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Capítulo 5 Primeiro dia no inferno

Ava

Mal consegui dormir a noite toda.

Sempre que fechava os olhos, o rosto de Nikolai emergia da escuridão, a centímetros do meu, e as palavras que ele sussurrou ontem pairavam no espaço mínimo entre nossos lábios.

Passei quase toda a madrugada relembrando os acontecimentos do meu aniversário fracassado que virou dia de casamento, tentando dar algum sentido à minha situação atual. Soltando um gemido de frustração, me afasto dos raios de sol fortes que invadem as janelas do quarto.

Tudo estava confuso demais. Minha vida inteira tinha mudado. Tudo que eu conhecia foi arrancado de baixo dos meus pés e, sem ter onde me agarrar, desabei numa pilha de confusão e incerteza. Nada na minha vida parecia real agora.

Em menos de vinte e quatro horas, passei de aniversariante para noiva, e agora estava casada com um homem que mal conhecia e presa na casa dele.

Dava pra piorar?

O ronco baixo do meu estômago me arranca dos pensamentos. Só então percebi que não comia nada desde ontem.

As palavras de Nikolai deixaram minha cabeça num estado de confusão muito tempo depois que ele saiu.

Só de pensar em esbarrar com ele depois do que ele me disse já era motivo suficiente pra me manter trancada aqui pra sempre.

Fiquei mortificada e com raiva de mim mesma por deixar que ele tivesse tanto controle sobre meus pensamentos.

Ainda não conseguia acreditar que quase deixei ele me beijar. A lembrança do que quase rolou entre a gente ainda estava fresca na memória, provocando uma nova onda de constrangimento cada vez que voltava à tona.

Meu Deus, o que tinha de errado comigo? No momento em que os dedos dele roçaram minha pele, foi como se qualquer pensamento racional tivesse evaporado da minha mente.

Passei a noite imaginando todos os cenários possíveis do que poderia ter acontecido se os lábios dele tivessem pressionado os meus do jeito que eu queria, e mesmo assim, não importava quantas vezes eu repassasse a cena, o resultado era sempre o mesmo.

Eu, embaixo dele, seus lábios contra minha pele.

A imagem faz o calor se acumular entre minhas coxas e aperto as pernas com força.

Merda, isso era ruim. Muito ruim.

Eu não acreditava em amor à primeira vista. Pra mim, essa frase não passava de uma mentira de contos de fadas pra fazer menininhas sonharem.

Tesão à primeira vista, por outro lado? Isso existia com certeza.

Foi por isso que sabia que minha reação a Nikolai não era nada além de desejo. Era simplesmente a reação do meu corpo por ter um homem gato daqueles tão perto de mim.

Eu queria que ele... fizesse amor comigo?

Balancei a cabeça. Duvidava que um homem como Nikolai soubesse fazer amor com uma mulher. Ele provavelmente transava com mulheres e esquecia os nomes delas assim que acabava.

Não ficaria surpresa se ele fizesse isso, afinal, eu conhecia pouquíssimas mulheres que deixariam passar a oportunidade de ficar com alguém como ele.

Havia um certo charme que um cara tão bonito e perigoso quanto Nikolai despertava no sexo feminino que não podia ser ignorado por ninguém com uma vagina funcional, inclusive eu.

Me recusei a ser mais uma dessas mulheres que babavam por ele. Eu tinha que ser mais esperta, mais forte e sabia disso.

Agora só precisava esperar até que meu corpo recebesse o memorando.

Tirando o peso do cobertor de cima de mim, me forcei a sentar e joguei as pernas pra fora da cama, deixando meus pés tocarem o piso de madeira.

O frio do chão me dá um choque, me trazendo na hora pra realidade. Arrasto meu corpo até o espelho de corpo inteiro do outro lado do quarto e, quando me vejo refletida, suspiro com minha aparência, meus lábios se separando enquanto encaro a imagem de uma garota que mal reconheço.

Meu cabelo é uma bagunça emaranhada depois de uma noite de agitação e reviravolta nos lençóis. Fios soltos de cabelo castanho estão espalhados em todas as direções, bem longe do coque que fiz na noite anterior. Minha pele parece pálida, quase sem vida sob a luz da manhã que entra pelas janelas.

Eu estava um lixo.

