Reencontro
- Jace?
Os olhos dele se abriram, quando o chamei pelo nome da porta do quarto do hospital. Estavam virados para o teto, ainda assim, eu podia vê-los: lindos e negros. Os mesmos olhos que eu havia fitado, incontáveis vezes, e ainda assim, muito longe do suficiente.
Ele mexeu os dedos das mãos. Máquinas apitavam ao redor, um retinir metálico constante. Eram as máquinas que o haviam mantido vivo durante todo aquele longo período. Elas haviam respirado por ele, alimentado o seu corpo, através de fios ligados à sua pele e carne.
Eu respirei fundo. Minhas pernas travaram e não consegui avançar mais nenhum centímetro.
Jace estava vivo. Vivo e consciente, pela primeira vez, em dois meses. Ele seria capaz de me ouvir e enxergar. Mas será que se lembraria de mim? Sentiria as mesmas coisas que havia me confessado sentir antes de entrar em coma? Ou fingiria que nada havia acontecido?
E se eu tivesse esperado semanas a fio por um homem que não me amava?
Ou pior, um homem que não me reconhecesse.
Aquelas dúvidas bombardeavam a minha mente como um campo de batalhas. A insegurança tomava conta de mim, me cegava e ensurdecia para todo o resto. Eu precisava acalmar aquele nervosismo.
Obrigando minhas pernas a se mexerem, eu me aproximei da cama, com uma lentidão excruciante.
Ele parecia pensativo. Era como se não tivesse percebido a minha presença. Ele tinha mesmo me escutado chegar? Tinha ouvido quando eu chamei o seu nome?
Então, porque eu não sabia mais o que fazer ou como agir, eu estendi a minha mão, com cuidado, e segurei a dele. Exatamente como fiz, dia após dia, todas aquelas semanas.
Os olhos de Jace, então, se voltaram para mim. Eu me preparei para o vazio neles. Em vez disso, eles se arregalaram levemente, as pupilas dilatando. Havia alguma coisa ali. Alguma coisa além do simples reconhecimento, que já seria muito bom naquele momento.
Jace mexeu os lábios, mas a voz não saiu.
E foi o bastante para eu ter um ataque de pânico.
- Ele acordou há menos de duas horas. Passou quase todo o tempo dormindo depois disso, por causa dos sedativos – a enfermeira disse, entrando no quarto. Em suas mãos, havia um equipamento para medir pressão. – É normal estar um pouco confuso, mas a consciência vai retornando com o tempo.
- Você sabe se ele tem memória?
- Ainda não podemos saber, mas todas as funções cerebrais foram preservadas – ela circulou a cama. – Ele ainda não falou com ninguém. Você é a primeira pessoa a qual ele reage desde que acordou, na verdade.
Os dedos de Jace fizeram cócegas na palma da minha mão.
Sorrindo, apertei seus dedos com o máximo de força que me permiti sem machucá-lo. Ele fechou os olhos, parecendo relaxado.
Quando a enfermeira terminou de monitorar os sinais vitais, virou-se para mim com as sobrancelhas levemente erguidas.
- Você sabe que acabou o horário de visita, não é?
- Sinto muito. Eu poderia ter mais alguns minutos com ele, por favor? – perguntei, esperançosa e ela assentiu.
- Fique o tempo que quiser, ok? Só não deixe ele se esforçar demais.
Uma onda de alívio inundou meu coração.
- Eu prometo que não vou deixar.
Quando a mulher atravessou a porta de saída, eu me virei para Jace, ansiosa, mas, ao mesmo tempo, com cautela. Eu não estava preparada para ter o meu coração partido outra vez. Jace tinha feito isso, meses atrás, quando me afastou dele para me proteger do furacão que estava prestes a devastar sua vida. Na época, eu não conhecia os seus motivos.
Foi um período doloroso e turbulento. Eu sabia que eu iria sobreviver, porque eu era forte. Não fui criada para ser assim, mas aprendi com o curso da minha própria vida. Mesmo assim, teve momentos em que eu duvidei até da minha força.
