Capítulo 4: A Dívida
*Aviso de gatilho*
Este capítulo aborda temas como rejeição parental, abuso emocional, degradação verbal, traição familiar e trauma emocional explícito. Leia com atenção.
Os dedos de Sera tremiam. Ela os enxugou na camisola enquanto descia descalça a escada que rangia, os dedos dos pés se curvando contra a madeira fria.
O coração dela batia rápido. Rápido demais.
Era o que sempre acontecia quando a chamavam assim.
O jantar já tinha terminado... ela sentia o cheiro do cordeiro assado e das batatas com alecrim que haviam sido raspadas dos pratos e jogadas no lixo. Ninguém guardava um prato para ela. Nunca guardavam.
Ela entrou na sala de jantar. Estavam todos lá.
Seu pai à cabeceira da mesa. Alfa Vale. Seu cabelo com mechas prateadas penteado para trás, seus ombros largos e retos, sua expressão indecifrável.
Sua madrasta, Mirena, estava sentada ao lado dele como uma rainha em um trono que não conquistou. Seu batom vermelho ainda fresco, seus dedos brilhando com anéis de ouro. Sua taça de vinho intocada.
Isso significava alguma coisa. Mirena sempre bebia. Ela sempre ficava um pouco relaxada demais, a menos que algo sério acontecesse.
Seu meio-irmão, Thorne, recostou-se na cadeira com um olhar presunçoso, um palito na boca e as botas batendo na borda polida da mesa. Arrogante como sempre, já meio bêbado. Ele nem olhou para ela.
E então apareceu ela.
Sylvana.
Sua meia-irmã.
Alta. Bonita. Transformada de nascença. Tudo o que Sera não era.
Os braços de Sylvana estavam cruzados. Suas sobrancelhas estavam arqueadas, a boca contorcida naquele mesmo sorrisinho cruel que ela usava como perfume.
O peito de Sera se apertou. Ela ficou parada na porta, subitamente consciente de sua camisola fina e surrada e de seus cachos molhados grudados na clavícula. Seus braços instintivamente cruzaram sobre o peito, as bochechas esquentando.
“Sente-se”, disse Alpha Vale.
Não foi um pedido.
Ela sentou-se lentamente na cadeira vazia no outro extremo da mesa, seus dedos se curvando ao redor da borda como uma tábua de salvação.
Ninguém falou por um longo tempo.
Apenas silêncio.
Olhando fixamente.
Então finalmente…
"Você começou a sangrar", disse Mirena, com a voz fria e cortante.
Sera congelou.
Seu estômago se revirou. Ela olhou para as mãos, subitamente envergonhada. "O quê?"
“Não se faça de bobo”, Sylvana interrompeu com uma risada
"As empregadas nos contaram. Você finalmente menstruou, certo?"
O rosto de Sera queimou. "Eu... eu não vejo como isso importa..."
“É importante”, disse Alpha Vale.
Ela olhou para cima. Os olhos dele eram duros. Distantes. Quase... enojados.
“Não entendo”, ela sussurrou.
"Você tem dezoito anos agora", disse ele. "Você floresceu. Não é mais uma criança. Isso a torna... útil."
Algo frio percorreu sua espinha. "Útil para quê?"
Thorne bufou. "Não a faça soletrar."
"Thorne", retrucou Mirena, sem muita convicção, embora seus lábios já estivessem se curvando em divertimento. "Deixe seu pai explicar."
Os dedos de Sera se fecharam com mais força contra a madeira. Suas palmas estavam úmidas.
Alfa Vale se levantou. Caminhou lentamente até a janela, com as mãos atrás das costas, como se estivesse se preparando para um discurso de guerra. "Alfa Lucien chega amanhã."
Seu estômago embrulhou. Aquele nome. Todos o temiam. Todos o sussurravam. Lucien... a Besta. O Alfa de Sangue. Aquele que não apenas matava seus inimigos, como os destroçava.
Sera piscou. "T-tá. O que isso tem a ver comigo?"
Ele se virou.
Morto. Vazio. Olhos fundos.
“Você é o pagamento da minha dívida com ele”
Silêncio.
A sala girou.
Seus ouvidos zumbiam como se abelhas tivessem feito ninho em seu crânio.
"Desculpe…? Que pai? Não ouvi direito.", ela grasnou.
