Capítulo 7
Juliana dos Santos
Termino de me arrumar para ir pra casa. Tenho que me apressar, se não vou perder o ônibus. Eu sempre pego ele às seis e meia, na frente do condomínio.
Alguém bate na porta do meu quarto e eu abro.
-Bom dia Ju! Pedro disse para você dar um pulo na casa, eles querem conversar...
-Ok! -olho para o relógio e suspiro. -Vou perder meu ônibus...
-Vou falar com Amanda para um dos seguranças te levar.
-Não precisa Mariana.
-Precisa sim, afinal você vai se atrasar por causa deles... -Ela sorri e sai.
O que será que eles querem comigo?
Eles demonstraram estar satisfeitos com o meu serviço, e Luísa se adaptou bem a mim...
Eu que preciso, me adaptar a eles. Não consigo tirar os dois da minha cabeça. Eu tenho evitado ficar sozinha com eles, principalmente com Amanda.
Ela me desconcerta!
Já com Pedro é mais fácil, pois ele sempre está ocupado fazendo algo. Só nos encontramos sozinhos, naquele fatídico dia, que ele presenciou meu sonho erótico.
Sinto meu rosto esquentar toda vez que lembro disso. Que mico!
Só espero que ele não tenha percebido nada.
Já estou bolada com esse rompimento com a namorada deles. Talvez seja isso que eles queiram falar comigo. Será que eles romperam por minha causa?
Vitória me garantiu que ela ficou com ciúme de mim, e logo depois, Amanda comunicou aos empregados que Joana não era mais namorada deles.
Eu já havia presenciado um telefonema entre as duas, e Amanda soava extremamente irritada quando falava com ela, mas se brigaram por causa de mim, era para eu ser mandada embora, não ao contrário.
Suspiro e pego a minha bolsa indo em direção a casa principal. Em vez de ficar conjecturando o que vai acontecer.
Preciso encarar as coisas. Eles tem todo direito de querer conversar comigo, na hora que quiserem. Sou empregada deles.
Entro na sala e vejo Mariana servindo o café da manhã. Ela diz:
-Pediu para você subir para o escritório. -Merda! Eu conheço pouco eles, mas se pediram uma conversa no escritório é que querem falar comigo em particular.Mariana percebe a minha cara de espanto.-Relaxa, eles podem querer saber se está gostando do trabalho. Boa sorte!
Eu sorrio sem mostrar os dentes.
-Obrigada!
Subi as escadas e bati na porta do escritório.
-Entre... -escuto Amanda falando.
-Com licença, vocês querem falar comigo?
Amanda está sentada na cadeira atrás da mesa apenas vestindo um robe, e Pedro está sentado de frente para a mesa de roupa de academia.
- Sim Juliana... Sente- se por favor... -Pedro fala indicando a cadeira de frente para a sua.
Eu vou até lá e me sento, mas não resisto e acabo perguntando.
-Aconteceu algo?
-Sim Juliana. Você lembra quando achou estranho não termos te enchido de perguntas na entrevista?
-Lembro...
-Não te enchemos de perguntas porque gostamos de procurar a verdade por nós mesmos. Como disse, é fácil alguém contar uma história e dizer que é verdade. Não perdemos tempo com isso. Como trabalhamos com segurança e investigamos qualquer um que chegue perto de nossas vidas, fizemos o mesmo com você.
Eu sinto meu sangue gelar. Me sinto uma verdadeiro "idiota" por não ter imaginado que eles me investigariam. Porque é óbvio que eles fariam.
Como pude me basear nos meus antigos patrões? Eles não prestavam atenção nos próprios filhos, imagine se prestariam o papel de investigar a minha vida antes de tudo.
Eu lembro que eles fizeram algumas perguntas. Eu respondi todas honestamente, só omiti os detalhes que eu não queria contar. E eles se deram por satisfeito. Se me investigaram eu nunca fiquei sabendo.
As pessoas não são iguais... E eles tem centenas de seguranças na sua ficha de pagamento. Claro que eles iam investigar. Eles não iam por Luísa na mão de qualquer um. Vitória já tinha me dito que Joana levou a menina para uma festa de aniversário sem falar para Amanda, e foi um Deus nos acuda.
