Capítulo 3
Marina
Não sabia como, mas uma parte minha sabia que aquilo não era real, eu andava em uma trilha desconhecida passando por árvores entalhadas com uma meia lua, só a luz brilhante do astro noturno iluminando meu caminho. O vento gelado me fazia arrepiar então parei diante de uma caverna com uma abertura estreita onde um homem grande teria dificuldade em passar, galhos e ervas se retorciam na entrada e eu tirei tudo aquilo do caminho vendo a lua entalhada na pedra.
Olhei para o céu a lua completamente cheia parecia feita de sangue, senti uma respiração quente contra meu pescoço e me virei para encarar alguém.
Passei longos minutos admirando a figura diante de mim sua pele era alguns tons mais escura que a minha, como se ele tomasse sol continuamente, tatuagens tribais fechavam seu braço direito e seus cabelos negros batiam em seus ombros ele estava nu da cintura para cima vestindo calças jeans surradas. Seu rosto era de alguma forma familiar e estranho.
Ele tinha olhos quentes e brilhantes de um castanho mel profundo, que fez um estranho nó apertar meu estômago.
O homem parecia feito de músculos, mas não do tipo que se constrói na academia, ele se parecia mais com um trabalhador braçal, os braços davam dois do meus com facilidade. Fiquei hipnotizada pela sua beleza, nunca tinha visto um cara tão lindo e ao mesmo tempo tão assustador como se uma aura sombria o cobrisse, feito um manto.
Ele tocou minha cintura e se inclinou, quase se curvando por causa da diferença de tamanho entre nós, seus lábios pousando com suavidade sob uma veia pulsando em meu pescoço, senti cada canto do meu corpo se aquecer e então algo tocou meu rosto.
— Mamãe eu ouvi alguma coisa... — a vozinha de Ana me despertou, sentei alerta.
— O que? — esfreguei meus olhos ainda me livrando do sono e do sonho estranho.
— Estão gritando.
Seus olhos, verdes assim como os meus me analisaram, a luz da vela ainda iluminava parcialmente meu quarto. Luci surgiu com seus cachos soltos e revoltos e seus moletons de dormir, ela parecia sem fôlego.
— Alguma coisa aconteceu...
Senti uma sensação gelada descer pela minha coluna. Pedi que Ana ficasse ali e não saísse com ninguém e que corresse se alguém se aproximasse — eu já tinha martelado algumas regras básicas de proteção para ela.
Corri com Luci até o refeitório que estava cheio de pessoas , todas falando juntas enquanto me aproximava ouvi um murmúrio de uma voz familiar. Era Maria alguns anos mais velha do que eu, ela estava sentada em uma cadeira/ os olhos vidrados enquanto seus lábios se moviam.
— O que aconteceu? — perguntei para João, um dos membros de nosso conselho improvisado.
— Tadeu a encontrou do lado de fora, ela foi buscar lenha e não voltou.
Estranhei aquilo, não era comum sair quando escurecia, era quando a maioria dos predadores atacava.
— Eu a encontrei falando sozinha, pensei que estivesse bêbada... — Tadeu deu de ombros e eu ignorei que ele deveria esperar que ela estivesse bêbada para se aproveitar, não seria a primeira vez. — Mas ela não estava e continuou repetindo a mesma coisa.
Me ajoelhei diante de Maria, seus olhos castanhos olhando para além de mim me inclinei ouvindo o que ela dizia:
— A esposa de Noite precisa se apressar... Noite está faminto... Chora... A solidão vai consumir sua alma... — então ela repetiu tudo desde o começo, de novo e de novo.
Me levantei, sentindo os pelos da minha pele se eriçarem em alerta. Uma sensação gelada descer pela minha coluna.
— Já ouviram algo parecido com isso?
Todos negaram encarei Luci que parecia tão perdida e confusa quanto eu.
— Ela não deveria estar do lado de fora a noite. Todos conhecem as regras...
Ninguém respondeu nada, mas a pergunta ficou no ar. Todos sabiam que Maria deveria estar fazendo algo, ou tinha tentado, e até existia a possibilidade dela ter sido atraída. Mas nada justificava ficar daquele jeito.
— Camila. — a mulher quieta até então se aproximou, ela era a única médica por ali. — Pode ficar com ela e ver se ela diz algo de útil?
Ela assentiu e ajudou Maria a se levantar de afastando.
Mais tarde enquanto cozinhava nosso café tentei me convencer que Maria era um caso isolado, mas algumas semanas depois quando décima mulher apareceu igual a Maria soube que não era o caso. Tinha algo na floresta algo que deixava as mulheres repetindo aquelas mesmas palavras que ouvi a primeira “atacada” proferir. Soava como um pedido e uma profecia e toda vez que ouvia aquelas palavras me sentia estranha.
Em conselho “decidimos” que as mulheres não sairiam depois que o anoitecesse, mas senti que alguns homens queriam se aproveitar da situação para nos manter mais cativas, debaixo de suas “asas” e isso não me parecia certo.
