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Capítulo 3: O Último Suspiro de Anna

Ele se lembrava dela em seus braços.

Não importa quantos anos se passaram, não importa quanto sangue ele derramou ou quantos inimigos ele enterrou, essa lembrança nunca o deixou.

Não estava apenas gravado em sua mente.

Ele morava lá.

Tinha dentes. Tinha garras. Rasgava-o cada vez que seus pensamentos ficavam em silêncio. Cada vez que a noite ficava muito silenciosa. Cada vez que alguém dizia o nome dela... ou alguém ousava amá-lo.

Aquele campo de batalha foi seu túmulo muito antes que seus inimigos percebessem.

Chovia também naquela noite.

Não como a tempestade fria e limpa em que ele se encontrava agora... mas densa e quente. Chuva misturada com cinzas, fuligem, com o grito de árvores em chamas e os uivos de lobos dilacerados no meio do turno. O céu estava negro, iluminado apenas pelas fogueiras que consumiam as bordas do acampamento.

E ela estava em seus braços.

Sangramento.

Convulsivante.

Morrendo.

Ele se lembrou da maneira como o corpo dela se contraía violentamente, da maneira como ela tentava falar e só tossia sangue, espirrando em seu pescoço, em sua bochecha, em seus lábios.

Ele se lembrou dos dedos dela agarrando fracamente seu casaco e depois deslizando para baixo como seda quando suas forças acabaram.

Ele se lembrava dos batimentos cardíacos dela.

Como gaguejou.

Como ficou mais lento.

Como isso… parou.

Mas a parte que nunca foi embora... a parte que o matava todas as vezes... era o jeito que ela olhava para ele em seu último suspiro.

Não com medo.

Não com dor.

Mas com amor.

Um amor tão profundo que o destruiu.

"Lucien", ela sussurrou, sua voz encharcada de sangue, tão suave que ele teve que se inclinar para ouvi-la através das chamas crepitantes e do estrondo do combate atrás deles.

Ele se lembrou do jeito como os lábios dela tremiam ao pronunciar seu nome, do jeito como ela o dizia como se fosse um segredo que só eles compartilhavam.

Ele pressionou as duas mãos contra o pescoço dela, tentando mantê-lo unido.

Estava escancarado. Rasgado. Profundo o suficiente para revelar tendões brancos e vislumbres de osso sob todo aquele vermelho quente e escorregadio. Ele apertou com tanta força que seus braços começaram a tremer.

Ele tentou segurar a vida dela apenas com as mãos.

Mas escapou-lhe por entre os dedos.

Quente e úmido.

Pegajoso.

Sem fim.

"Não, não, não... querida, olhe para mim", ele implorou, aconchegando-a contra o peito, embalando-a como se ela fosse uma criança ferida em vez de uma guerreira moribunda. "Fique comigo. Você está bem. Você está bem. Eu estou com você. Você está segura."

Os olhos dela tremeram.

Sangue também escorria do nariz dela agora.

Ele podia senti-la escorregando.

Ele sentiu isso.

Como ver a luz do sol morrer atrás de uma nuvem.

Ela murmurou algo novamente.

Tão fraco.

Ele se inclinou, com os ouvidos zumbindo e a boca seca.

"Desculpe…"

Lucien congelou.

Seu corpo inteiro travou.

Ela estava se desculpando.

Com a garganta aberta. Com minutos... segundos... de vida.

Ela não estava com medo por si mesma.

Ela sentiu pena dele.

"Não", ele sussurrou, balançando a cabeça, a voz embargada. "Não, não diga isso. Não diga isso, Anna."

Ele segurou o rosto dela entre as mãos, espalhou sangue por suas bochechas, lábios e queixo. Beijou sua têmpora. Sua testa. Sua boca. Sentiu gosto de ferro e fumaça.

"A ajuda está chegando", ele mentiu. "O Evans está chegando. O Diego e o Amos também. Estão todos a caminho. Aguenta só mais um pouquinho. Nós vamos te remendar, querida, eu juro. Você vai ficar bem. Por favor, não faça isso comigo. A gente tem que se casar, lembra? Seu vestido de noiva já está pronto."

"Você vai estar tão linda naquele dia, meu amor. Não me deixe, Anna. Você vai superar isso. Só espere um pouco mais. Por favor! Deusa da Lua, por favor, deixe-a ir embora! Eu imploro!"

Os olhos dela se suavizaram. Ela tentou sorrir.

