Capítulo 4
Noite Longa
Ela era corajosa e não se passava um dia sem que pensasse nela. Meus irmãos insistiam que deveríamos ir até os humanos, eles tinham mulheres, poderíamos encontrar parceiras entre elas, mas eu tinha medo que assim como para mim o cheiro dela fosse demais para eles. E se algum deles a vinculasse? Não podia permitir algo assim.
Consegui convencê-los que essa era a vontade da Senhora da Noite, que ela estava nos testando para saber se poderíamos suportar aquela provação antes de sermos recompensados — mas percebi que aquelas palavras eram mais para manter todos longe dela.
Eu a queria para mim e não admitiria que nenhum deles chegasse perto da mulher que tinha escolhido para mim.
Mas ela podia ter medo de mim, os outros sempre tinham, quem não fazia parte da minha tribo não compreendia o que éramos. E para a maioria nós éramos monstros.
Queria ver a mulher novamente, mas vi o medo em seus olhos e não queria isso.
Como ela viria até mim?
Parecia impossível que qualquer humano saísse de seu abrigo por sua conta, mas ela tinha, por algum motivo.
Eu a tinha visto com a Senhora da Noite, mas não sabia o que ela tinha dito, as palavras soavam estranhas.
Mas o que quer que fosse a deixou irritada, por algum motivo, então ela me viu e os outros humanos a encontraram e o curto momento passou.
Meus dedos coçavam para tocar sua pele, provar seu gosto. Mas sabia que precisava conquistar sua confiança e jamais teria isso se ela continuasse com os outros humanos.
Estava faminto e sabia que não podia perder minha cabeça ou algo muito pior do que a última vez voltaria a acontecer. Pensar na minha companheira me mantinha focado, mas não significava que isso tinha acabado com a minha fome, só que agora eu tinha propósito.
Suspirei. Não sabia por quanto tempo conseguiria suportar minha sede. Fechei meus olhos implorando para que A Senhora me guiasse, ela tinha um plano, tinha que ter um. Pois desde que coloquei meus olhos sobre a mulher não conseguia pensar em mais nada além de estar ao seu lado.
Só que não conseguia entender como ela viria até mim, parecia ser tão diferente de mim, do que eu conhecia. Quanto tempo tinha se passado desde que dormimos?
Precisava acreditar em minha senhora, confiar que ela tinha planos que estavam além da minha compreensão.
Marina
— Que Merda você pensou ao simplesmente sair daqui? Sozinha? — tive que conter cada fibra do meu corpo para não revirar meus olhos para Raul.
Três dias tinham se passado desde a minha “escapada” e mais uma de nós saiu perfeitamente bem e voltou falando coisas sem sentido, eu era a única a voltar bem. O que estava acontecendo?
— Eu sei me cuidar Raul. — só estava repetindo, não me importava mais com que pensavam sobre mim, tinha outras coisas em mente do que o comportamento patético daquele homem, estava cansada daquilo.
— E se não fosse eu e Luci a te encontrar e se fosse outro?
Mas quando ele disse isso não pensei nos caras nojentos e babacas do galpão, pensei nele. O homem que parecia passar seus dias debaixo do sol graças a cor perfeita em sua pele, de olhos vermelhos que ao mesmo tempo que assustavam tinham me intrigado — como os da estranha mulher que disse que uma de nós deveria se entregar voluntariamente.
— Você está me escutando? — bufei.
— E dai? Eu não devo satisfação do que faço Raul. Você não é nada meu! Chega!
— Sabe que “caras só respeitam caras”. — eu ri, pois estava exausta daquela justificativa selvagem e ridícula.
— É uma mulher só tem valor se pertencer a um homem, sei.
— Não disse...
— Disse! E quer saber? — explodi — Sexo com você nem vale tudo isso! Você é um tédio!
E sem esperar sua fúria ou ultraje o empurrei do meu quarto. Respirando fundo.
Mais de uma pessoa me perguntou o que eu tinha feito para sair sem ser afetada pela “força” do lado de fora, mas eu não conseguia explicar. Notava todos os olhares em cima de mim, perguntando silenciosamente o que tinha acontecido comigo, mas eu mesma não conseguia entender ou explicar, não fazia sentido.
Organizei minhas coisas como fazia todas as noites dentro de um baú antigo e o fechei. Ana tinha sentido que Raul tinha sumido e aparecido poucos minutos depois, ela brincava ao lado de nossos colchonetes imitando novamente Wendy a voar pelo céu, sorri, seus cabelos da mesma cor que os meus ruivos estavam quase batendo na sua cintura.
— Hora de dormir meu amor.
Ana abraçou sua amiga e se deitou, tirei meus tênis gastos e soprei a vela que ficava ao nosso lado, cantei a mesma música de ninar que cantava para minha filha todas as noites e adormeci quase que em seguida, estava cansada do serviço pesado, com menos mãos estávamos todos sobrecarregados.
