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4

Alice Giordano

Ainda não era tão tarde quando chegamos ao apartamento de

Julia. Assim que cruzamos a porta, ela fez questão de me mostrar

cada cômodo — a cozinha compacta, mas moderna, a sala com um

sofá aconchegante e algumas plantas que davam vida ao ambiente, e

o banheiro de azulejos claros. Ao final, apontou para o seu quarto e

disse, com um sorriso leve, mas firme:

— Pode se sentir em casa, mexa em tudo que precisar...

menos aqui. — disse, referindo-se ao próprio quarto.

Era compreensível. Um limite que eu respeitaria sem

questionar.

Enquanto caminhava pelo apartamento, ainda tentava acreditar

que tudo aquilo estava mesmo acontecendo comigo. Londres. Eu, em

Londres. Nunca imaginei que estaria nessa cidade, prestes a cursar

Literatura, com a possibilidade real de construir uma vida aqui —

desde que conseguisse um emprego fixo. Era esse o caminho que eu

precisava seguir.

Voltar para a Polônia? Nunca mais. E muito menos para

Alessandria. Meu pai havia tirado de mim qualquer chance de retorno.

Depois do que Sara me revelou, o medo que eu sentia dele se

multiplicou. Um homem que fora capaz de matar uma família inteira e,

ainda por cima, vender a própria filha para um desconhecido… era

capaz de qualquer atrocidade.

Minha consciência martelava em minha mente, me lembrando

que minha tia continuava próxima daquele monstro. E esse

pensamento me fazia apertar o peito.

Assim que me sentei na cama do quarto que Julia havia

reservado para mim, liguei para ela. A mala, largada no canto, seria

desfeita depois. Julia tinha saído para comprar alguma coisa que não

entendi muito bem o que era — talvez um produto de limpeza ou

algum item de cozinha — e, até seu retorno, eu estava sozinha.

A viagem, embora não tão longa, me deixara exausta. O

cansaço se misturava à ansiedade e ao medo, embaralhando minha

tranquilidade. Queria ouvir a voz da minha tia, torcendo para que isso

me acalmasse.

O telefone chamou três vezes antes de ser atendido. Quando

ouvi sua voz, percebi o quanto ela estava apreensiva. A respiração de

alívio do outro lado da linha quase me fez chorar.

— Estava preocupada, menina! — disse, com a voz tensa. —

Minha amiga comentou que você ainda não havia chegado, e eu sabia

que seu voo chegou no horário.

Um peso caiu sobre mim. Senti culpa por tê-la deixado

apreensiva, ainda mais sabendo que nem estava onde ela imaginava.

— Me desculpa, tia... — falei, hesitante. — Mas eu não fui para

a casa da sua amiga.

A pausa dela foi imediata. Meu coração acelerou. Continuei,

tentando conter a voz trêmula:

— Antes que me dê uma bronca, eu só queria agradecer. De

verdade. Tudo que a senhora fez por mim foi incrível, e um dia, juro

que vou retribuir. Mas pensei melhor... ficar na casa da sua amiga

seria fácil demais para Luca me encontrar.

O silêncio que seguiu foi ensurdecedor. Eu sabia que ela ficaria

preocupada por não saber exatamente onde eu estava, mas também

sabia que, com vinte anos, eu já podia — e precisava — me virar

sozinha.

Depois de um suspiro audível, ela respondeu com serenidade:

— Você é uma menina inteligente, Alice.

Havia orgulho em sua voz.

— Seu pai ficou descontrolado quando contei da sua fuga. Mas

eu não fui burra. Inventei que você estava apaixonada por um francês

e que tinha escondido o relacionamento até de mim.

A maneira como ela soltou um leve riso me arrancou um

sorriso, mesmo que tímido. Minha tia sempre foi boa em inventar

histórias, quase tão boa quanto a própria Julia.

— Quem não gostou nada disso foi Oton. Ele apareceu aqui

exigindo o dinheiro de volta, como se você fosse uma encomenda que

nunca chegou.

A raiva me queimou por dentro. Odiava aquele homem tanto

quanto odiava meu pai. Só de lembrar do jeito como ele me olhava, um

calafrio me percorria a espinha. Não era só nojo — era medo.

— Quero que esses dois vão para... o inferno. — resmunguei,

contendo o palavrão mais pesado que me veio à mente. Meus anos no

convento ainda deixavam suas marcas. Eu não era nenhuma santa,

mas também não conseguia deixar de lado certos ensinamentos da

casa de Deus.

— Só espero que nada aconteça com a senhora. Eu não me

perdoaria.