Como pude deixar isso passar? Eu sempre sou tão cuidadosa... Pelo menos eu tinha que ter imaginado isso.
Eu acabei deixando o meu encantamento falar mais alto. Descobri que estando perto deles, eu estou protegida do mundo externo. E eu nunca me senti tão segura, como me sentia agora.
Eu me iludi com a história que a Léo sugeriu, de que eu poderia ter algo com eles. Desde que cheguei aqui só penso nisso. Até sonho erótico eu tenho constantemente, com esses dois.
Volto a realidade com Pedro pondo um copo de água na minha frente. Eu nem vi ele levantar.
-Toma...
Pego o copo e percebo que estou tremendo. Tomo um gole de água.
-Mais calma?-Ele me pergunta sério.
-Sim, obrigada!
-Então Juliana, descobrimos isso aqui... -Amanda põe um monte de papel na minha frente. - E queremos ouvir a sua versão. Na verdade, a sua versão depende do seu futuro neste emprego. Estamos abertos para dialogar... Se não for do nosso jeito, você pode pegar suas coisas e ir embora ...
-Amanda... -fala Pedro olhando feio para ela.
-O quê? Eu descubro que a babá que contratei e confiei a minha filha, é mulher de um traficante e você ainda ralha comigo, porque estou sendo direta nas minhas colocações?
Meu coração aperta.
-Eu não sou mulher de traficante, Amanda. Pelo menos a cinco anos não. Desde que ele destruiu a minha vida eu nunca mais vi aquele infeliz! E se estou morando em São Paulo, é porque eu não tive outra oportunidade de ir embora deste país. A minha vontade sempre foi de ir para bem longe.
-Por isso queria ir embora do país com a família de Emerson?
-Sim, porque neste país eu nunca terei paz e nem sossego.
-E Emerson sabia disso?-pergunta Pedro.
-Não... Eu nunca menti nada para ele... Tudo que ele me perguntou eu falei a verdade.
-Só omitiu...
-Sim... O amigo de vocês não é tão meticuloso.
Amanda se levanta e começa a andar de um lado para o outro.
-Começa a falar Juliana... Já estou perdendo minha paciência...
Ela diz me olhando duro... Vejo decepção em seus olhos, e é uma reação normal, afinal eu não fui sincera. Mas essa história é tão feia, que eu não gosto de tocar no assunto. Fora que eu me sinto culpada por tudo que aconteceu. Foram anos de terapia para superar tudo. E tocar no assunto me dói.
Eu prometi que não ia lamentar mais o meu passado. Que as pessoas que me julgariam por ele, não me conheciam de verdade.
Eu enfrentei o preconceito a minha vida toda. E agora não seria diferente.
Eu limpo uma lágrima que insiste em cair, respiro fundo e começo a falar.
-Eu conheci Brian quando tinha treze anos. Minha mãe faleceu de infarto e ele havia acabado de se mudar para um barraco ao lado do da minha tia, que era a pessoa que ficou com a minha guarda. Estudamos juntos, e também brincamos bastante na rua. Aos 14 começamos a namorar, ele ainda era um menino bom. Ajudava a mãe, jogava bola, e cuidava de mim. Brian foi meu esteio por muito tempo. Aos quinze eu engravidei, e na sede de ter dinheiro para sustentar eu e meu filho, ele se envolveu com os negócios de seu irmão, que já era um traficante conhecido na época. Eu era uma criança gerando uma criança, sozinha no mundo. Não vou dizer que não sabia que ele havia se enveredando para o caminho do mau, porque eu sabia... Mas eu estava grávida, minha tia me deu as costas assim que descobriu... E eu fui morar com ele.
Bebo um pouco de água e respiro fundo.
A tremedeira não passa... Eu não sei se conseguirei contar tudo. Deus me ajude! Eu não quero abrir mão desse emprego! Eu preciso dele...
-É o que aconteceu depois? -Pedro me encoraja.
-Eu tive o bebê aos dezesseis e depois que voltei para a casa as agressões começaram. Primeiro eram verbais, depois houve um empurrão mais forte na porta do banheiro e depois eu virei saco de pancadas. Eu apanhava por tudo. Por uma camisa não passada direito, por um almoço que não tive tempo de fazer, ou até porque a boca de fumo não deu o lucro que ele esperava. Tudo era motivo para ele me espancar. Até que descobri, um dia, um dinheiro escondido no fundo do armário e planejei a minha fuga.
