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01

DEAN

3 anos antes.

Quatro.

Quatro vezes eu quase fiquei viúvo.

Descanso a cabeça entre as pernas, negando-me o direito de gritar e quebrar alguma coisa antes de entrar em casa e lidar com Vallie. Ela não sabe que sua mãe acabou de sofrer a segunda parada cardíaca em menos de um ano, a pobre garota acha que Lily está num resort para perder peso e finalmente fazer a bariátrica e eu preciso manter o teatro.

Mentiras.

Eu venho contando tantas mentiras para essa garota nos últimos seis anos que não consigo mais olhar em seus olhos sem sentir nojo de mim. Ela nem percebe.

— Droga!

Bato meu punho contra o volante.

— Dean? — ergo o olhar para a mão batendo contra o vidro da porta quando vejo o cabelo cacheado.

Franzo o cenho para a mulher.

— Kiara?

— Oi.

— O que está fazendo aqui? Eu disse que você poderia tirar essas semanas de folga. — ela me encara com suspeita, olhando de um lado para o outro na rua escura e pouco movimentada, então pede para que eu abra a porta do passageiro e entra no carro.

Me movo no assento de forma desconfortável. Não quero conversar.

— Eu não queria deixar Vallie sozinha, a pobre menina já tem que passar as férias aqui, isolada e sem qualquer diversão. — explica.

Meus ombros caem.

Ela tem razão sobre isso, mas eu disse para mim mesmo que seria temporário. Apenas o tempo necessário para Lily voltar a ficar confortável morando na cidade. Isso foi há um ano.

— Fique no quarto de hóspedes. — falo, mas então eu pauso e a encaro. O peso nas minhas costas ganhando uma nova dimensão quando meus olhos encontram os dela. Kiara tem quase a minha idade, porém parece mais jovem e amigável do que eu jamais fui. Nunca fomos próximos, nossos diálogos se resumem a saúde da minha mulher e as observações que ela faz sobre o estado mental de Vallie.— Obrigado. — sussurro.

Ela assente e aperta os lábios da forma que sempre faz quando tem algo a dizer, mas não sabe se deveria dizer. De qualquer forma, jogo a cabeça para trás no assento e peço um minuto.

— Apenas um, então você poderá falar o quanto sou uma pessoa ruim.

Escuto ela se mover do meu lado,mas fica em silêncio.

Um.

Dois.

Três minutos se passam, e nenhum de nós dois fala. É frustrante para caralho.

Preciso brigar com alguém, e eu estava contando com ela para fazer isso. Porra. Porra.Porra!!!

— Você não é uma pessoa ruim.

Silêncio.

Eu bufo.

— Mas?

Sempre tem um "mas".

— É condescente com a doença da sua esposa.

Meu maxilar aperta.

— Lily não está doente. — praticamente rosno, lembrando das palavras do médico. Por que estão todos me culpando? Foda-se isso.

— Obesidade é uma doença,Dean. Ela mal consegue se locomover sozinha agora, o que vai acontecer daqui a dois, três anos? Você sabe disso, me contratou porque sabe que Lily precisa de ajuda especializada.

Fecho os olhos e respiro fundo. Kiara deve sentir mudança em mim, porque escuto sua mão testando a maçaneta.

— Ela está se esforçando, apenas lhe dê um pouco mais de tempo. Você sabe que ela consegue.

Ela não fala nada.

Da minha posição, posso ver quando a luz do quarto de Vallie é acesa e as cortinas da janela abertas.

— Vallie deve ter notado seu carro parado, é melhor entrarmos. — Kiara diz, não esperando por uma resposta antes de descer do carro e correr para a casa. Eu fico mais alguns minutos, repassando a conversa com Lily, com o médico, com o pai da Vallie.

Ligo o carro e decido que preciso de mais algum tempo.

Nossa casa é estrategicamente isolada, não tendo nenhum vizinho em menos de dez quilômetros. Lily quis assim, ela disse que preferia praticar seus exercícios sem os olhos curiosos das outras pessoas.

Na verdade, ela só tem vergonha de si mesma.

Meus dedos apertam contra o volante, meu pé empurra contra o acelerador e a raiva aumenta dentro de mim. Vai ver, meus pais tinham razão e eu só piorei a coisas para Llily, quero dizer, ela estava péssima antes, mas conseguia andar e interagir com pessoas. Agora?

Não.

Balanço a cabeça e afasto os pensamentos negativos. Sou um bom homem, tenho dado o meu melhor e continuarei dando.

Sou bom.

Bom.

Uma boa pessoa.

