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Capítulo 3

Capítulo 3

|APOLO|

Acordo cedo, como sempre. Morar no apartamento ao lado do de Estela é a definição perfeita de tortura e privilégio. É como viver a poucos metros daquilo que mais desejo, sem poder tocar. Já faz alguns anos que somos vizinhos, e nesses anos aprendi a me mover nas sombras, silenciosamente, sempre um passo à frente para estar por perto. Estela não faz ideia do quanto minha vida é organizada ao redor dela. Ela não sabe que meu café da manhã termina exatamente no mesmo horário que ela sai para o trabalho, para que eu possa encontrá-la "por acaso" no elevador.

Ela sai cedo para o serviço, trabalha em uma confeitaria com sua sócia e frequentemente leva trabalho para casa. Sei disso porque, algumas noites, quando volto para casa tarde, vejo a luz do apartamento dela acesa e posso ouvir o som suave dos utensílios de cozinha sendo utilizados. Ela está testando uma nova receita. Eu poderia bater na porta dela, oferecer ajuda, uma xícara de café, ou qualquer desculpa para estar mais perto. Mas eu não faço isso. Meu autocontrole é algo que fui aperfeiçoando ao longo dos anos. E às vezes acho que é a única coisa que me impede de enlouquecer.

Hoje não é diferente. Depois de me vestir, faço minha rotina cuidadosamente planejada. Saio do apartamento com tempo suficiente para cruzar com ela no corredor, o sorriso no rosto, o tom de voz casual, como se fosse apenas mais um dia comum.

— Bom dia, Estela — cumprimento-a com naturalidade, enquanto ela segura a bolsa e organiza algumas sacolas nas mãos. Ela levanta os olhos, os grandes olhos verdes que me derrubam por dentro, e me dá aquele sorriso doce, o mesmo que ela dá a todos. Mas para mim, é diferente. Para mim, é o centro de tudo.

— Bom dia, Apolo! Está saindo cedo hoje — ela comenta, e eu dou de ombros, como se fosse coincidência.

— Sim, muita coisa para resolver na empresa — respondo, mantendo o tom descontraído. Mas o que não posso contar é que saio cedo todos os dias, ajustando meus horários para estar exatamente onde ela está. Já se tornou quase um reflexo natural.

No elevador, ficamos em silêncio por alguns segundos. O tempo parece se estender, e eu quase posso ouvir o som do coração batendo no peito. Estar tão perto dela, a apenas um passo, mas ainda tão distante... é exasperante. Ela me pergunta sobre o trabalho, sobre como as coisas estão indo com a empresa, e eu respondo com a mesma leveza de sempre, fingindo que estou focado em outra coisa que não seja ela.

Rodrigo, claro, não faz ideia de nada disso. Para ele, eu sou apenas o melhor amigo que por acaso mora ao lado da irmã. Mas para mim, isso é uma benção disfarçada. Estar perto de Estela o tempo todo, mesmo que sob o pretexto de amizade, é uma forma de proteger o que sinto por ela. É como manter uma chama viva, mesmo que às vezes essa chama ameace me consumir.

Depois de deixá-la no estacionamento, vou para o trabalho, mas minha mente está com ela. Sei que ela vai para a academia depois do expediente, e sei exatamente em quais dias ela faz isso. Nesses dias, ajusto meu horário de saída para chegar ao mesmo tempo que ela em casa. Eu sei que parece obsessivo, e talvez seja. Mas na verdade, é a única maneira que encontrei para estar perto de Estela sem invadir seu espaço, sem assustá-la com o turbilhão de sentimentos que escondo.

Quando volto para casa mais tarde, ouço o som da porta dela se fechando. Estou em alerta constante, sempre atento. Desço para pegar as correspondências no mesmo momento que ela, e nos encontramos de novo no hall do prédio. Outro "acaso" que passei horas planejando.

— E aí, como foi o dia? — pergunto, com aquele sorriso fácil que ela já deve conhecer de cor. Ela responde com o mesmo tom, casual, como se fôssemos apenas dois amigos compartilhando o dia.

O que ela não sabe é que, para mim, essas interações são muito mais que simples conversas. Cada palavra que ela diz, cada gesto, fica gravado em mim como se fosse uma tatuagem invisível. Vivo para esses momentos. Para vê-la me olhar, para estar presente, mesmo que em silêncio.

Quando estamos no elevador de volta para nossos apartamentos, percebo algo diferente no rosto dela. Uma preocupação talvez. Ela suspira suavemente, e o som é quase imperceptível, mas para mim, parece um alarme disparando.

— Está tudo bem? — pergunto, um pouco mais sério.

Ela sorri, mas é um sorriso forçado desta vez. — Sim, só o trabalho me deixando um pouco cansada. Preciso de umas férias — ela brinca, mas eu sei que não é só isso.

Sinto um aperto no peito. Quero perguntar mais, saber o que realmente a preocupa, mas também não posso forçar. Ainda assim, minha mente começa a trabalhar, buscando uma forma de aliviar o fardo que ela parece carregar. Estar perto dela, proteger sem que ela perceba, é o único jeito que conheço de cuidar de Estela. Eu não posso ser o namorado ou o amante que gostaria de ser, mas posso ser o guardião silencioso que se certifica de que ela está bem.

Quando chegamos ao andar, ela se despede com um aceno rápido e entra no apartamento. Fico olhando a porta se fechar e, por um segundo, considero bater e oferecer companhia. Mas recuo. Talvez seja melhor assim. Talvez seja melhor manter essa distância segura, onde eu posso continuar ao lado dela sem que as coisas se compliquem.

Entro no meu apartamento, mas meus pensamentos permanecem com ela. Coloco uma música qualquer para tocar, mas a cabeça está cheia de estratégias. Eu me pergunto o que Rodrigo diria se soubesse de tudo isso. Talvez ele risse, dizendo que estou exagerando. Ou talvez ele me mandasse ficar longe, proteger a irmã dele de qualquer possibilidade de alguém, inclusive de mim.

A verdade é que Estela sempre foi o centro do meu universo, mesmo antes de eu perceber. Desde os 18 anos, quando comecei a vê-la de uma forma diferente, como algo mais do que apenas a irmã do meu melhor amigo. Tudo em mim mudou desde aquele momento. E agora, vivendo ao lado dela, é impossível não querer estar presente, não querer protegê-la de todo o resto do mundo.

Mas há um limite para o quanto posso esconder meus sentimentos. Estar tão perto e ainda assim tão longe começa a me desgastar, dia após dia. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir manter essa fachada de melhor amigo, de vizinho simpático. Um dia, tudo isso vai explodir, e quando isso acontecer, não sei o que virá depois.

Deito na cama, mas o sono não vem fácil. A única coisa que consigo pensar é que amanhã, tudo recomeça. Amanhã, estarei de novo ao lado dela, na sombra, sempre um passo à frente. Sempre perto, mas nunca perto o suficiente.

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