Não sou uma pessoa matinal. Nem de longe. E a julgar pela leve pulsação na minha têmpora, isso não ia mudar hoje. Na verdade, os acontecimentos de ontem, somados à minha falta de sono, só pioraram meu ódio pelas manhãs.

Passo os dedos pelos meus cachos, tentando desfazer alguns nós, mas depois de um tempo, desisto. Solto o ar, deixando minha mão cair derrotada.

Meu estômago ronca de novo e, dessa vez, sou obrigada a admitir.

Tiro a roupa e vou pro chuveiro.

O banheiro é quase tão grande quanto o quarto, com bastante espaço pra se movimentar. O vapor logo enche o ambiente enquanto a água quente escorre pelo meu corpo, aliviando meus músculos doloridos.

Assim que termino o banho, fecho a torneira e saio. Uma toalha rosa está pendurada no suporte, e eu a pego, enrolando-a em volta do corpo enquanto ando pelo chão de ladrilhos do banheiro até o quarto.

Vou até o armário e abro as portas. Examino as fileiras de roupas cuidadosamente penduradas nos seus devidos lugares.

Quando Nikolai me disse que tudo que eu precisava já estava aqui, meu cérebro não tinha processado o fato de que ele se referia às minhas roupas também.

De alguma forma, antes mesmo de eu chegar aqui, ele conseguiu transportar minhas roupas do meu quarto na casa do meu pai para este armário.

A surpresa inicial que senti ontem ao descobrir isso passou e se transformou em gratidão por pelo menos ter algo pra vestir além do meu vestido de noiva.

Isso sim teria sido um saco.

Decidi usar uma calça jeans larga marrom de cintura alta e uma blusinha justa como roupa do dia.

Assim que termino de me arrumar, passo uma escova nos fios do meu cabelo ainda úmido algumas vezes até ficar satisfeita com o resultado e desço as escadas.

Sou recebida imediatamente pelo cheiro quente de panquecas quando chego ao térreo. O aroma gostoso enche o ar, misturado com uma pitada de calda e algo mais doce, me atraindo pra cozinha.

Quando entro, já avisto a filha de cinco anos de Nikolai, Kira, sentada num banquinho do balcão da cozinha. Seus pezinhos balançam pra frente e pra trás acima do chão enquanto ela se concentra em despejar calda sobre a pilha de panquecas na frente dela.

Diferente de ontem, ela usa um vestido amarelo brilhante que combina com as fitas amarelas que prendem as pontas de suas tranças.

Uma mulher de longos cabelos loiros brilhantes caindo sobre os ombros está ao lado dela, segurando uma tigela com o que imagino ser massa de panqueca num braço e um batedor na mão.

Ela veste uma blusa branca com bolinhas pretas espalhadas pelo tecido. A blusa é levemente ajustada na cintura, dando a ela um visual divertido, mas elegante. Ela combina a blusa com uma saia rodada do mesmo padrão.

Ela é linda, penso comigo mesma, e como se pudesse ouvir meus pensamentos, seus olhos encontram os meus quando entro na cozinha.

Ela não é nem de longe o que eu esperava de uma mulher nesta casa. Ela parece... normal, até feliz, e por algum motivo isso me surpreende.

— Meu Deus, você deve ser a Ava! — ela exclama animada, colocando a tigela no balcão. Kira nem olha pra cima. Está ocupada demais mastigando suas panquecas pra se importar com a minha presença.

A loira se aproxima até ficar na minha frente e, antes que eu perceba o que está acontecendo, seus braços me envolvem, me puxando pra um abraço.

Espaço pessoal simplesmente não era uma preocupação pras pessoas dessa casa?

— Que bobeira a minha — ela diz, se afastando assim que percebe que não faço nenhum movimento pra retribuir seu abraço.

— Você deve estar se perguntando quem eu sou. — Ela estende a mão pra mim, seu sorriso nunca vacilando. — Sou Katerina, mas pode me chamar de Kat. Sou prima do Nikolai.

Nikolai tinha uma prima?

— É um prazer conhecer você. Pensei que nos conheceríamos oficialmente no jantar ontem à noite, mas você não desceu. Estava tudo bem? Queria mandar uma empregada pro seu quarto, mas Ivan disse que você provavelmente só precisava descansar.

— Ivan?