Raul insistia para dormir no meu quarto , dizendo que poderia me manter protegida. Mas sabia que aquilo era só pânico. O número de homens e mulheres estava ficando vertiginosamente desigual e senti a tensão pairar sobre mim e Luci com mais força.
As outras estavam ficando “loucas” quem sobraria para os caras?
Quase podia ouvi-los se questionar. Levei Ana ao quarto de Luci, que ela dividia com mais duas garotas/ uma que tinha sido atacada pela força estranha e outra que estava encolhida e apavorada demais para sair do quarto.
— Você não vai fazer essa merda! — ela sussurrou depois que fiz Ana dormir.
— Se tiver outra alternativa, por favor, sou toda ouvidos.
— Não interessa Marina. Você não vai colocar sua vida em risco e se acontecer o mesmo com você? Se ficar repetindo as mesmas frases até perder a voz? — ela questionou, eu já tinha me perguntado aquilo mas não era do tipo que esperava. Eu agia, mesmo que não fosse uma boa ação, como parecia ser o caso.
— Alguém tem que descobrir o que está acontecendo ou os caras vão dominar, de novo, como se nunca tivéssemos visto isso.
— Marina, você tem uma filha.
— Acha que eu não estou pensando nela? Não vou deixar que minha filha viva em um mundo que além de destruído ainda é uma versão bizarra da idade média onde os caras inventam motivos para nos manter presas, obedecendo? Eu dei aula de história Luciana, sei como as coisas funcionam. Eu vou descobrir o que está acontecendo.
Ela suspirou, provavelmente sabendo que não conseguiria mudar minha decisão.
— Tome cuidado.
— Sempre tomo.
Eu saí com uma faca no bolso do meu moletom, pronta para golpear quem quer que tentasse me atacar. Não era difícil sair do galpão se você realmente estivesse determinado a escapar. Tínhamos janelas nos fundos, que não eram difíceis de abrir e então escapulir e para mim e Luci ainda restava uma porta, escondida deixávamos uma chave do lado de dentro sob o batente e outra do lado de fora.
Sai do galpão sem maiores problemas. Caminhei indo cada vez mais dentro da floresta, as árvores se erguiam gigantes ao meu redor. Não tinha mais do que a luz da lua, uma faixa do céu, para iluminar meu caminho. Pensei em levar uma vela, mas sabia que se ela caísse seria um estrago terrível.
Continuei a andar ouvindo os sons noturnos e pensando que eu poderia ser atacada por uma onça ou algo pior. O que se escondia no meio da floresta?
Continuei a andar, tentando não pensar nas várias formas que poderia morrer e que ninguém encontraria se quer meu corpo para contar a história. Volte por Ana. Repeti seguindo adiante.
— Eu estou aqui... — sussurrei para ninguém em especial — Vamos, aparece.
Tudo ao meu redor pareceu ficar anormalmente silencioso e um brilho intenso prateado irradiou me obrigando a fechar meus olhos. Quando os abri novamente, uma mulher vestida com uma espécie de manto vermelho e com um cocar de penas negras estava diante de mim. Sua pele era lindamente mais escura do que a minha, não como Luci, que era negra, mas ela era o que chamavam de morena escura, seus cabelos caiam em ondas por suas costas como uma noite sem estrelas em ondas delicadas os olhos parecia marcados por um lápis preto delineando e suas íris eram chocantemente vermelhas. Ela não era humana, não sabia como mas conseguia sentir isso em meus ossos inclusive na inclinação a me ajoelhar diante dela.
— Eu estava esperando por você. — ela sorriu, mostrando dentes brancos e alinhados com presas proeminentes. Um arrepio percorreu meu corpo.
— Você está machucando as mulheres? — aquilo parecia meio óbvio, mas precisava perguntar.
— Machucando? — ela deu um passo e eu recuei instintivamente, seu olhar me seguiu ela parecia intrigada. — A mente delas não suportou o que sou...
— Então eu ficarei como elas? — seu sorriso se alargou.
— Você é diferente.
— Diferente?
— Mais do que imagina.
Balancei a cabeça, aquilo era insano. Ergui meu queixo reunindo toda a coragem dentro de mim e a encarei.
— Nos deixe em paz, não te fizemos nada.
— Não é tão simples.
— Para mim é bem simples. Aquelas mulheres só estavam vivendo a vida delas, sem fazer mal a ninguém.
— Elas ficaram bem quando uma mulher se entregar voluntariamente a Noite.
— Se entregar? — engasguei, sentindo meu sangue gelar. — Você está falando de sacrifício?
— Você é quem está dizendo isso...
— Ninguém vai se entregar para nada! Nos deixe em paz!
— As outras voltaram ao normal, quando uma voluntária fizer sua parte.
— Você é louca!
Aquela maluca não podia mesmo acreditar que alguém se entregaria. Para que? Morrer? Sem chance.
Dei as costas para ela, ignorando meu instinto que mandava não desafiar aquilo, fosse ela o que fosse, podia acabar comigo em um piscar de olhos.
A mulher não me seguiu e nem usou nada contra mim. Caminhei o mais rápido que pude, incapaz de acreditar no que tinha acabado de acontecer. Meu coração parecia bater acelerado, conseguia sentir o medo rastejando em minha direção a sensação de que tinha algo muito errado.
