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Capítulo 1

Marina

Delicadamente eu tirei os braços de Raul de cima de mim, ele vinha fazendo aquilo com cada vez mais frequência, marcando seu território, como se eu fosse a porcaria de brinquedo que ele fazia questão de esfregar na cara dos outros, principalmente os outros caras. Saltei da cama improvisada, não mais do que alguns colchões velhos amontoados e encontrei Ana sentada nas escadas do nosso quarto desenhando nas paredes com giz de cera, não contive o sorriso caminhando até minha filha e beijando sua testa.

Ela esticou seus bracinhos e sem palavras eu a levei para nossa rotina matinal, lançando um último olhar para o homem adormecido.

Não que eu fosse sua namorada, apesar de já ter ouvido ele se gabar por aí disso. Não tinha tempo para namorar. Ele era meu alívio momentâneo, aquilo que me tirava daquele lugar por breves minutos.

E nem mesmo sexo mediano me faria declarar aquele homem mais do que aquilo, casual. Nada mais.

Eu tinha uma filha de cinco anos, pessoas que precisavam continuamente de coisas, feras do lado de fora, macacos adestrados do lado de dentro — metade das pessoas tinha virado um lixo depois da febre — e muita merda rolando dia sim e outro também.

Não, eu não iria ligar para as besteiras que Raul falava para os outros.

A febre tinha matado muita gente, eu perdi a conta de quantas pessoas vi morrer, implorando todos dias para não ser a próxima ou para que minha pequena Ana fosse a próxima.

O pai de Ana tinha morrido, logo que a febre começou. Eu era só uma estudante de história, finalizando a faculdade, dando aulas para crianças e tentando comprar um apartamento. Rafael era gentil e doce e me apaixonar por ele foi a coisa mais fácil do mundo. Alguns meses depois eu descobri que estava grávida e quando fui contar para ele tudo pareceu explodir. Ele adoeceu e morreu em menos de 72 horas e muitos outros o seguiram. Meus pais, meus irmãos, amigos. Vi tanta gente morrer que em certo momento fiquei anestesiada.

Depois eu perdi as contas de quantos ônibus ou outros transportes peguei, indo para cada vez mais longe das grandes cidades. Atualmente se quer podia dizer se ainda estávamos no Brasil, ou se países em geral ainda existiam. Vivíamos como podíamos, em pequenas comunidades, com poucas pessoas.

Já fazia quase dois anos que ninguém mais morria da Febre vermelha. Mas não podia dizer que estávamos seguros.

O mundo ruiu toda tecnologia e avanço se foi. Cada nação se fechou em si mesma, não que isso tenha parado o avanço da doença, as mortes, a barbárie que veio depois.

Atualmente, nos últimos seis meses para ser exata. Morávamos em um enorme galpão localizado em uma floresta densa que nos proporcionava um lugar para plantio de algumas verduras e legumes e o mais importante a caça. Tínhamos também um pequeno estoque de comidas enlatadas e outras coisas que não estragaram, ou que pareciam comestíveis o suficiente para nos arriscarmos a comer.

Tínhamos água corrente de um pequeno rio que corria nas proximidades e algumas frutas nativas.

Ninguém morreria de fome por ali e tentamos manter as coisas em ordem na medida do possível. Eu e mais meia dúzia de pessoas fazíamos parte de uma liderança democrática, ou o máximo disso que tinha sobrado, que mantinha regras básicas de sobrevivência que nos manteriam minimamente civilizados.

Tínhamos banido alguns que se desviaram disso, mantendo pessoas brutais longe de nosso pequeno lugar de paz. Não era perfeito mas era o mais decente que conseguíamos naqueles tempos.

Eu sabia como aqueles tempos brutais transformavam as pessoas, ou melhor revelavam o que de pior elas tinham.

Escovei meus dentes e observei Ana fazer o mesmo, com um sorriso idiota. Ela era a única constante na minha vida. O banheiro comunitário estava vazio àquela hora da manhã.

