Capítulo 5
O sol mal havia tocado os telhados quando Evelyn já descia as escadas vestida com um conjunto sóbrio em tons escuros, cabelo curto preso em um coque elegante, maquiagem discreta, e o perfume leve que Conrad dizia lembrar o jardim de sua juventude.
Estava pronta para mais um dia na Ashford Holdings. Não por obrigação, mas por escolha. Trabalhar na empresa da família do falecido marido era, para ela, uma forma silenciosa de gratidão. A escolha de continuar na mansão ao invés de morar sozinha com Lena vinha do carinho verdadeiro de Conrad, e Evelyn sempre fez questão de retribuir com dignidade.
Na mesa do café da manhã, tudo estava no lugar como de costume. A toalha branca impecável, o cheiro de pão fresco, as frutas dispostas com perfeição. Evelyn sentava-se ereta, Lena ao seu lado, distraída com o celular, e Conrad já folheava o jornal.
Logo o motorista entrou pela lateral anunciando:
— Senhorita Lena, o carro está pronto.
Ela se levantou apressada, deu um beijo no avô, na avó e outro na mãe.
— Tchau, mãe. Tchau, vovô, vovó. Até depois.
— Boa aula, querida. - Respondeu Evelyn com um sorriso suave.
Assim que a menina saiu, Vivienne ajeitou-se melhor na cadeira, pegou sua xícara de porcelana fina e anunciou com a voz doce demais:
— Hoje vou sair para fazer compras com uma amiga. Ela chegou de viagem e está morrendo de saudade.
Conrad sorriu sem tirar os olhos do jornal.
— Ótimo. Assim você se diverte um pouco.
A esposa riu com leve escárnio antes de bebericar o café.
— Ficar em casa com certas pessoas, como moscas zumbindo pela sala, é repugnante.
Evelyn não reagiu.
Manteve a postura. Fingiu que não ouviu, porque era mais seguro assim.
Conrad, no entanto, ergueu os olhos para a esposa e lançou um olhar firme. Um aviso silencioso para evitar confusão tão cedo.
Evelyn aproveitou a deixa, olhou para o relógio e se levantou num salto contido:
— O seu remédio. Quase me esqueço.
Saiu da sala apressada em direção ao armário do hall, onde guardava a caixinha cuidadosamente organizada. No tempo em que esteve na casa, ela aprendeu os horários de Conrad melhor que qualquer um.
Vivienne acompanhou o movimento com os olhos e, assim que Evelyn desapareceu, sussurou pro marido:
— Inclusive, vou levar esses remédios ao laboratório. Vai que são venenos.
Conrad baixou o jornal.
— Vivienne! Chega.
Ela estremeceu, mas não recuou.
— Não! Você sabe que eu nunca gostei dessa mulher. Fica fingindo essa santidade, mas está claro que essa coisa de ajudar os pobres e gastar dinheiro da empresa é só fachada. Aposto que já nos roubou e ninguém percebeu. Que tipo de mulher vive assim, grudada em um homem morto?
Conrad suspirou, cansado.
— Você deveria parar de ser tão pessimista sobre ela. Por mais que a odeie, nunca encontrou motivo algum pra acusá-la. E lembre-se... ela ainda sofre pelo desaparecimento do filho. E você aí, jogando acusações levianas por birra. Isso é feio, Vivienne.
A mais velha bateu a mão na mesa, com raiva e dor acumuladas.
— Quando você entender que eu estou certa o tempo todo, vai ver que o meu nojo é justificado. Ela matou nosso filho, Conrad. Foi ela!
Nesse momento, Evelyn voltou com um copo d’água e a cápsula na mão. Seu rosto não mostrava abalo.
— Seu remédio. A pressão não pode oscilar.
Ele aceitou com carinho.
— Está acabando. - Comentou ela: — Posso passar na farmácia no almoço e comprar mais.
— Não precisa, querida. - Ele respondeu: — A empregada pode fazer isso.
Mas Evelyn sorriu leve.
— Cuidar do senhor é essencial. É a única parte do dia que me dá certeza de estar fazendo algo certo.
