasar.
— Não se preocupe. Moramos perto e os horários são bem
flexíveis. — disse, com aquele mesmo sorriso animado.
A ansiedade me consumia. Eu queria sair logo do apartamento
e ver a cidade com outros olhos. Ontem, cheguei tão nervosa que mal
prestei atenção em tudo ao redor. Quando finalmente descemos e
meus pés tocaram a calçada, algo mudou dentro de mim. Senti-me...
diferente.
As ruas de Londres não se pareciam em nada com a Polônia,
tampouco com Alessandria. O clima frio me invadiu, despertando um
tipo novo de alegria. As pessoas andavam apressadas, com as mãos
enfiadas nos bolsos dos casacos pesados, e os prédios altos e
modernos refletiam a luz cinzenta do céu. Os carros, em constante
movimento, davam ritmo à cidade.
Naquele instante, caiu a ficha. Eu estava, de fato, em Londres.
E era tudo tão maravilhoso que não consegui conter o riso. Ri como
uma boba encantada.
— Vamos, o táxi chegou. — chamou Julia, me puxando com
gentileza para dentro do carro.
Se dependesse de mim, teria ido a pé. Queria observar cada
detalhe, absorver tudo. Mas sabia que seria pedir demais.
Durante o trajeto, Julia tagarelava animadamente, mas minha
atenção estava toda voltada para a janela. Eu observava tudo: as
pessoas atravessando as ruas apressadas, os ônibus vermelhos, os
cafés aconchegantes nas esquinas. As fotos do Google jamais
conseguiriam capturar a verdadeira beleza daquela cidade. Só os
olhos podiam.
Estávamos no inverno, o que me fez lembrar da Itália. Mesmo
nos tempos difíceis do convento, eu gostava do frio. Algumas tardes,
as irmãs abriam as portas do refeitório e colocavam cadeiras de
madeira do lado de fora. Nós nos sentávamos enroladas em
cobertores, bebendo chocolate quente e vendo o mundo passar. Era
uma memória doce... que agora me fazia chorar por dentro.
Contive as lágrimas antes que caíssem. Eu não queria ser
freira, e sabia disso desde cedo. Mas, mesmo assim, criei laços. Se
meu pai não tivesse destruído tudo, talvez minha vida tivesse tomado
outro rumo. Talvez eu ainda estivesse em Alessandria, visitando o
convento de vez em quando.
Mas aquela escolha também era boa. Eu só precisava aceitar
que parte do passado teria de ficar no passado. Um passo de cada
vez.
Quando o táxi estacionou diante da universidade, fiquei sem
palavras. O prédio era imenso, com arquitetura imponente. Estudantes
caminhavam por todos os lados, e havia um brilho no ar que nenhuma
fotografia poderia capturar.
— Está pronta para entrar? — perguntou Julia, percebendo
meu encantamento. — Se já ficou assim do lado de fora, vai surtar
quando entrar. Mas, olha, cuidado com os ingleses charmosos.
Quando veem uma mulher bonita como você, eles não perdem tempo.
Mas fuja daquele olhar sexy e do sorriso encantador, ou sua vida pode
virar de cabeça para baixo. — comentou, quase como um aviso.
— Falando assim, até parece que você caiu nesse conto. —
brinquei, provocando um sorriso em mim mesma.
Mas Julia baixou os olhos e seu sorriso se apagou um pouco.
— É... eu já fui burra de cair.