- Como você teve coragem de dormir tanto? – eu franzi a testa, analisando o rosto moreno que me olhava de maneira soturna. Ele parecia desconfiado. Mas desconfiado de que? De mim? Aquilo era impensável. – Eu estava... não importa. Só quero que saiba que está na hora de sair dessa cama, Sr Kellan.
- Srta Goode – o murmúrio rouco fez os pelos da minha nuca se levantarem. – Você está... bonita. Essa roupa é nova? – ele pigarreou, depois engoliu em seco. – Pode trazer um copo dágua?
Só isso? Era só isso o que ele tinha a dizer, que eu estava bonita?
Raiva e indignação brigaram dentro de mim por espaço.
Olhei ao redor, mas não havia água no quarto. Como não achei o botão para acionar a enfermeira, eu fiz menção de sair do quarto para procurá-la, mas Jace segurou minha mão com firmeza no lugar. Seus dedos se entrelaçaram nos meus, obrigando-os a ficar onde estavam.
A força dele estava voltando rápido.
Ah sim, é claro que estava. Afinal, ele era Jace Kellan.
- Esqueça... a água – havia urgência nos seus olhos e meu coração dobrou o ritmo dos batimentos. – Não quero que vá embora, Olivia. Fique.
Respirei fundo. Ali estava, o Jace Kellan que eu conhecia. Irritadinho, passional, intenso.
Com um ofego, eu me inclinei sobre ele, encostando os lábios nos seus de leve antes de me afastar.
- Eu não vou a lugar algum. Não conte com isso, seu babaca teimoso.
***
- Eu não sei o que dizer – Natalie me olhava, chocada. – Agora, eu me sinto uma estúpida por ter compactuado com Emma naquele maldito encontro arranjado. Outra vez.
Estávamos nós duas na cozinha do meu apartamento. Eu estava preparando o jantar. Ou pelo menos, tentando. Minhas habilidades culinárias eram uma porcaria, mas eu me recusava a pedir comida de restaurante outra vez. E tinha decidido dar uma folga a minha mãe. Ela, sim, era uma cozinheira de mão cheia. Havia herdado aquele dom da minha avó, embora eu tivesse certeza de que ele havia pulado a minha geração.
- Acho que eu posso superar isso – sorri.
É claro que suas pequenas intromissões me incomodavam. Na verdade, elas me deixavam muito puta da vida. Mas aquela era uma noite feliz e eu rejeitava, absolutamente, a hipótese de transformá-la em um pesadelo, discutindo com Natalie as consequências negativas da sua síndrome de Eros metida a besta.
Além disso, ela andava estranha essa noite. Parecia nervosa, agitada, como se alguma coisa a incomodasse.
- Nós duas sabemos que Jace é a sua outra metade. Só ficamos com medo de perder você para o luto.
- Eu sei.
Não era a primeira vez que minha mãe e Emma metiam o bedelho na minha vida amorosa. E o mais ridículo é que elas não tinham nenhuma preferência por Logan, só tinham essa crença absurda de que era impossível viver feliz sozinha. E eu odiava aquele lema com todas as minhas forças. Desde sempre, eu vinha levantando a bandeira de que a felicidade só dependia de você mesma.
Natalie tinha um histórico de péssimas ações motivadas por uma capacidade de julgamento falha. Aliada a Emma, que era um cupido muito ruim, os resultados só poderiam ser desastrosos.
- Quando o Jace sai do hospital? – ela quis saber.
- Eu espero que logo. Mas tem menos de vinte e quatro horas que ele acordou, então ainda vai passar algum tempo em observação.
- Certo. Olivia...
- O que foi?
- Jonathan me ligou.
Eu andava rápido pela cozinha, de um lado para o outro, mas suas palavras me fizeram parar de repente e as cebolas foram parar no chão.
- Jonathan Price?
- Sim – ela se abaixou e foi me ajudando a recolher tudo. – Ele passou algum tempo fora da cidade, mas está de volta e queria saber como eu estava.
- E o que você disse?
- Nada demais. Nós só conversamos amenidades.
- Amenidades com o desgraçado que comeu a sua amiga? – eu bufei, jogando as cebolas dentro da pia. Ela pulou para trás com o susto. – Como você é civilizada, mamãe!