Novamente estava naquele sonho andando pela floresta, seguindo a trilha de árvores entalhadas com uma meia lua, o astro acima de mim era vermelho sangue só que dessa vez ouvi alguém chamar meu nome e procurava por todos os lados.
E então lá estava ele, diante de mim. O homem que me apavorou e fascinou na mesma medida, os cabelos negros pareciam macios e quis tocá-los a pele beijada pelo sol fazia com que arrepios atravessarem meu corpo. Seus olhos, no entanto, não eram vermelhos ali, mas de um mel derretido encantador. Mesmo alto e todos músculos de alguma forma sabia que ele era doce e gentil — uma certeza encravada dentro de mim.
Seus dedos tocaram minha bochecha, com delicadeza extrema, como se ele tivesse medo de me quebrar, suspirei, a carícia enviando sensações quentes e profundas pelo meu corpo.
— Acorde companheira — ele sussurrou — Você está em perigo.
Abri meus olhos para a penumbra ao meu redor, sentindo suor escorrer pela minha testa por um momento agoniante não consegui me mover ou abrir a boca.
— Mamãe! Mamãe! — Ana choramingou — São monstros...
Ouvi gritos de puro terror e estremeci, mas meu corpo ainda não me respondia. Minha filha tocou minha bochecha, suas pequenas mãos quentes foram como um choque que fez meu corpo responder. Sem pensar duas vezes eu acendi a vela e arranquei tudo do baú e coloquei Ana dentro dele.
— Não mamãe! Eu tenho medo...
— Eu sei. — contive as lágrimas — Mas precisa ficar quietinha ai, não importa o que escute até a mamãe chamar, tudo bem?
Os lábios dela tremiam, mas Ana assentiu. Fechei o baú e imediatamente recuperei a faca que guardava embaixo do meu travesseiro para emergências e a empunhei feito uma espada. Conseguia ouvir os gritos cada vez mais próximos e quase senti contra minha pele o perigo chegando.
Três figuras pararam diante da porta, a vela mal me permitia ver o que eram, mas a silhueta indicava homens, mas um instinto primitivo gritava outra coisa.
Um deles deu um passo à frente e uma voz grave me atingiu, dei um passo atrás instintivamente mas cometi o erro de olhar na direção do baú, meu coração batendo acelerado em meu peito. Bati com força contra a parede e perdi o fôlego vendo tudo nublado por meio segundo. De alguma forma ele tinha atravessado o quarto e me empurrado contra a parede, e minha cabeça latejava pela delicadeza. Gemi de dor e uma mão gelada virou meu rosto, me obrigando a olhar diretamente para ele.
Olhos de um profundo vermelho me estudaram, parecendo decidir sobre meu destino. O que era aquilo? O rosto era bonito e assustador. A voz grave saiu dos lábios daquele que me segurava contra a parede, mas o que quer que ele tenha dito não foi em nenhuma língua que eu conhecesse, menos ainda que eu falasse.
Ele parecia insistir em dizer algo, as palavras guturais e arrastadas, balancei a cabeça tentando fazê-lo entender que não falava sua língua, mas algo me dizia que esse era o menor de meus problemas naquele momento.
O homem que me segurava, se é que eu podia chamar alguém com aquele tamanho de homem, fui forçada a virar meu pescoço dando acesso total a minha jugular, a posição fez mais dor irradiar por meu corpo, então eu o ouvi sugar o ar audivelmente e murmurar algo contra minha pele.
Estremeci, apavorada, sem ter certeza do que mais tinha medo: de que aquele homem fazer algo comigo ou com minha filha — implorava para que Ana ficasse em silêncio, mesmo que o pior acontecesse bem ali.
Mordi meu lábio inferior com força me obrigando a não chamar por minha filha, a não barganhar por sua vida, a deixar que ela passasse despercebida.
O gesto chamou a atenção dele e seu dedo indicador tocou meus lábios, tentei recuar sem sucesso e ele levou uma gota de sangue aos lábios, os olhos em mim, como se ele quisesse me assustar. Ergui meu queixo e tentei fingir segurança.
Ele sorriu dizendo algo para seus outros dois amigos, estremeci, tinha me esquecido deles.
Por favor, por favor, não descubram Ana.
Ouvi um choramingo baixinho e solucei. Um dos que estava nas sombras se aproximou do baú. Não. Minha filha não. Era a única coisa que conseguia pensar, a faca em minhas mãos finalmente me surgiu a mente e eu a enterrei bem fundo na barriga daquilo, fosse homem ou não. Ele cambaleou, o outro distraído me encarou, e aquele que me mantinha contra a parede urrou parecendo furioso e animalesco. Suas palavras guturais produziram algo que podia muito bem ser um xingamento, mas me mantive firme, enquanto eles olhassem para mim não tocariam Ana.
O que parecia líder deles cuspiu mais palavras furiosas em cima de mim, que não significavam nada, mas que imaginava não ser um elogio a minha coragem de revidar. Ele ergueu a mão e eu me preparei para o impacto enquanto fechava meus olhos, mas nada nunca veio.