Olhei sobre meu ombro, para encontrar a clareira onde a bela mulher estava,vazia, mas assim que voltei a olhar adiante parei chocada.
Minha mão encontrou o cabo da faca, e eu o apertei com força pronta para golpear o estranho.
Ele me lembrava a mulher de feições delicadas e etéreas, mas onde ela era curvas e delicadeza ele era o oposto. Seu rosto era familiar. Sua pele me fazia pensar em dias debaixo do sol, seu rosto era marcante com cílios longos, barba por fazer e lábios cheios senti um arrepio percorrer meu corpo e não era exatamente de medo, mesmo que assim como a mulher que tinha deixado para trás suas íris fossem vermelho vivo.
Ele estava incrivelmente próximo, sua respiração tocava minha pele e seus olhos pareciam analisar minhas reações. Ele se inclinou, seu nariz roçando minha bochecha enquanto eu me via incapaz de me mexer ou gritar.
Quis tocar sua pele e senti meus dedos queimarem de desejo, mesmo que lá no fundo soubesse que isso era uma bobagem e que não me traria nada de bom.
O encanto pareceu se quebrar quando ouvi vozes e me virei, estavam chamando por mim, assim que voltei a encarar o homem ele tinha desaparecido. Como alguém desaparecia tão rápido?
— Marina! — uma voz familiar chamou, mas eu ainda estava encarando o lugar onde ele deveria estar. Minha mente parecia trabalhar lentamente — Marina!
Alguém segurou meu braço e eu o puxei por instinto. Raul me olhou parecendo furioso e preocupado na mesma medida, mas não me importava com ele, não naquele momento em particular.
Luciana me alcançou me apertando em seus braços.
— Você me deixou preocupada. — ela sussurrou. Então se afastou me encarando — Você não vai falar coisas sem sentido né?
— Não — resmunguei ainda confusa. Luci suspirou.
— Vamos voltar, não é seguro andar por aqui a essa hora.
Notei que nossos guardas estavam por ali e mantinham suas armas em punho. Tinham mesmo vindo me buscar ou era outra coisa?
Fui questionada até a exaustão sobre o que tinha visto, mas não ousei dizer nada nem sobre a mulher misteriosa e nem sobre o homem, ambos tinham olhos vermelhos, isso tinha alguma relação. Não tinha sentido o poder que emanava dela no homem, mas de alguma forma soube que deveria ter medo dele.
E como não conseguia explicar nenhum deles de forma lógica disse que andei pela floresta. Ao menos admiti que queria descobrir o que estava acontecendo com as outras e fui repreendida e me senti feito uma adolescente pega fazendo algo errado — e essa sensação me fez sentir idiota.
O Conselho declarou que mais nenhuma mulher deveria sair a noite, não importava o motivo, mas ignorei isso antes que resolvesse discutir e tudo piorasse.
Fui para meu quarto, levando Ana comigo e sendo seguida por Luci. Raul tentou ficar mas minha amiga o expulsou. Minha cabeça ainda girava indo e voltando no que tinha acontecido.
Parecia como um sonho ou um pesadelo, tudo isso misturado. Mas não parecia real.
— Tá bom — Luci declarou depois que ficamos sozinhas — me conta o que realmente aconteceu. Você foi a única que voltou normal e isso não pode ser coincidência. Como sabia que deveria ir?
— Não sabia. — na verdade eu só sentia que era algo que deveria fazer. — Eu não sei explicar o que aconteceu na verdade.
— Você viu algo? — ela arregalou seus olhos.
— Eu não tenho certeza. — Luci soltou meia dúzia de palavrões e me encarou.
— Conta tudo quero saber de todos os detalhes.
— Lembra que conversamos sobre os caras hoje não valerem a pena ? — ela assentiu, parecendo ansiosa por respostas — Bom, talvez tenha pelo menos um que valha. Se ele não for fruto da minha imaginação.
Contei tudo a Luci. Mesmo me sentindo estúpida e maluca durante metade do relato. Quando terminei ela assoviou.
— Seja lá o que você fumou eu quero...
— Luci!
— Tá bom, vamos supor que tudo seja real... — ela ergueu o dedo me impedindo de falar — E aí? O que o cara gostoso tem a ver com a mulher estranha? Como ela fez as outras pirarem? O que exatamente seria se voluntariar?
— Eu pareço ter alguma dessas respostas? — pensei sobre as palavras da mulher — E se for verdade? Se as outras puderem voltar ao normal?
— E quem se entregaria nas mãos de sabe se lá quem para sabe se lá o que?
Luci fez uma careta quando fiquei em silêncio.
— Não Mari! Chega! Você já fez a sua parte.
— Não descobri nada e nem resolvi o problema.
— Deixe que outro faça isso, já deu de loucuras.
Deitei e tentei dormir, mas continuava me lembrando dele. Antes de finalmente adormecer quando o sol já começava a despontar do lado de fora lembrei que o rosto daquele homem me parecia familiar pois ele estava em todos os meus sonhos, desde o dia que coloquei meus pés naquele lugar.