— Não se preocupe, querida. Luca pode ser o diabo em

pessoa, mas morre de medo de ser deportado para a Itália. Se fizer

algo contra mim, não terá para onde correr. — A convicção dela me

trouxe algum alívio.

E eu realmente precisava acreditar nisso. Sabia que ele vivia

preso àquela cidade por conveniência e medo. Se fosse pego, seria

detido imediatamente. Mas preferi não contar com sorte. Precaução

era minha melhor amiga agora.

— Não precisa se preocupar comigo — continuei, tentando

parecer confiante. — Vou ligar todos os dias. Estou em um lugar

confortável, e amanhã começo a procurar um emprego. Já me sinto

melhor depois de falar com você.

De fato, aquela ligação me deu ânimo. Menos medo. Mais

determinação.

— Amanhã vou à Universidade de Londres me apresentar.

Depois disso, tudo vai melhorar.

— Vai sim, meu amor. Tenho certeza.

Ao desligar, tentei me conter. Quis ser forte. Mas foi inútil. As

lágrimas escorreram silenciosas. Estar longe da única família que eu

tinha me partia o coração. Mas tudo isso era necessário. Por ela, por

mim, por um futuro diferente. E eu faria o possível — e o impossível —

para trazê-la para cá um dia. Quando estivesse firme. Quando fosse,

finalmente, livre.

****

O dia de ontem foi surpreendentemente leve e bem aproveitado

ao lado de Julia. Confessei a ela, entre risos e alguma vergonha, que

não estava conseguindo acompanhar seu ritmo acelerado de fala. Ela

sorriu e explicou que falava assim quando ficava nervosa — o que de

certa forma nos ajudou a relaxar e quebrar o gelo logo de início.

Foi divertido descobrir um pouco de Londres por seus olhos.

Ela vivia ali há três anos, com o irmão, e conhecia bem cada esquina.

Julia era brasileira e sempre sonhou em estudar fora do país. Falava

disso com brilho nos olhos. Com entusiasmo, me apresentou alguns

doces típicos do Brasil que tinha guardados na despensa — brigadeiro,

paçoca, e um doce de leite macio que quase me fez chorar de alegria.

Amei todos, sem exceção.

Conversamos até tarde da noite. Era curioso e um pouco

assustador pensar que, em apenas um dia, eu havia feito uma

amizade tão verdadeira num país totalmente novo. Era como se

alguma força estivesse me guiando ao encontro de pessoas certas.

Hoje, despertei cedo. Fiz minha oração matinal, pedindo, com o

coração apertado, que tudo desse certo na minha apresentação à

universidade. Se algo desse errado, eu não saberia o que fazer.

Estaria completamente perdida.

Esperei durante um ano inteiro para que minha bolsa fosse

aceita. E mesmo com todas as dificuldades, não desisti. Tive uma

infância reclusa, parte dela vivida dentro de um convento. E depois,

quando fomos para a Polônia, estudei em uma escola fraca —

resultado das escolhas erradas do meu pai. Um homem assassino,

cruel, que me afastou de qualquer chance real de futuro.

Quando finalmente recebi a carta de aceitação, quase não

acreditei. Achava que minhas chances haviam se esgotado. Mas,

como dizem, Deus escreve certo por linhas tortas... e minhas preces

foram ouvidas.

Tive também a sorte de Julia estudar no mesmo campus que

eu. Iríamos juntas para a universidade, o que me aliviava

profundamente. Eu mal conhecia as ruas da cidade, e tê-la ao meu

lado me dava segurança. Agora, eu faria tudo o que por tantos anos

me foi privado.

Sou uma mulher de vinte anos que nunca conheceu o mundo.

Os cinco anos que vivi na Polônia foram como uma prisão. Luca, meu

pai, sempre me manteve trancada em casa como se fosse um soldado

sob vigilância. Ele era controlador, exigente, e qualquer tentativa minha

de sair resultava em punições severas.

Pode até ser pecado dizer que o odiava — Deus me perdoe —,

mas essa era a verdade. Luca era uma das piores pessoas que

conheci. Um homem que matou por questões de sobrenome, que me

trancou como se eu fosse sua propriedade, e que ainda me vendeu,

sem o menor remorso, a um homem sessentão. Tudo isso por

ganância.

Enquanto penteava meus cabelos diante do espelho, observava

meu próprio reflexo como se esperasse encontrar respostas. Não era

má. Nunca fui. Apesar de tudo que Luca fez comigo, jamais destratei

minha família. Mas, mesmo assim, sentia medo. Medo do que viria.

Medo de mim mesma. Medo até do que via no espelho.

— Já está pronta? — A voz de Julia me tirou dos pensamentos.