"Você irá com ele", continuou Vale. "Como combinado. Em troca do pagamento da minha dívida."
Sera não conseguia respirar.
Ela abriu a boca. Não saiu nada.
Sylvana riu baixinho. "Pobrezinha que se desenvolveu tarde. Mal virou mulher e já foi vendida."
"Você não vai me vender", sussurrou Sera, finalmente encontrando a voz. "Você não pode. Eu sou sua filha."
"Não", Vale retrucou. "Você não é. Você é uma vira-lata. Uma menininha fraca que acolhemos por pena. Uma boca para alimentar. Um fardo inútil e constrangedor."
Mirena emitiu um som de desgosto. "Você sabe quantos pretendentes Sylvana recusou? Sabe quantas ofertas recebemos pela mão dela? Ela vale ouro. Você? Você vale exatamente uma coisa... tirar esse monstro das nossas costas."
Lágrimas brotaram nos olhos de Sera, quentes e ofuscantes. "Mas eu... eu menstruei semana passada. Eu nem sei o que sou ainda. Eu não mudei. Eu não..."
"Exatamente", disse Thorne com um sorriso frio. "Você não fez nada. Você não é um lobo. Você não é humano. Você não é nada."
"Eu não sou nada!", Sera retrucou, levantando-se, com a voz trêmula. "Você não pode fazer isso! Você não pode simplesmente me entregar como se eu fosse..."
"Você é nosso", rosnou Vale. "E fará o que lhe mandarem."
"Por que não Sylvana?!", ela gritou, apontando para o outro lado da mesa com os dedos trêmulos. "Ela é mais velha! Mais forte! Ela é treinada! Por que não ela?!"
Sylvana levantou-se lentamente.
O sorriso desapareceu.
"Você ousa se comparar a mim?", sussurrou ela, andando ao redor da mesa, os saltos estalando como uma contagem regressiva. "Você, um pirralho imundo que nem consegue se transformar? Acha que deveria ser escolhido em vez de mim?"
Sera deu um passo para trás.
“Eu não quis dizer…”
"Você não quis dizer isso?" Sylvana estendeu a mão rapidamente. Ela agarrou o queixo de Sera, cravando as unhas em suas bochechas. "Você acha que alguém escolheria você em vez de mim? Lucien não quer um guerreiro. Ele quer um brinquedo. Você acha que eu seria enviada para ser o brinquedo dele? Você acha que eu deixaria isso acontecer comigo?"
“Sylvana, pare…”
"Você devia ser grata, sua vadia idiota", sibilou ela. "Você vai poder ser útil pelo menos uma vez na sua vida miserável."
Sera puxou para longe, respirando com dificuldade.
Ela se virou para o pai, desesperada. "Por favor. Não faça isso. Vou me esforçar mais. Vou treinar. Vou..."
“Está feito”, disse Vale.
Duas palavras.
Duas palavras sem vida e sem esforço.
Sera não os entendeu a princípio. Ela piscou, olhando para a mesa de jantar como se a língua tivesse mudado. Ela não conseguia entender o que ele queria dizer.
Então ela percebeu.
Sua garganta fechou. Seu estômago embrulhou. Ela deu um passo para trás, batendo na cadeira. Seu coração batia tão forte que ela não conseguia ouvir mais nada.
"Não." A palavra saiu de seus lábios num sussurro. E então, mais alto. "Não, não. Por favor, não."
Ela deu um passo à frente, com as pernas tremendo. Sua voz falhou enquanto tentava falar.
"Você não pode fazer isso comigo."
Alpha Vale não piscou.
"O senhor não pode fazer isso comigo, pai. Por favor."
Ela estava chorando agora. Lágrimas escorriam pelo seu rosto enquanto sua voz se tornava mais frenética, seus braços se envolvendo como se ela conseguisse conter o pânico.
“Eu sou sua filha.”
Mesmo assim, ele não disse nada.
Você não pode deixar esse homem me tocar. Por favor. Por favor. Eu sou virgem. Eu nunca... Eu nem sei o que significa ser companheira de alguém. Eu não sei de nada. Eu não quero ser um espaço. Por favor, não me traia! Eu agiria direito! Eu prometo!!!! Minha menstruação só começou na semana passada. Nem contei para ninguém porque estava com medo. Achei que tinha algo errado comigo. Não estou pronta para isso. Não estou pronta para ser entregue.