— Meu marido — ela esclarece — que por acaso é o melhor amigo do seu marido. Acho que isso nos torna melhores amigas-por-tabela. Acho que esse é o termo, não é?

Duvidei que existisse um termo como "melhor amiga-por-tabela", mas não ia contar isso a ela. Meu estômago escolhe aquele exato momento pra roncar de novo, surpreendendo nós duas.

Kira ri do seu assento e sinto meu rosto queimar de vergonha.

— Parece que alguém está com fome. — Kat sorri pra mim sem perder o ritmo. Ela faz um gesto pra que eu sente no banco vazio ao lado de Kira, e eu obedeço sem hesitar. — Felizmente, tive o pressentimento de que você desceria pro café da manhã hoje. Espero que não se importe com gotas de chocolate nas suas panquecas.

Ela diz, e minha testa franze com isso.

— Quem não gosta de panquecas com gotas de chocolate? — respondo, tentando e falhando em soar indiferente ao fato de que existem pessoas nesse mundo que odeiam gotas de chocolate nas panquecas.

O sorriso de Kat se alarga.

— Eu sabia que ia gostar de você. — Ela olha pra Kira. — Panquecas de chocolate também são as favoritas da Kira. — Ela pisca pra menina de cinco anos, que concorda animadamente, seus olhos brilhando com a menção de suas panquecas preferidas.

— Elas são as mais gostosas do mundo! — Kira exclama, abrindo um largo sorriso enquanto enfia animadamente outro pedaço de panqueca na boca.

— Com certeza são, pequena — diz Kat rindo, bagunçando carinhosamente os cachos escuros da cabeça de Kira.

Ela desliza uma pilha grande de panquecas de chocolate na minha direção, e minha boca imediatamente enche d'água com a visão.

— Priyatnogo appetita — ela diz, e eu fico olhando pra ela.

— Significa "aproveite sua refeição" — ela explica em português, percebendo minha confusão.

— Ah — concordo e pego um garfo.

Ao dar a primeira mordida, a combinação da textura quente e macia com o sabor rico e derretido das gotas de chocolate imediatamente inunda minha língua, provocando uma onda instantânea de prazer nas papilas gustativas.

— Uau — gemo entre mordidas. — Essas são realmente boas — digo. Kat bate palmas animadamente, o som ecoando pela sala.

— Eu sabia que você ia adorar! — ela exclama animada, com os olhos brilhando de satisfação. — Quer dizer, eu esperava que você gostasse, mas não tinha certeza se você curtia as suas panquecas assim, então estava super ansiosa pra ver sua reação.

Pisco surpresa com sua confissão.

— Você estava? — pergunto, e ela assente.

Estou surpresa com o quão empolgada ela ficou com a minha aprovação. Até agora, nunca pensei que pessoas como ela precisassem da aprovação dos outros. Acho que estava errada.

— Claro que sim. A família da Kira come qualquer coisa que eu faço, mesmo que fique horrível.

— Não, eu não como — Kira fala do meu lado, seu rosto se contorcendo em descrença com a insinuação. Kat ri enquanto olha pra Kira com um sorriso provocador.

— Sim, você comeria, porque você me ama demais pra ferir meus sentimentos, não é mesmo, Zajushka?

Kira revira os olhos, mas não segura a risada que escapa dela.

— Mas você, por outro lado. Você não liga pros meus sentimentos, quero dizer, nem o Niko, mas isso não vem ao caso. — Ela faz uma pausa, franzindo as sobrancelhas levemente. — O que eu quero dizer é que é legal ter alguém por perto que nunca provou minha comida antes pra elogiá-la.

Dou outra mordida na minha pilha e observo Kat despejar uma porção generosa de massa grossa da tigela que ela estava misturando antes.

Ela se move com facilidade, despejando a massa em movimentos circulares e esperando as bolhas se formarem antes de virá-la.

— Então... — começo, sem saber como abordar a pergunta que queria fazer. Eu tinha tantas dúvidas sobre essa mulher e seu relacionamento com Nikolai.

— Há quanto tempo você e Nikolai são próximos?

Kat olha brevemente na minha direção.

— Desde crianças. A mãe dele praticamente me criou, e depois que meu pai faleceu, Niko e a família dele se tornaram a única família que eu conhecia.

