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3

Meses após a chegada de Lorena ao abrigo, quando ela já começava a acreditar que seria seu destino permanecer ali, o inesperado aconteceu. Um telefonema mudou tudo. A assistente social chamou-a para uma conversa privada, uma reunião que, apesar do tom gentil, trazia uma inquietação que Lorena não conseguia compreender de imediato.

— Lorena — começou a assistente social, com um sorriso forçado no rosto —, recebemos notícias sobre um parente seu. Um tio paterno, Geraldo. Ele entrou em contato e disse que está disposto a cuidar de você.

A notícia, que deveria ter soado como um alívio, não trouxe conforto. Embora a ideia de sair do abrigo fosse algo que Lorena desejava, o nome "tio Geraldo" não trazia memórias afetuosas. Ela mal se lembrava dele, mas as poucas vezes que havia ouvido seus pais mencionarem Geraldo, o tom de voz não era agradável. Havia algo nele, um ar sombrio, que deixava uma sombra sobre qualquer recordação.

Mesmo assim, com poucas opções e sem querer ficar no abrigo por mais tempo, Lorena aceitou a notícia em silêncio, sem protestar. No dia em que Geraldo chegou, ele apareceu no abrigo com uma expressão que, à primeira vista, parecia amigável. Alto, magro e com cabelos curtos e escuros, Geraldo tinha um jeito de andar que demonstrava autoridade. Seus olhos, no entanto, eram frios, e o sorriso que oferecia parecia não alcançar a profundidade de seu olhar.

— Então, você é a Lorena — disse ele, estudando-a de cima a baixo como se estivesse avaliando uma mercadoria. — Vamos, garota. Está na hora de ir para casa.

Lorena sentiu um frio na espinha, mas, sem opções, pegou suas coisas e seguiu Geraldo até o carro. Durante todo o trajeto até a casa dele, o silêncio dominou. A casa de Geraldo, localizada em uma parte mais isolada da cidade, parecia velha e mal cuidada, com a pintura desbotada e o jardim tomado pelo mato. Nada ali sugeria acolhimento ou calor, mas Lorena tentou convencer a si mesma de que, talvez, Geraldo estivesse apenas passando por dificuldades e que, com o tempo, as coisas melhorariam.

Ao entrar, porém, a atmosfera da casa confirmou o que seu coração já sentia. A casa era escura, cheia de objetos espalhados, com um cheiro forte de cigarro e álcool que impregnava cada cômodo. Geraldo a guiou até um quarto pequeno e sem janelas, onde havia apenas uma cama velha e um armário de madeira gasto.

— Este é o seu quarto — disse ele com indiferença, antes de sair sem sequer olhar para trás.

Nos primeiros dias, Lorena tentou se adaptar. Ela fazia o que lhe era pedido e se mantinha em silêncio, esperando que, com o tempo, Geraldo demonstrasse algum afeto ou cuidado. No entanto, ao invés de melhorar, a situação só piorava. Geraldo era um homem frio e rude, sempre com um cigarro pendurado nos lábios e uma garrafa de bebida por perto. Ele nunca se interessava por Lorena de verdade, tratando-a como um incômodo. Quando falava com ela, era sempre com um tom áspero, cheio de impaciência.

— Garota, você não tem nada melhor pra fazer do que ficar por aí? — dizia ele constantemente, enquanto a olhava com desdém.

As semanas passaram, e o comportamento de Geraldo começou a se transformar em algo ainda mais perturbador. Ele era imprevisível. Havia momentos em que ficava extremamente irritado por razões que Lorena não conseguia entender. Um prato deixado fora do lugar, uma peça de roupa mal dobrada, qualquer coisa parecia ser motivo para ele explodir.

— Você não presta nem pra fazer uma simples tarefa! — gritou ele uma noite, após encontrar um copo sujo na pia. Lorena tentou se desculpar, mas suas palavras pareciam apenas o alimentar ainda mais. Ele a agarrou pelo braço com força, fazendo-a se encolher de dor, e a empurrou para o lado, derrubando-a no chão.

Lorena, assustada e trêmula, percebeu que estava lidando com algo muito maior do que poderia suportar. O medo que já sentia desde a morte de seus pais agora se transformava em terror. A cada dia que passava, Geraldo se tornava mais agressivo. Suas explosões eram imprevisíveis, e Lorena começou a andar pela casa com cuidado extremo, como se estivesse sempre pisando em ovos.

Os traumas começaram a se acumular de forma insidiosa. O medo constante de desagradar Geraldo a fazia hesitar em cada pequena ação. Ela começou a comer menos, a dormir mal, sempre com um olho aberto, temendo que ele pudesse aparecer a qualquer momento no meio da noite. O barulho de seus passos no corredor fazia seu coração acelerar, e o simples som de sua voz a fazia tremer.

Uma noite, enquanto Lorena estava deitada na cama, ouviu Geraldo entrar no quarto dela sem bater. O cheiro forte de álcool chegou até ela antes mesmo de ele abrir a boca. Seus passos eram pesados, descoordenados, e Lorena soube instantaneamente que algo estava muito errado. Ele se aproximou da cama, e ela pôde sentir sua respiração quente e áspera.

— Você acha que pode me fazer de idiota, garota? — sussurrou ele, os olhos vermelhos de raiva e embriaguez. — Eu te dei um teto, e é assim que você me agradece?

Lorena não sabia o que tinha feito de errado, mas isso já não importava mais. Ela sabia que não havia escapatória. Geraldo a agarrou pelo braço novamente, desta vez com mais força, deixando marcas roxas instantaneamente. Ele a puxou para fora da cama e começou a gritar palavras que ela não entendia completamente, mas o tom de sua voz e o ódio em seus olhos eram suficientes para deixá-la aterrorizada.

A partir daquele dia, Lorena passou a viver em estado constante de alerta. Cada movimento que fazia, cada palavra que dizia era calculada para evitar a ira de Geraldo, mas nada parecia ser suficiente. Ele continuava descontando nela suas frustrações e raiva. As marcas de sua agressividade começaram a se refletir tanto no corpo quanto na mente de Lorena.

Os dias no abrigo, que antes pareciam tão solitários, agora pareciam quase um refúgio comparados ao inferno que era viver sob o mesmo teto que Geraldo. A solidão do abrigo era dolorosa, mas era uma dor diferente da que sentia agora. No abrigo, havia um distanciamento seguro, mas com Geraldo, havia o medo constante de que algo pior pudesse acontecer a qualquer momento.

Os traumas começaram a tomar forma de maneiras que Lorena mal conseguia controlar. O medo de Geraldo tornou-se uma sombra constante, e sua infância, que já havia sido roubada pelo acidente, agora estava sendo destruída pela crueldade de alguém que deveria protegê-la.

E assim, a cada dia que passava, Lorena se afundava mais profundamente em um abismo de traumas e medos que moldariam sua vida para sempre.

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