Ana me seguiu enquanto eu ia até a cozinha improvisada e começava a preparar o café, era minha semana de cuidar da cozinha. Nem tinham se passado dez minutos que eu tinha juntado madeira e acendido o fogão a lenha colocando a água para ferver — nossos buscadores tinham encontrado algumas sacas de café sem moer e não seria eu a recusar aquela dádiva. — para fazer um café que Luciana chegou arrastando os pés e esfregando os olhos, o calor já estava começando a aumentar.

Moer o café tinha sido dificil, mas todos estavam ansiosos por uma xícara de café para reclamar do trabalho.

— Eu odeio acordar cedo — sorri, aquele era seu mantra todas as manhãs.

— E eu odeio que Raul ande invadindo minha cama, todas as noites. Ana não dorme bem quando ele faz isso.

— Aquele filho da... — eu lancei um olhar de aviso e ela movendo lábios terminado de xingar sem som, Ana estava logo ali e tinham mais crianças — Como ele ousa?

— Antes só transar não era sinônimo de compromisso. — resmunguei , pegando a grande caneca de água fervida e depositando no coador improvisado.

— Somos as maiores gostosas dessa... — ela reprimiu outro palavrão — lugar abençoado. O que se pode fazer? — eu ri.

— Está na hora de chutar aquele babaca. O sexo com ele não vale tudo isso…

Suspirei. Na verdade sexo com Raul não valia quase nada. Ele sempre estava a fim, mas dificilmente se importava se eu gostava ou não e cada vez com mais frequência eu não estava satisfeita. Então o alívio que costumava sentir com nossas transas não era assim tão satisfatório naquele ponto.

Raul era o que costumávamos chamar antes de boy lixo, mas ultimamente eu não andava tão exigente. Mas isso não significava que estava disposta a me prender a ele. Ana não gostava dele, nunca tinha gostado. E sempre que ele aparecia minha filha encontrava algo para fazer bem longe.

— Preciso acabar com isso, antes que ele ache que é definitivo.

— Pois é gata, nós merecemos muito mais.

Nós não tínhamos opções. Raul era um dos poucos caras aceitáveis, eu até mesmo o achava um cara bonito e com corpo levemente definido, mas ainda assim não iria me prender a ele, nem a ninguém aliás. O restante ou era escroto ou nojento demais. E apesar de tudo eu tomava banho todos os dias, mesmo que a água fosse gelada. Me recusava a não me limpar ou não ter o mínimo de higiene.

Luciana era uma linda negra de corpo violão, como se costumava dizer. Seus cachos revoltos eram constantemente mantidos presos pois ela não tinha como cuidar deles adequadamente, nenhuma de nós mulheres conseguia tratar de cabelos adequadamente e a maioria escolhia cortar bem curto ou manter constantemente preso. Não restavam muitos cosméticos, nada de batons, esmaltes, shampoos, de vez em quando salvamos alguns sabonetes mas era só, então tomar banho se tornava muito mais importante.

Não tínhamos leite fresco então tomávamos leite em pó, a maioria só misturava com o próprio café. Tínhamos alguns pães de nossa última excursão e tínhamos pego algumas galinhas que botavam ovos e nos mantinham abastecidos, ao menos em parte. Estávamos até tentando fazer pães com a farinha que encontramos no galpão, o problema é que nenhum de nós sabia fermentar o pão corretamente para que ele crescesse, então era só gasto desnecessário de farinha valiosa — não podíamos gastar nada.

Aquele galpão era enorme e nossos buscadores, pessoas que saiam diariamente em busca de qualquer coisa que pudéssemos aproveitar, encontravam sempre algum tesouro por ali. Nosso palpite é que ali era um centro de distribuição antes que o mundo ruísse, então ficaríamos ali por um tempo. Pelo menos até que a comida e outros artigos valiosos acabassem.

— Sinto falta de comer algo além de ovo e pão.

— E eu sinto falta de comer chocolate quando estou de TPM. — ela riu.