E isso o destruiu.

Aquele sorrisinho. Aquela aceitação silenciosa e trágica.

Ele balançou a cabeça novamente, com mais força dessa vez, como se pudesse sacudir a morte dela como se fosse pó.

Não, me escute. Não vá embora. Não me deixe, porra. Você é meu companheiro. Você é meu futuro. Você disse que iríamos para o litoral, lembra? Você disse que queria ver o mar...

Os olhos dela começaram a ficar desfocados.

Seu corpo estremeceu uma vez.

Então… silêncio.

Silêncio puro e profano.

Lucien congelou.

Suas mãos pararam de pressionar. Sua respiração ficou presa na garganta.

Ele olhou fixamente para ela.

Sua boca ficou aberta.

Seus olhos, arregalados e vidrados, olhavam para o céu em chamas.

Nada se moveu.

Sem respiração.

Sem pulso.

Sem contração.

Simplesmente... sumiu.

"Anna?" Sua voz falhou.

Ele se inclinou e a sacudiu levemente.

“Ana?”

Nada.

Ele gritou.

Saiu do fundo dos seus pulmões. Do fundo da sua alma. Saiu dele como uma fera sendo exorcizada. Como uma maldição sendo quebrada. Como o amor sendo arrancado pela raiz.

Ele não sabia por quanto tempo gritou.

Ele não se importou.

Ele puxou o corpo dela com mais força, enterrou o rosto em seu pescoço. Ainda quente. Ainda macio. Mas vazio.

Ele a beijou novamente. Pressionou os lábios nos dela. Implorou.

"Eu te amo. Eu te amo. Volta pra mim. Por favor. Porra... por favor."

Nenhum deus lhe respondeu.

Nenhum milagre aconteceu.

Apenas o som da batalha ao longe. O cheiro da morte impregnado na lama.

Lucien ficou sentado ali com ela até que as chamas começaram a se apagar. Até que o sangue que encharcava suas calças, mãos e peito começou a esfriar. Até que os sons dos moribundos se transformaram em um silêncio sinistro.

Então ele a deitou delicadamente.

Como se ela pudesse quebrar.

Como se ela já não estivesse quebrada.

Ele a encarou por um longo tempo.

Então algo dentro dele mudou.

Ele se levantou lentamente.

Seus punhos estavam cerrados ao lado do corpo.

Ele não limpou o sangue.

Não consertou o casaco.

Não respirava.

Ele olhou através do campo.

Ele os viu.

Os que correram. Os que riram. Os que fizeram isso.

Eles ainda não o viram.

Não sabia o que estava por vir.

Ele começou a andar.

Não está funcionando.

Andando.

E quando chegou ao primeiro homem, ele não hesitou.

Ele o agarrou pelo queixo, levantou-o do chão e esmagou seu crânio contra o tronco de uma árvore até o osso se partir e a massa encefálica manchar a casca.

O próximo tentou gritar.

Lucien rasgou a própria garganta com as próprias mãos.

Então foi uma carnificina.

Ele não se moveu. Não usou uma lâmina. Só se enfureceu.

Seus punhos quebraram costelas.

Suas botas estilhaçaram espinhos.

Ele socou um homem até que seu rosto desabasse para dentro e continuou socando até muito depois de estar morto.

Ele quebrou pescoços com os cotovelos. Bateu crânios em pedras. Quebrou pernas. Deslocou braços.

Ele os caçava.

Um por um.

Sem piedade.

Sem pausa.

Nenhuma humanidade.

E quando o último tentou correr, chorando, implorando, dizendo que nem sequer a tocou, Lucien não falou nada.

Ele não piscou.

Ele simplesmente arrancou os olhos do homem com os polegares e o deixou gritando, cego, no chão.

Quando o sol começou a nascer, não havia sobreviventes.

Somente Lucien.

Coberto de sangue que não era dele.

Respirando pesadamente.

Olhando para as próprias mãos.

Ele caminhou de volta até ela.

Caiu de joelhos ao lado dela.

Ela estava com frio agora.

O sangue dela secava em listras pretas no pescoço dela.

Ele a pegou no colo.

Segurei-a novamente.

Não falou.

Não chorei.

Não piscou.

Ele a carregou para casa.

Não para um curandeiro.

Não para o bando.

Para sua árvore.

Aquele perto do lago.

Aquele embaixo do qual ela adorava sentar.

Aquele perto de quem ela disse que queria ser enterrada caso morresse jovem.