Quando finalmente tive coragem de olhar, cambaleei para trás. Diante de mim, o homem de meus sonhos, o mesmo que tinha cruzado meu caminho na floresta. Seu braço direito estava erguido e tudo que conseguia ver eram seus músculos tensos e os desenhos intricados contra sua pele.
Ele rosnou algo para o outro, que respondeu, parecendo bem pouco satisfeito. Mesmo que não soubesse o que falavam, estava claro que aquele ali não compartilhava da visão dos outros, de invadir casas alheias e assustar as pessoas.
Ficou claro que enquanto um deles, aquele que parou o golpe, queria me defender de alguma forma, o outro queria me fazer em picadinhos. Os que estavam mais atrás ameaçaram vir defender seu amigo, mas meia dúzia de palavras rosnadas de meu defensor os fez ficar onde estavam, observando.
Aquele que ainda tinha minha faca em suas entranhas rosnou de volta e me apontou com o queixo. Como aquilo não tinha caído ao menos inconsciente com o ferimento? Ele pingava sangue, não deveria estar rosnando e querendo me matar mas fugindo por sua vida.
O homem, se fazendo claramente de escudo para me manter longe da fúria do outro, rosnou mais alto, claramente um aviso, mesmo assim o outro tentou investir contra mim, só para ser jogada no chão e então ter seu pescoço dilacerado pelos dentes do outro. Esperava que se eu não o tivesse matado, que aquele com seu braço tatuado tivesse, mas mesmo assim não fui capaz de encarar aquilo.
Qualquer um teria se afogado em seu próprio sangue, mas o valentão se debateu por alguns segundos até perceber que era inútil. Meu defensor se levantou, cuspindo no chão e berrando o que eu julguei serem ordens. Os que estavam observando seguraram seu amigo pelo braço e desapareceram, tão rápido que nem ouvi seus passos, na verdade o silêncio era assustador ao nosso redor.
Sentia cada parte do corpo tremer, mas não conseguia fazer nada além de olhar. Ele caminhou, devagar, como se temesse me assustar — o cara tinha praticamente arrancado o pescoço do outro, o que mais eu podia sentir?
Notando o horror em meu rosto, ele passou o punho no rosto, tentando limpar o sangue, sem sucesso devo admitir. Meu coração socava contra meu peito, mas não me atrevi a mover um músculo. Finalmente notei que assim como em meus sonhos eles usavam jeans surrados, tão velhos quanto minhas roupas.
Sua voz baixa e tranquilizadora fez minha pele arrepiar. A voz dele era levemente rouca quase como seda, mas me afastei do sentimento, seja lá o que ele fosse não era humano e nem inofensivo, engoli sentindo vontade de vomitar todo meu jantar.
Ele estava tentando dizer algo e apontando para meu pescoço. Oh céus, ele ia fazer de mim seu próximo lanche?
— Não! — finalmente gemi, me afastando. Ele parou, seus olhos vermelhos parecendo magoados, tristes, como se ele não quisesse me assustar.
Ele abaixou as mãos então me encarou por longos segundos, meu coração começando a normalizar as batidas, olhei para o baú divida entre checar se Ana estava bem ou manter minha filha segura. Seus olhos seguiram os meus e eu congelei. E se ele checasse o que eu tanto olhava? Engoli em seco, ficando onde estava.
Contra tudo o que imaginava seus dedos tocaram seu pescoço então ele apontou para mim, como se tentasse me dizer algo. Seus lábios se moviam mas não conseguia colocar sentido em suas palavras, então toquei meu próprio pescoço e isso fez algo se iluminar seus olhos.
— Você quer saber se estou ferida? — parecia estranho, mas ele tinha se colocado entre mim e alguém que eu julgava ser da mesma raça/ser que o próprio, fazia sentido que ele checasse se estava bem depois de tudo.
Ele virou o pescoço, mostrando a parte mais vulnerável do seu corpo — ou era isso que eu imaginava — fiz o mesmo, sem entender onde ele queria chegar, mesmo que não estivéssemos tão longe um do outro duvidava que ele visse com tanta clareza naquele escuro. Mas e se de fato fosse possível?
Ouvi seu suspiro e o encarei, confusa. O que ele era? O que todos eles eram afinal? Vampiros?
— Marina! Ana! — um grito apavorado me fez piscar, como se finalmente acordasse de um sonho.
Luci atravessou o batente só para paralisar encarando o homem diante de mim, os olhos arregalados — bem ao menos agora eu tinha certeza que ele não era um devaneio.
— P@ta merda! — ela exclamou.
Ele me lançou um último olhar e então não estava mais lá, como se desvanecesse no ar, feito fumaça. Corri para o baú e tirei Ana chorando de lá, abracei minha filha e suspirei aliviada.
Aquilo tinha mesmo salvo nossas vidas? Por que?