Levamos a panela com ovos mexidos para o centro do refeitório, chamávamos assim, mas era só um espaço enorme com mesas improvisadas,cadeiras e banquinhos. Depois levamos vários sacos de pães, cada um tinha direito a duas fatias e uma porção de ovos, uma xícara de café, as crianças, tínhamos meia dúzias delas, costumavam beber o que viesse sem reclamar, inclusive café com leite em pó. Algumas tinham perdido os pais e acabavam sendo responsabilidade de todos, mais minha e de Luciana, as poucas mulheres que tinham saúde física e mental não podiam ser chamadas de maternais — sabia que muitos tinham pago preços altos por sobreviver a tudo.

Assim que terminamos de levar tudo, os primeiros homens surgiram, eles costumavam ser os primeiros a surgirem e tratei de lançar um olhar de aviso enquanto eles pegavam seus pratos. Luciana servia os pães e eu os ovos. Assim que servi recebi caretas, mas ninguém abriu a boca. Muitos homens achavam que por ser maiores ou sei lá o que mereciam mais comida. Já tinha ouvido todo tipo de coisa, inclusive que crianças não deveriam receber a mesma porção que os adultos. Mas a maioria de nós já estava magra e desnutrida, não deixaria que tirassem mais nada daquelas crianças.

O grupo de homens particularmente problemático afastou Luciana bufou.

— Cuzões do caralho.

— Chega. — avisei, ela não costumava ter paciência.

— Estou cansada deles.

— Enquanto eles fizerem a parte deles e não quebrarem as regras tem o direito de ficar. Já concordamos com isso.

A verdade é que por mais que odiasse aqueles caras eles eram enormes e podiam ser úteis se problemas grandes surgissem, e caçavam, carne era algo que todos precisávamos. Mais pessoas se aproximaram e servi todos igualmente. Ana já tinha pego sua porção e comido, então corria rindo com outras crianças que também já tinham comido. Raul se aproximou com seu andar inconfundível, Luciana fechou a cara.

— Bom dia garotas. — ele sorriu, uma fileira de dentes quase perfeitos. Ele era alguns centímetros mais alto e seus cabelos eram claros, quase loiros com olhos castanhos chorosos, a parte do choroso era cortesia de Luci que dizia que ele parecia sempre um cãozinho implorando atenção. — Como estão? — Ele me encarou.

— Tão bem quanto se pode no apocalipse. — eu ri da piada de Luciana, ela sempre dizia a mesma coisa.

— Você não estava lá quando acordei — ele obviamente ignorou minha amiga.

— Eu tinha que cuidar do café e não te chamei para minha cama — estava ali a oportunidade de esclarecer as coisas. — eu durmo com a minha filha Raul, não quero que faça isso... Já disse isso para você.

— Ana já é grandinha, pode dormir sozinha. — não, ela não era, eu sabia as merdas que podiam acontecer com crianças que eram deixadas de lado. Já tinha visto minha cota de coisas ruins.

— Não vou deixar Ana dormir sozinha, já conversamos milhares de vezes.

— Eu pensei... — ele começou parecendo arrependimento os olhos de cachorrinho em ação.

— Pensou errado. Ana é minha prioridade, não sou sua namorada e se pegar você espalhando essa merda por aí nós teremos problemas. — servi Raul e ele se afastou cabisbaixo.

— Isso aí. — Luciana me elogiou — Coloca ele no lugar dele, não deixa ele crescer em cima de você. Se ele gritar...

— Você grita mais alto.

Repeti o mantra que parecia guiar nossas vidas, homens do depois eram tudo menos cavalheiros. Poucos eram minimamente decentes, achando que podiam resolver tudo nos punhos e alguns bem que tentavam. Mas ali nós não deixávamos os valentões vencerem.

Depois de comer cada um foi para seus afazeres diários. Comida, colheita, pegar água e limpeza eram afazeres gerais nos quais todos nós revezavámos todas as semanas. Eu e Luci permanecemos na cozinha, tentando cozinhar algumas caças pegas mais cedo por aqueles que se voluntariaram para isso.