Ele cavou o buraco com as próprias mãos.

Ele deitou o corpo dela com a mesma delicadeza com que a deitou na cama.

Ele a beijou mais uma vez.

Então a enterraram.

Sozinho.

Ele ficou sentado ali, com a terra até os cotovelos, olhando fixamente para o monte, até o sol estar alto no céu.

Ele não comeu por três dias.

Não falei por cinco.

Não dormi por oito.

E quando ele retornou ao bando, eles mal o reconheceram.

Ele estava com mais frio.

Mais nítido.

Mais malvado.

Eles não sabiam porquê.

Ele nunca mais falou dela.

Mas por dentro?

Lá dentro nasceu o monstro.

“Ele disse que ela não era sua verdadeira companheira.” A voz ficou mais alta.

As narinas de Lucien se dilataram. Seus lábios se contraíram nos cantos, como se algo selvagem ameaçasse escapar por trás de seus dentes.

Ele não acreditou nisso. Ele não podia.

Ela era dele. Ela era.

O vínculo entre eles pode não ter vindo com marcas brilhantes ou fios costurados pelo destino, mas foi forjado no fogo. Dor. Lealdade. Escolha. Ela era dele porque ele a escolheu. E ela o escolheu. Todos os dias.

“O que diabos o destino sabia sobre o amor?

E então ele ouviu seu nome. Era fraco.

“Lucien!”

Ele piscou.

Não respirava.

“Lucien!”

Mais alto dessa vez. Mais nítido.

Seus olhos se abriram de repente quando sua mente foi trazida de volta à realidade.

Evans.

Ele estava inclinado para a frente no banco do motorista, uma mão ainda no volante, a outra pairando cautelosamente no ar, como se não tivesse certeza se deveria se livrar dele ou recuar.

"Alfa", Evans repetiu, dessa vez mais suavemente. "Você está bem?"

Lucien olhou para ele por um longo momento.

Então piscou uma vez.

"Estou bem"

Evans o observou. Um segundo inteiro. Depois outro. Então se recostou na cadeira com uma rigidez que sugeria que ele não acreditava... mas não estava disposto a insistir.

"Você não parecia bem", ele murmurou. "Parecia que estava em outro mundo."

Lucien se virou novamente para a janela manchada de chuva.

“Eu estava pensando”, murmurou Lucien.

“Você estava pensando nela.”

Silêncio.

Lucien não respondeu.

Ele não precisava.

Evans se remexeu na cadeira. Sua voz estava hesitante agora, baixa, como se estivesse pisando em minas terrestres no escuro. "Foi... o que aquele desgraçado disse? Sobre ela não ser sua única companheira de verdade?"

Lucien ficou imóvel.

Evans engoliu em seco. Tarde demais para desdizer. "Me conta", disse ele baixinho. "Ele estava mentindo?"

Lucien falou entre dentes enquanto olhava para Evan com olhos que matariam.

Ela era tudo. Minha calma. Minha clareza. Ela sabia o que dizer quando eu nem sabia o que sentia. Ela conseguia me tocar e silenciar a violência no meu sangue. Ela conseguia me olhar como se eu não fosse quem todos diziam que eu era. Como se eu valesse a pena ser salva.

Uma pausa. Tão longa que doeu.

“Ela foi a única coisa que me fez acreditar que ainda havia algo em mim que não fosse um maldito monstro.”

Sua voz baixou.

Ele virou a cabeça.

"Então nem me pergunte se ela era minha verdadeira companheira."

Evans não falou. Apenas ouviu. Ótimo. Ele sabia mais. Engoliu em seco e assentiu. Sem discussão. Sem perguntas. Apenas silêncio enquanto tentava mudar de assunto.

"Esqueci de te contar. Alfa Vale enviou seu mensageiro de matilha. Ele disse que vem amanhã... para pagar sua dívida."

Ele passou a língua lentamente pela parte interna da bochecha, flexionando o maxilar.

"Já era hora", murmurou ele, com a voz monótona, fria e cortante. "Ele já está enrolando há tempo demais."

"Está tudo bem", acrescentou ele, dessa vez mais baixo. Sua voz havia perdido toda a emoção. Desinteressada. Inexpressiva. "Estaremos prontos."

Evans assentiu brevemente, ligou a seta e os levou para a estrada principal. Lucien inclinou a cabeça em direção à janela e murmurou:

“Espero que ele pague sua dívida integralmente, senão eu acabaria com ele”

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