O rosto dela fico lívido.
- Eu tinha esquecido de como você pode ser grosseira quando quer.
- Jonathan é um babaca comedor e aproveitador – eu revirei os olhos, me virando na direção dela. – Ele quer enfiar as garras no seu restaurante. Eu sempre disse isso, mas você preferiu ignorar a verdade....
- E se aproveitou de mim porque eu sou uma idiota frágil e carente?
Mordi a as bochechas por dentro. Minha mãe tinha talento para transformar qualquer conversa em um banquete de auto depreciação. Eu não conseguia acreditar, ela estava detonando a nossa relação recentemente amigável por causa de um desgraçado infiel!
- Eu não disse isso, mãe.
- É claro que não. Você só insinuou... como sempre – ela lançou para mim um olhar acusador e, em seguida, saiu marchando para fora da cozinha.
Eu larguei as malditas cebolas e fui atrás dela, segurando em seu ombro para obrigá-la a me encarar.
- Achei que você odiasse o Jonathan! – exclamei, confusa. – Se é o que você quer, se é isso o que vai te fazer feliz, então passe uma borracha por cima de tudo e volte para ele!
- Eu não sei se é isso o que eu quero – ela cerrou as mãos com força, os dentes trincados. Parecia prestes a dar um soco em alguém. – Eu só não quero sentir que a minha vida passou a ser controlada pela minha própria filha. Você entende isso? Pode imaginar como é?
Uma torrente de lágrimas rolou através dos seus olhos. Natalie estava descontrolada, completamente descontrolada. Eu passei por cima do meu orgulho e enlacei seus ombros, puxando-a para um abraço apertado. Tentei confortá-la, mas minha mãe estava tensa, dura como uma pedra. E ela não me abraçou de volta.
O que estava acontecendo? Por que ela estava agindo daquele jeito? A sensação de mal estar foi crescendo entre nós, e eu dei um passo para trás, sentindo meu estômago embrulhar ao olhar dentro dos seus olhos vazios.
- Não quero que pense que estou tentando controlar você – murmurei, meus próprios olhos ardendo. Eu não queria perder o controle na frente dela, mas aquilo já estava acontecendo.
- E não está? Você diz que eu não devo me meter na sua vida, mas é exatamente isso o que vem fazendo comigo, desde que saímos de Los Angeles. E você anda era, praticamente, uma adolescente.
As palavras dela me causaram um desconforto. Lembranças horríveis revisitaram minha mente e as palavras escaparam da minha boca antes que eu pudesse segurar.
- E por que será, hein, mãe? Eu vi você afundar tantos projetos pessoais e sempre tive que ficar por perto para recolher seus cacos. E todos aqueles namorados, hein? Você tem ideia do que isso fez comigo? Tem ideia de que eu nunca consegui respirar de verdade até ter um emprego para segurar a sua barra cada vez que você desmoronasse?
Nós duas mergulhamos em um silêncio tenso. O olhar dela para mim era rancoroso. Eu nunca a tinha visto daquele jeito, parecia transtornada, quase fora de si. Havia um abismo entre nós agora e eu tive medo de que ele fosse instransponível.
- Isso não te dá nenhum direito sobre mim, Olivia – ela cuspiu as palavras com amargura. – Se você se sentia assim, deveria ter me contado, em vez de ficar guardando tudo para despejar anos mais tarde.
- Direito sobre você? – as lágrimas inundaram meus olhos, mas aquilo não pareceu comovê-la. Ela parecia outra pessoa. Alguém amarga e ressentida, não a mulher adorável e meio sem juízo que havia me criado. – Lamento muito que pense dessa forma. Tudo o que eu tentei foi ficar ao seu lado e impedir que você se machucasse de novo. Eu amo você, mãe.
Sua expressão vacilou um pouco. Achei que ela fosse voltar atrás naquelas acusações horríveis que tanto me machucavam, que me consumiam por dentro, mas Natalie apenas respirou fundo e disse:
- Agradeço o seu amor, de qualquer jeito, mas não preciso que você tome conta de mim. Estou indo para casa. Obrigada por tudo e cuide-se, Olivia.
E ela foi embora, me deixando em pedaços.