Você sabe a verdade.

Minha consciência sussurra.

Nãoooo!

Aquele acidente não foi minha culpa.

Continuo repetindo o pensamento até encontrar um bar. O lugar é pequeno, apenas algumas mesas, uma sinuca no canto do lado direito, bem perto de onde fica o banheiro masculino, e um balcão. Eu não fico muito tempo parado, apenas uma rápida olhada me deixa saber que esse lugar é dominado por motoqueiros e todos eles parecem se conhecer.

— Brincando longe de casa, não? — O cara do outro lado do balcão pergunta, ele sorri quando não respondo de volta e percebo que eu provavelmente deveria ir embora agora.

Só que eu realmente preciso daquela briga.

Olho o homem de cima a baixo e dou de ombros. Ele ergue uma sobrancelha.

— Moro perto. — falo, depois aponto para a garrafa de uísque na mesa próxima. — Quero um pouco daquilo, por favor.

Ele assobia.

— O quê?

— Você disse por favor, tem certeza que mora perto?

— Sim, agora traga aquela bebida ou me arrume algo mais forte.

— Doug.

— O quê?

— Meu nome é Doug, e eu sei exatamente do que você precisa.

Doug desaparece na porta atrás do balcão por um minuto e volta com uma garrafa suspeita. O líquido é incolor e tem cheiro forte.

— Cachaça brasileira, a melhor que existe.

— Boa o suficiente para me derrubar?

Ele bufa, puxa um corpo e derrama a bebida dentro.

— Faça isso rápido, menino educado.

Eu bebo o primeiro copo sem perguntas, o segundo por interesse, o terceiro pelo sabor, e o quarto porque não consigo mais parar.

Quando meus olhos abrem, descubro que a noite terminou e um novo dia iniciou. Doug rir de mim quando corro para o banheiro e coloco tudo o que consumi ontem, para fora. Ele foi legal me deixando ficar, mas acabei dormindo no chão e minhas costas estão me matando. Agradeço e prometo voltar, conversamos tanto durante a bebedeira que ele sabe tudo sobre minha situação com Lily, a situação real, não aquela que falo para todos quando perguntam.

De qualquer forma, tento ficar apresentável quando paro na porta de casa. As risadas preenchem o ambiente e param quando as duas mulheres me flagram parado no meio do corredor.

Vallie olha para mim com se eu um fantasma.

Kiara está fazendo careta e torcendo o nariz.

O cheiro do alcool.

Aperto os olhos e passo a mão pelo cabelo.

Droga.

— Feliz aniversário. — Vallie diz, tão baixo que só escuto pela pouca distância entre nós.

— Como?

— Fiz um bolo para você. — ela diz e passa por mim com uma expressão imperturbável.

— O que aconteceu?

Kiara balança a cabeça e me olha decepcionada, então aponta para o bolo em cima da bancada da cozinha e ergue os lábios em um sorriso triste.

— Foi seu aniversário ontem, Dean.

Oh.

Eu pisco algumas vezes para o meu nome escrito no bolo, a letra "e" está um pouco inclinada e borrada, mas ainda é possível entender.

Vallie fez esse bolo para comemorar o meu aniversário, porém eu não voltei para a casa.

Uma vez, ela me perguntou a data do meu aniversário e quando respondi que não comemorava, Vallie insistiu até que confessei. Ela lembrou.

Ela fez um bolo para mim.

Um bolo de chocolate e morango.

Estou pronto para ir até seu quarto e pedir desculpa, mas passo antes no meu e tomo um banho para tirar o cheiro da bebida. Quando bato na sua porta algum tempo depois, meu telefone vibra e atendo a ligação do hospital antes que ela abra a porta. Lily acordou.

Deixo a conversa com minha enteada para depois e vou até o hospital com pressa.

A noite, Vallie descobre sobre a mãe e me acusa de ser o causador. Permito que ela grite, me xingue e até bata no meu peito.

Kiara precisou ir embora resolver um assunto pessoal, o que faz da minha enteada e eu os únicos na casa. Após longos minutos de discussão, ela cede e me abraça, chorando feito criança e me declarando seu inimigo.

— Te odeio tanto, Dean.

— Não, querida. Você é boa demais para odiar alguém.

Ela funga, agarrando minha blusa.

— Então eu te amo. Amo tanto que dói.

Fico em silêncio, sem saber como responder a isso.

Beijo sua cabeça e a aperto mais forte contra meu corpo.

Pobre Vallie.

— Seja como for, nós vamos resolver.

— Promete?

— Prometo.

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