Ela estava parada na porta, sorrindo como sempre. Parecia ter uma luz

própria, um bom humor inabalável, independentemente da hora do dia.

— Você está muito bonita. Você é bonita. — Riu de si mesma. —

Desculpa, ainda estou nervosa.

Apesar de termos praticamente a mesma idade, éramos muito

diferentes. Julia era extrovertida, acelerada, espontânea. Eu, mais

reservada, introspectiva, discreta. Ela não fazia ideia do que eu tinha

passado. Se soubesse, talvez não sorrisse tanto ao meu lado.

— Estou pronta. E... obrigada. — respondi com um sorriso

contido.

Não estava acostumada a receber elogios. Os últimos que ouvi

vinham de alguém de quem eu preferia esquecer. Desde os quinze

anos, percebi o modo como Oton me observava. Era assustador

pensar que um homem como ele pudesse se interessar por mim

naquela idade. Ele pagou ao meu pai pela promessa de casamento,

como se eu fosse um objeto negociável. Ainda hoje me angustia

pensar que ele poderia me procurar... e me levar de volta para a

Polônia.

Levantei-me, tentando afastar os pensamentos ruins.

— Vamos logo. Não quero te atrasar.

— Não se preocupe. Moramos perto e os horários são bem

flexíveis. — disse, com aquele mesmo sorriso animado.

A ansiedade me consumia. Eu queria sair logo do apartamento

e ver a cidade com outros olhos. Ontem, cheguei tão nervosa que mal

prestei atenção em tudo ao redor. Quando finalmente descemos e

meus pés tocaram a calçada, algo mudou dentro de mim. Senti-me...

diferente.

As ruas de Londres não se pareciam em nada com a Polônia,

tampouco com Alessandria. O clima frio me invadiu, despertando um

tipo novo de alegria. As pessoas andavam apressadas, com as mãos

enfiadas nos bolsos dos casacos pesados, e os prédios altos e

modernos refletiam a luz cinzenta do céu. Os carros, em constante

movimento, davam ritmo à cidade.

Naquele instante, caiu a ficha. Eu estava, de fato, em Londres.

E era tudo tão maravilhoso que não consegui conter o riso. Ri como

uma boba encantada.

— Vamos, o táxi chegou. — chamou Julia, me puxando com

gentileza para dentro do carro.

Se dependesse de mim, teria ido a pé. Queria observar cada

detalhe, absorver tudo. Mas sabia que seria pedir demais.

Durante o trajeto, Julia tagarelava animadamente, mas minha

atenção estava toda voltada para a janela. Eu observava tudo: as

pessoas atravessando as ruas apressadas, os ônibus vermelhos, os

cafés aconchegantes nas esquinas. As fotos do Google jamais

conseguiriam capturar a verdadeira beleza daquela cidade. Só os

olhos podiam.

Estávamos no inverno, o que me fez lembrar da Itália. Mesmo

nos tempos difíceis do convento, eu gostava do frio. Algumas tardes,

as irmãs abriam as portas do refeitório e colocavam cadeiras de

madeira do lado de fora. Nós nos sentávamos enroladas em

cobertores, bebendo chocolate quente e vendo o mundo passar. Era

uma memória doce... que agora me fazia chorar por dentro.

Contive as lágrimas antes que caíssem. Eu não queria ser

freira, e sabia disso desde cedo. Mas, mesmo assim, criei laços. Se

meu pai não tivesse destruído tudo, talvez minha vida tivesse tomado

outro rumo. Talvez eu ainda estivesse em Alessandria, visitando o

convento de vez em quando.

Mas aquela escolha também era boa. Eu só precisava aceitar

que parte do passado teria de ficar no passado. Um passo de cada

vez.

Quando o táxi estacionou diante da universidade, fiquei sem

palavras. O prédio era imenso, com arquitetura imponente. Estudantes

caminhavam por todos os lados, e havia um brilho no ar que nenhuma

fotografia poderia capturar.

— Está pronta para entrar? — perguntou Julia, percebendo

meu encantamento. — Se já ficou assim do lado de fora, vai surtar

quando entrar. Mas, olha, cuidado com os ingleses charmosos.

Quando veem uma mulher bonita como você, eles não perdem tempo.

Mas fuja daquele olhar sexy e do sorriso encantador, ou sua vida pode

virar de cabeça para baixo. — comentou, quase como um aviso.

— Falando assim, até parece que você caiu nesse conto. —

brinquei, provocando um sorriso em mim mesma.

Mas Julia baixou os olhos e seu sorriso se apagou um pouco.

— É... eu já fui burra de cair.
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