Ela coloca a panqueca pronta num prato antes de despejar outra porção da mistura na frigideira.

— Sinto muito pelo seu pai — digo. Não conseguia imaginar perder meu pai. Apesar das rachaduras óbvias no nosso relacionamento, não conseguia imaginar viver num mundo sem ele.

Ela ri, mas o som não tem humor.

— Não sinta. — Ela diz. — Meu pai era um canalha nojento que tinha prazer em bater em mim e na minha mãe. Estou feliz que ele esteja morto. Na real, eu queria que ele tivesse morrido antes.

A franqueza nas palavras dela me pega desprevenida, e fico surpresa com o completo desprezo no seu tom enquanto fala da morte do pai. As palavras me escapam, e fico confusa sobre como responder. Não há nenhum traço de tristeza ou arrependimento na voz dela, apenas uma verdade fria e dura envolta em aceitação.

Ah, ok então. Olho de relance pra Kira. Imagino se é apropriado falar assim na frente dela.

Sei que a origem dela provavelmente significava que estava acostumada com esse tipo de linguagem, mas mesmo assim...

Uma linguagem como essa não deveria estar presente na mesma sala que uma criança de cinco anos.

Para minha surpresa e até mérito dela, Kira permanece impassível. Seus olhos continuam fixos na comida, como se nem tivesse acabado de ouvir a tia confessar que está feliz com a morte de alguém.

Crianças são tudo, menos bobas, e eu duvidava que Kira fosse completamente alheia ao ramo de trabalho do pai. Ela provavelmente já tinha sacado o tipo de homem que o pai era e a natureza das pessoas à sua volta.

As crianças são espertas desse jeito, eu acho.

Kat vira outra panqueca e espera um pouco, garantindo que o outro lado fique perfeitamente dourado antes de colocá-la na pilha que só cresce.

Eu ainda tentava entender como essa mulher era parente do Nikolai. As personalidades deles eram completamente diferentes. Enquanto ela tinha um jeito todo radiante e alegre, Nikolai não tinha nada disso.

Os dois tinham uma coisa em comum: eram invasivos pra caramba, o que me deixava super frustrada.

Estou prestes a dar outra mordida na minha pilha quando um homem alto e loiro entra na cozinha. Sua presença faz meu garfo congelar no ar e não sei se devo me alarmar.

Minha preocupação aumenta quando Kira pula do banco e dispara até o homem, abraçando as pernas dele com os bracinhos.

— Tio Ivan! — ela grita toda animada. O homem loiro dá um sorriso caloroso, seus dedos bagunçando os fios do cabelo dela.

— Você tá muito empolgada pra me ver hoje, Zajushka — diz ele, com os olhos brilhando de diversão enquanto olha pra criança de olhos arregalados agarrada às suas calças.

Então esse era o melhor amigo de Nikolai. Eu não sabia o que esperar quando ouvi falar dele, mas imaginava alguém que agisse igual ao Nikolai. Tinha um ar brincalhão nele, nada parecido com a vibe que eu sentia do Nikolai. Ele lembrava mais a Kat, já que os sorrisos dos dois eram contagiosos demais.

A expressão de Kat suaviza ao ver o marido, seus olhos brilhando de calor genuíno. Ela seca as mãos na toalha e vai até ele, um sorriso se abrindo nos lábios.

Ela é uns centímetros mais baixa que ele, e observo a afeição que os dois sentem um pelo outro encher a sala enquanto Kat fica na ponta dos pés pra dar um beijo firme nos lábios dele.

Ivan aproveita a chance pra aprofundar o beijo, agarrando firme a cintura dela, e ela sorri contra os lábios dele. A cena faz meu rosto esquentar e rapidamente desvio o olhar. Kira franze o nariz e mostra a língua pros dois, fingindo que vai vomitar.

— Que nojo!

Kat interrompe o beijo, rindo da reação de Kira, seus olhos brilhando de diversão. Ivan sussurra algo pra ela em russo, e vejo o rubor subir pela bochecha dela com as palavras dele.

— Achei que você tivesse dito que não iria se juntar a nós no café da manhã — ela diz, e observo confusa, tentando entender o que está falando.

— Não sou — ele responde, e então seu olhar se volta pra mim. — Nikolai pediu pra ver você.

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