Capítulo 4 — Fuso Horário
O vento da tarde acariciava o rosto de Sofia com dedos salgados. Sentada sob a sombra de uma árvore torta, ela observava Sky orientar a aula com aquela leveza descomplicada que parecia vir de outro planeta. As alunas se moviam lentamente, com os olhos fechados, como se cada respiração fosse um ato de resistência à pressa.
Ao fundo, o mar da Cidade do Cabo dançava em ondas longas e ritmadas. Sofia não lembrava a última vez que tinha parado para simplesmente observar. Ela não fez nenhuma pose, não tirou nenhuma foto. Deixou o celular na bolsa, como quem decide que, por uma hora, não precisa provar que está vivendo.
Quando a aula terminou, Sky se juntou a ela com o rosto suado e um sorrisão satisfeito.
— Você sobreviveu à minha sessão de tortura zen?
— Quase dormi no meio, se isso conta como aprovação.
Sky riu.
— Dormir também é um sinal de que o sistema nervoso confiou. Parabéns.
— Obrigada, minha terapeuta não-oficial.
Sky entregou a ela uma garrafa d'água e se jogou na areia. As outras mulheres se dispersavam aos poucos, algumas dando tchau, outras rindo alto com garrafinhas coloridas na mão.
Sofia observava tudo como quem olha de fora uma vida que ainda não é dela, mas poderia ser. Ainda se sentia meio turista em si mesma, mas havia algo reconfortante naquela cena sem filtros nem expectativas.
— Vamos tomar um suco? — Sky apontou para uma barraca de madeira com sombrinhas coloridas.
— Se tiver gelo e fruta, eu caso com o vendedor.
As duas caminharam descalças até a barraca, onde um homem de barba grisalha e sorriso sereno oferecia um cardápio desenhado à mão. Havia suco de maracujá com hortelã, manga com gengibre, melancia com limão.
Sofia escolheu o de melancia. Sky foi de maracujá. Sentaram-se num banco de madeira sob a sombra trêmula de uma lona.
— Aqui, parece que tudo tem outro ritmo — disse Sofia.
— Porque tem mesmo. As pessoas vivem pra viver, não pra contar vitórias.
Sofia deu um gole e fechou os olhos por um segundo. O suco era doce e azedo na medida certa, como os dias bons que chegam depois de um caos silencioso.
— Você me lembra minha melhor amiga da faculdade — comentou Sky. — Ela também era metódica, do tipo que fazia lista pra relaxar.
— Eu literalmente já fiz lista de coisas que me deixam menos estressada. Estava escrito "fazer listas" em primeiro lugar.
As duas riram.
— A vida não precisa ser organizada pra fazer sentido — disse Sky, bebendo o resto do suco. — Às vezes, a gente só precisa sobreviver a um dia depois do outro.
Sofia não respondeu de imediato. Estava ocupada demais processando o quanto aquela frase simples tinha acertado em cheio.
Depois, caminharam pela orla, olhando os surfistas, as crianças com baldes de areia, os cachorros livres. Um homem com dreadlocks vendia pulseiras feitas com linha e conchas. Sofia comprou uma azul, sem pensar muito.
— Pra lembrar de hoje — disse, amarrando no pulso.
Sky também pegou uma, verde, e disse que aquilo trazia sorte com os ventos. Sofia não sabia se era verdade, mas gostou da ideia.
Elas pararam um instante para observar o mar. Sky apontou para alguns surfistas mais adiante e comentou sobre a maré, explicando os melhores horários para surfar. Sofia achou bonito o jeito como ela falava do oceano, como se tivesse uma ligação silenciosa com ele.
— Você vai comigo um dia — disse Sky, sem dar espaço pra objeção.
— Nem sei nadar direito.
— Então é perfeito. O mar gosta de iniciantes corajosos.
De volta em casa, o fim de tarde invadiu a sala como um gato preguiçoso. Leo estava no sofá com o notebook no colo e fones no ouvido. Não levantou os olhos quando elas entraram, mas fez um aceno discreto com a cabeça.
— A comunicação dele é quase telepática — cochichou Sofia.
Sky respondeu com uma careta e subiu para o banho. Sofia ficou na cozinha, com Beyoncé deitada aos seus pés. Pegou uma banana, um potinho de iogurte e foi se sentar na varanda da frente.
O silêncio ali tinha uma textura boa. Como se o mundo não estivesse exigindo nada dela. Nem sorrisos, nem produtividade. Ela só podia existir.
Fechou os olhos por um instante. Lembrou do apartamento em Madri, dos domingos de ressaca e das mensagens não respondidas de Tomás. Por que tinha doído tanto? Por que ainda doía, mesmo agora, com a pele bronzeando e um certo alívio no coração?
Talvez porque ela tinha apostado tudo numa ideia. Num plano. E ver um plano morrer era como perder uma parte de si.
Mas Muizenberg não exigia planos. Não exigia nada, na verdade. E aquilo começava a parecer... libertador.
Mais tarde, já com o céu tingido de lilás, Sky propôs pizza. Foram as duas a pé até uma pizzaria de esquina onde os bancos eram de concreto e as pessoas comiam com a mão, sem frescura.
Sofia pediu uma com queijo de cabra e abobrinha. Sky, uma apimentada com molho de manga. Riram de tudo: dos nomes dos sabores, do sotaque da Sofia tentando falar "pepperoni" e de um casal que discutia em holandês na mesa ao lado.
— Se você ficar mais um tempo, pode começar a dar aula comigo — brincou Sky. — A turma das listas e café forte.
— Posso organizar seu cronograma de chakras por cor e intensidade.
Sky fingiu bater palmas.
— Perfeita. Beyoncé vai adorar.
Na volta pra casa, com o vento esfriando os braços e os cabelos bagunçados, Sofia sentiu uma pontinha de alguma coisa boa crescendo dentro dela. Não era felicidade ainda. Mas talvez... uma disposição. Disposição pra ficar. Pra tentar. Pra ver o que aconteceria se ela parasse de fugir do presente.
Já na Casa 43, Sky colocou uma música baixa no toca-discos da sala — um jazz meio torto, mas charmoso. Leo apareceu por instantes e se trancou no quarto depois de murmurar um "boa noite" que mais parecia um grunhido educado. Sofia riu.
As duas ficaram ali, sentadas nos degraus da varanda dos fundos, vendo Beyoncé cavar um buraco sem propósito no quintal. O céu estava claro, e as estrelas pareciam mais próximas naquela latitude.
— Você parece mais leve hoje — disse Sky.
Sofia demorou pra responder.
— Acho que pela primeira vez, eu parei de tentar entender tudo. E só... deixei acontecer.
Sky sorriu, genuína.
— Bem-vinda ao fuso. Aqui a gente vive em outro tempo mesmo.
E ali, com o cheiro do mar ainda grudado na pele e a pulseira de conchas no pulso, Sofia entendeu que talvez o recomeço não fosse um lugar. Era um estado. Um passo pequeno. Um dia vivido sem pressa.
Ela se despediu de Sky com um abraço apertado, subiu as escadas devagar e, antes de dormir, escreveu no caderninho:
"Hoje foi o dia em que o tempo me desacelerou. E eu agradeci."
Desta vez, o sorriso nos lábios não era pequeno. Era inteiro.
