Capítulo 5 — Um Café, Duas Coincidências e um Recomeço Improvável
Sofia não tinha planejado sair naquela manhã. Tinha decidido passar o dia organizando suas ideias — ou melhor, tentando entender onde estavam, se é que ainda existiam. Mas Sky bateu na porta do quarto com a energia de quem ignora qualquer plano interno de introspecção.
— Bora comigo até o café da Yara? Você vai amar. Tem croissant com chocolate e jazz no fundo.
— Croissant e jazz? Eu me visto.
As duas seguiram pela rua de calçamento irregular até uma esquina com paredes descascadas, onde um toldo verde musgo balançava ao vento. No letreiro pendurado por correntes de ferro estava escrito, em letras tortas: “Café Yara – vem como tá”.
Sofia sorriu. Aquilo parecia promissor.
Lá dentro, o ambiente era uma bagunça aconchegante. Mesas de madeira com toalhas diferentes, cadeiras que pareciam não ter nada em comum entre si, estantes cheias de livros, vasos de plantas pendurados em cordas grossas. E o cheiro. O cheiro era de café moído na hora, pão fresco e alguma especiaria que ela não conseguia identificar.
— Aquela é a Yara — disse Sky, apontando para uma mulher atrás do balcão. Cinquenta e poucos anos, cabelo ruivo preso com um lápis, batom vermelho e um lenço florido amarrado no pescoço. Ela falava alto, ria mais alto ainda, e parecia conhecer todos que entravam ali.
— É a sua cara — comentou Sofia.
— Eu sei. Ela é minha musa dos dias úteis.
Yara as viu e abriu um sorriso largo.
— Olha quem veio! E trouxe companhia? Adoro companhia! — E antes que qualquer uma respondesse, emendou: — Já vou adiantando: só tem croissant se Sofia me disser de onde tirou essa blusa linda.
Sofia corou, meio pega de surpresa.
— Madri. Comprei numa feirinha perto da Gran Vía.
— Sabia! Gosto de gente com bom gosto e sotaque. Senta aí. O café hoje tá poético.
As duas se sentaram e, em minutos, estavam com canecas de cerâmica artesanal fumegando à frente. Sofia observava tudo com olhos curiosos, tentando absorver cada detalhe. Havia algo naquele lugar que a fazia querer ficar mais tempo do que o necessário. Não era só o ambiente. Era o clima. As pessoas. O jeito como ninguém parecia com pressa.
— Precisa de alguém pra ajudar aqui? — perguntou Sky, casual.
Yara arqueou uma sobrancelha.
— Por acaso essa pergunta tem nome e endereço?
— Talvez… Sofia tá em busca de recomeços.
Sofia engasgou com o café.
— Sky!
— Ué, não é mentira.
Yara a encarou por um momento longo. Como quem pesa mais do que palavras.
— Você sabe sorrir enquanto segura uma bandeja?
— Sei fingir que sei. Serve?
— Melhor resposta. Volta amanhã às nove. Vamos ver se você dura até o meio-dia.
Sofia abriu um sorriso sem graça, mas genuíno. Não era exatamente o plano de carreira que tinha em mente, mas... havia um conforto silencioso em aceitar o improviso.
— A vaga inclui croissant?
— Inclui café forte e histórias demais. Croissant é bônus de bom humor.
Enquanto terminavam o café, um movimento na porta fez Sofia levantar os olhos. E ali, como se fosse cena de um filme de coincidências mal calculadas, estava Leo.
Ele entrou sozinho, camisa azul de algodão, mochila pendurada num ombro, e os fones ainda no pescoço. Ao ver as duas, parou um segundo. Depois, caminhou até o balcão e cumprimentou Yara com um aceno contido, mas caloroso.
— Ele vem sempre aqui? — sussurrou Sofia.
— Quando tá entediado ou quando quer fugir de casa sem sair de casa. Leo é nosso cliente ranzinza favorito. Pede o mesmo café há dois anos.
Leo fez o pedido. Enquanto esperava, olhou na direção delas e fez aquele aceno econômico com a cabeça. Sofia retribuiu com um meio-sorriso. Ele hesitou por um segundo, depois caminhou até a mesa.
— Bom dia.
— Tá mais pra tarde já — comentou Sky.
Leo olhou para Sofia.
— Então resolveu explorar o bairro?
— Fui sequestrada por uma promessa de croissant.
— E a promessa foi cumprida?
— Com louvor.
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável, mas denso. Havia alguma coisa ali — talvez curiosidade, talvez cansaço compartilhado. Talvez só o eco do que nenhum dos dois estava pronto pra dizer.
— Vai trabalhar aqui? — perguntou ele, apontando com o queixo para o balcão.
Sofia riu, surpresa com a pergunta direta.
— Vou tentar. Yara me deu um teste de resistência emocional e equilíbrio de bandeja.
— Boa sorte. Ela é exigente, mas justa.
— Você fala como se fosse ex-funcionário.
— Já fui cliente em tempo integral. O que, nesse lugar, é quase a mesma coisa.
Yara apareceu nesse momento com o pedido de Leo — um café preto servido numa caneca com a frase “não enche”. Ele agradeceu com um aceno e se afastou para sentar no canto perto da janela.
— Ele sempre foi assim? — Sofia perguntou.
— Assim como?
— Quieto, mas... presente.
Sky deu de ombros.
— Leo é como esse bairro. Parece simples, mas guarda uns labirintos. E se você tiver paciência, descobre coisas bonitas.
Sofia seguiu o olhar de Sky até a mesa onde Leo estava. Ele não olhava para elas. Estava com os olhos no mar lá fora, mexendo o café com um daqueles movimentos que parecem não ter pressa nenhuma.
Ela voltou o olhar para a própria caneca. Sentia-se esquisitamente observada — não por Leo, mas pela vida. Como se alguém lá em cima tivesse decidido misturar os ingredientes dela e ver no que dava.
Quando saíram do café, Sky perguntou:
— Como se sente sendo empregada quase informal de um lugar com estantes tortas e menu escrito à mão?
— Como se, pela primeira vez em semanas, eu tivesse um plano que não envolvesse fugir.
Sky sorriu. E, por algum motivo, Sofia sentiu que aquele sorriso era a validação que ela precisava.
Naquele fim de tarde, caminhando pelas ruas de Muizenberg com o cheiro de café na roupa e a sensação de ter dado um passo fora do roteiro, ela entendeu que talvez os recomeços não fossem anunciados em letras garrafais. Às vezes, eles vinham escondidos numa caneca artesanal com a borda lascada.
E, de repente, isso era o suficiente.