Falo a história não encarando nenhum dos dois... Eu não conseguiria. Olho para as minhas mãos no colo.
-Peguei apenas o necessário para manter eu e meu filho seguros por um tempo. E abri uma poupança no banco, escondendo o dinheiro lá. Arrumei uma mochila apenas com o necessário e esperei ter um evento no morro para fugir. Foi um baile funk onde teria um MC famoso. Esperei ele sair de casa e logo depois desci o morro carregando meu filho nos braços. Acontece que os olheiros me viram descendo e logo avisaram ele. Eu me esqueci completamente dos olheiros.
Meu coração se aperta e começo a chorar, sem conseguir me segurar.
Ele enche mais uma vez meu copo de água e me dá na mão.
-Consegui chamar um táxi, entrei no táxi... Mais logo depois começamos a ser seguidos, e o outro carro atirou nos pneus do táxi, o motorista perdeu o controle do carro e o mesmo capotou algumas vezes. Eu acordei no hospital, dois dias depois com o Brian na minha cabeceira, frio e distante. Perguntei para ele sobre nosso filho e ele disse que eu o matei. Como ele estava nos meus braços, sem cadeirinha e cinto de segurança, ele morreu com a capotagem.
Eu soluço e não consigo falar mais nada. Ele segura a minha mão me alisando. Não sei onde está Amanda, provavelmente atrás de mim no mesmo lugar que ela esteve desde que se levantou da cadeira. Eu não quero que ninguém sinta pena de mim. Eu não mereço!
-Não foi você que matou seu filho. -Pedro fala na minha frente com a voz raivosa.
Eu levanto meu olhar e vejo ele sério e compenetrado.
-Será que não? Eu fui burra e inocente o bastante, para acreditar que poderia sair daquele inferno com o meu filho ileso. Então sim, eu matei meu filho. -Limpo as lágrimas, suspiro para me controlar a continuo.-Ele não me perdoou, me tirou do hospital três dias depois e me trancou num quarto no alto do morro, até que eu me recuperasse do acidente. Depois eu virei a sua boneca de spanking, como ele gostava de me chamar. Estava começando a lutar boxe, então vocês podem imaginar o que aconteceu. Em alguns meses ele quebrou meu nariz, braço, algumas costelas e minha cara vivia cheia de hematomas. Fora a violência sexual constante.
Retiro a mão do agarro das mãos de Pedro, e ele percebe que eu não quero mais sentir o contato dele. Eu soluço, limpo o nariz com as costas das mãos e respiro fundo para me controlar.
Ele se arruma na poltrona e diz:
-Como conseguiu fugir?
-Uma boa alma me ajudou... Não sei quem foi... Só sei que deixou a porta aberta. E eu nunca corri tanto como corri naquele dia. Fui me camuflando pelas ruas estreitas do morro, até conseguir sair de lá sem ser vista. Afinal eu morei naquele lugar a minha vida toda... Eu conhecia bem os atalhos. Era o que eu deveria ter feito quando saí de lá pela primeira vez. Mas com medo de machucar meu filho, passando por lugares nada comuns, eu não fiz. Fui direto ao banco, retirei todo o dinheiro que eu havia roubado dele e peguei o primeiro ônibus que vi na rodoviária. Era um ônibus para São Paulo. E estou aqui hoje. Desde então tenho me mantido escondida... Mas sei que isso é temporário... Um dia ele vai me achar... Ele jurou que ia se vingar de mim, porque matei nosso filho.
Faz-se um silêncio no recinto e vejo um movimento em minha direção, levanto a cabeça e vejo Amanda se ajoelhando aos meus pés e chorando.
-Sinto muito por você ter perdido seu filho. Fez o que qualquer mãe faria, Juliana. Não se culpe por isso.
Eu confirmo e ela me abraça. E eu não me aguento, começo a chorar em seus braços. Enquanto Pedro alisa os cabelos dela, me olhando.
Enfim eles sabem... Agora resta saber se eles querem por a vida deles em perigo me mantendo aqui.
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