Eram em sua maioria pequenas aves, coelhos ou outras coisas que se quer queria imaginar o nome, de vez em quando se estávamos sortudos encontrávamos vacas pastando por ai e a escolha entre leite e carne, geralmente vencia carne, fazer uma vaca ter filhotes só para beber leite era demorado, e meio cruel, para que tentássemos a longo prazo. Estávamos famintos hoje, quase ninguém mais pensava a longo prazo. Não dava para culpar ninguém.

Fazíamos ensopados, dos quais aproveitávamos toda a carne disponível, usávamos algumas folhas que pareciam muito com couve para engrossar tudo e ainda deixávamos farinha para que todos comessem. Não era uma fartura, mas nos mantinha alimentados e fortes para buscar e lutar mais um dia.

Assim que o almoço foi servido e todos comeram, organizamos tudo e limpamos para o próximo turno eu e Luci fomos para o rio que ficava nos fundos do galpão, naquele horário a maioria ia dormir um pouco, descansar de seus trabalhos que geralmente eram árduos e naquele calor dos infernos era até que uma boa ideia, mas eu usava aquele tempo antes do jantar para tomar banho. Ana sempre estava atrás de mim, ela falava muito pouco, mesmo perto de Luci. Me preocupava que ela tivesse algum transtorno, na faculdade estudei alguns, mas era incapaz de identificar algo nela.

Luci me deu um cutucão quando me pegou olhando minha filha, que andava a nossa frente com uma boneca velha de pano, ela fazia seu brinquedo “voar” como ela dizia imitando a Wendy de Peter Pan, da história que tinha contado a ela na noite passada.

— Relaxa. — ela sempre dizia que não tinha nada de errado com Ana, que eu só estava sendo paranoica, mas me preocupava com minha filha, todos os dias — Ela é perfeita, minha mãe costumava dizer que todos nós florimos quando a hora chega, quando Ana estiver pronta ela vai se abrir e florescer.

Sorri. Luci sempre me surpreendia sendo positiva, mesmo depois de tantas coisas ela conseguia pensar que as coisas dariam certo, eu tinha perdido essa habilidade.

Tirei minhas calças e ajudei minha filha a tirar suas roupas, deixando a apenas com suas calcinhas, eu mesma usava uma camiseta surrada que um dia tinha sido branca, sutiã de vovó e calcinhas — eu já tinha aprendido que você nuca ficava completamente nua, nunca e Luci concordava comigo — depois de alguma experiencias nada positivas e quase tinham acabado mal nós duas íamos juntas tomar banho e nunca tirávamos tudo. Isso já facilitava parte de nosso trabalho que era lavar as roupas.

Raul tinha me salvo um dia que eu fui estúpida o suficiente para pensar que ao menos ali teríamos relativa paz, que todos éramos pessoas decentes, desde então nunca deixava Ana sozinha e eu mesma tentava evitar estar só, uma mulher nunca estava segura, nem no antes e menos ainda do agora.

Tomamos banho esfregando os sabonetes meio ressecados na pele, o cheiro suave de flores ainda podia ser sentido e isso me fazia lembrar de tempos mais amenos, de uma vida diferente.

Quando o sol começou a desaparecer deixamos o rio e nos secamos, até chegarmos já estaríamos secas, o calor ali era intenso, mesmo durante a noite, caminhamos de volta ouvi algo na floresta e me virei instintivamente e senti algo contra minha mão.

— Ai — gemi, olhando ao redor confusa. Era quase como se alguém tivesse me cortado mas não tinha ninguém ali. — Que merda!

— O que foi? — Luci me encarou, alguns passos de distância.

Continuei olhando para a mata, tínhamos aberto trilhas, mas isso não fazia daquele lugar seguro, balancei a cabeça.

— Devo ter me cortado em galho, essa... — me calei antes de soltar mais palavrões enquanto os olhos de Ana me estudavam com atenção, ela adorava repetir coisas que não deveria — coisa dói.

Luci assentiu, mas escondeu um sorriso malicioso.

— Vamos embora, antes que outro galho te ataque. — Luci riu e caminhamos de volta.

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