Suas mãos tremiam. Sua respiração estava muito rápida.
"Vou melhorar", ela gritou. "Vou treinar mais. Vou aprender a me transformar. Vou lutar. Vou provar meu valor para você. Vou ficar forte, eu juro. Só não faça isso comigo."
Sua voz falhou sob o peso das lágrimas.
"Por favor."
Alpha Vale finalmente olhou para ela. E no momento em que seus olhares se encontraram, ela sentiu tudo dentro dela afundar.
Porque seu olhar não era confuso. Ou de dor. Ou relutante.
Foi nojo.
“Você não é minha filha”, ele disse.
A sala girou.
Sera cambaleou. Seus joelhos cederam e ela se agarrou à mesa para se firmar.
"O que?"
"Quer saber por que você nunca se transformou?", disse ele, aproximando-se dela. "Por que seu corpo nunca respondeu. Por que você é fraca. Por que, por mais que você treinasse, nunca era o suficiente?"
Sua voz mal saía.
"Por que?"
"Porque você não é meu."
Ela congelou.
"Você nunca foi minha", continuou ele, elevando a voz. "Sua mãe abriu as pernas para um humano. Um humano imundo, inútil e impotente. E você é o resultado."
Ela engasgou.
"Não…"
"Ela me implorou para ficar com você. Para te criar. Ela prometeu que ninguém jamais saberia. Mas toda vez que eu olhava para você, eu sabia."
Seus lábios tremeram. Seus dedos se curvaram nas palmas até que queimaram.
“Sinto muito”, ela sussurrou.
"Deveria ser", ele retrucou. "Você não passa de uma abominação mestiça. Você nasceu errado. Você não pertence a esta casa. Você não pertence a esta matilha. Você nunca pertenceu."
Sua madrasta, Mirena, levantou-se do assento. Ela tomou um gole de vinho, imperturbável.
"Ela nunca cheirou bem", disse ela simplesmente. "Humana demais. Suave demais. Eu sempre soube que ela era um erro da mãe."
"Você deveria ser grata", acrescentou Vale. "Por eu não ter te expulsado no dia em que ela morreu."
Os olhos de Sera se encheram de lágrimas novamente.
"Eu não sabia", ela sussurrou. "Ela nunca me contou."
"Ela morreu antes de poder", respondeu Mirena. "E agora você vai se tornar útil. Pelo menos uma vez."
"Por que não ela?", perguntou Sera de repente, virando-se para Sylvana. "Por que não sua filha? Por que eu?"
Sylvana levantou-se lentamente e caminhou em sua direção.
"Você quer mesmo saber?", disse ela, com a voz venenosa. "Porque eu valho alguma coisa. Porque sou poderosa. Porque os homens oferecem seus filhos e terras só para serem considerados para a minha mão."
Ela se aproximou, ficando cara a cara com Sera.
"E Lucien não pediu poder. Ele pediu um corpo. Quente. Silencioso. Fraco. Descartável."
O rosto de Sera se contorceu de horror.
"Você está me mandando para morrer."
“É esse o ponto”, disse Mirena friamente.
Sera se virou para seu pai.
"Eu vou embora", disse ela rapidamente. "Vou correr. Vou desaparecer. Nunca mais vou te incomodar. Só, por favor, não me entregue a ele."
“Você sai ao amanhecer”, ele respondeu.
Seus joelhos cederam. Ela caiu no chão. Suas mãos tremiam enquanto ela pressionava as palmas no piso frio.
"Eu imploro a você."
"Ninguém se importa", disse Thorne do outro lado da sala, de braços cruzados e sorrindo. "Você sempre foi uma boca que tínhamos que alimentar. Agora você finalmente vale alguma coisa."
“Estou com medo”, ela sussurrou.
"Deveria estar", disse Sylvana, agachando-se ao lado dela. "Você é só uma garota. E está prestes a aprender o que significa ser uma presa."
Sera gritou.
Alto. Quebrado. Gutural.
Ela pressionou o rosto contra o chão e gritou até a voz falhar. Seus punhos batiam no piso. Seu corpo tremia a cada soluço.
Ninguém se moveu.
Ninguém veio.
Eles a deixaram lá.
Desmoronou. Despedaçou-se. Sozinho.
E as últimas palavras que seu pai disse enquanto se afastava perfuraram sua espinha.
“Você não é minha filha.”