Ele sorriu para ela com olhos gratos. Vivienne se levantou em silêncio e saiu da sala pisando forte.
Evelyn esperou ele terminar a água, ajudou a ajeitar o paletó, pegou a bolsa e ambos saíram da mansão.
O motorista já os aguardava.
Do lado de fora, o céu já estava limpo e o dia anunciava ser longo. Evelyn sabia disso.
E também sabia que todo gesto, toda fala, todo passo... era observado.
Mas ela não pretendia recuar.
Nem agora. Nem nunca.
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A manhã na Ashford Holdings começava como sempre, mas havia algo mais silencioso no ar.
A fachada imponente do edifício, de linhas clássicas, dominava o centro empresarial da cidade. Fundada há mais de 50 anos, a empresa familiar era referência em investimentos imobiliários de luxo, energia limpa e ações internacionais, comandada por gerações de Ashfords que prezavam pelo nome mais do que por afeto. Nos últimos anos, Evelyn ocupava um cargo administrativo estratégico, centralizando decisões de médio porte e representando a empresa em eventos beneficentes, enquanto Conrad ainda era o nome forte nos conselhos executivos.
Evelyn caminhava pelo saguão com passos firmes. Seus saltos ressoavam no mármore claro, cabelos presos num coque alto, vestido de alfaiataria escuro que contrastava com a leveza do perfume discreto. Ela cumprimentava os funcionários com acenos polidos e um sorriso contido. Estava acostumada a ser respeitada, mesmo entre os que murmuravam pelas costas.
Na sala de reuniões, Conrad já a aguardava com um bule de café fresco e os relatórios da nova parceria com investidores em energia solar no exterior. Discutiram números, metas, prazos, enquanto do lado de fora, o mundo seguia ignorando o que havia por trás da fachada elegante daquela família.
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Na outra ponta da cidade, Adrian Blake estacionava diante de um pequeno prédio discreto. O endereço dado por Vivienne levava a um apartamento simples, alugado com a ajuda de uma organização que apoiava ex-detentas injustiçadas. Ele subiu os degraus com passos contidos. Tinha sido treinado para escutar, observar e encontrar a verdade por trás das versões.
Celeste abriu a porta com um olhar desconfiado, mas não hostil. Seus cabelos loiros estavam presos num coque desleixado, o rosto pálido e marcado, mas seus olhos carregavam firmeza. Vestia uma blusa simples de mangas compridas, jeans puído e pantufas baratas. A simplicidade contrastava com a força silenciosa do olhar.
— Adrian Blake. Investigador. - Ele disse estendendo a mão: — Vivienne Ashford me pediu que viesse.
Ela hesitou antes de apertar. Quando o fez, seus olhos não vacilaram. Ele era extremamente bonito.
— Entra.
Ele se sentou à mesa da sala enquanto ela servia café coado numa garrafa térmica. A cortina deixava passar a luz acinzentada da manhã. A casa tinha poucos móveis, quase todos doados. Mas estava limpa. Cuidadosa.
— Então... você quer saber sobre o assassinato de Alexander.
— Quero saber tudo. - Disse ele com seriedade: — Desde o começo.
Celeste suspirou. Seus dedos tremiam levemente enquanto segurava a xícara.
— Ele era meu amor. Meu primeiro amor. Antes mesmo de ser marido de Evelyn, nos conhecemos quando ele me deu um lápis de cor. Eu não sabia que ele era herdeiro de nada. Só sabia que ele era doce, gentil. E eu achava que finalmente a vida tava sorrindo pra mim. Estudava, trabalhava à noite, sonhava com um futuro com ele.
— E Evelyn? - Perguntou Adrien.
— Evelyn foi um furacão. Descobriu que ele era rico e não descansou até tirar ele de mim. Se aproximou do pai dele, mostrou-se perfeita, e o casamento aconteceu. Eu fui trabalhar fora, continuei a vida. Até que eu voltei um mês depois à cidade e o reencontrei casado com ela, por imposição do pai. E tudo voltou. O amor, os sonhos, a sensação de que a gente tinha uma segunda chance.
Ela respirou fundo, e seus olhos marejaram, mas ela não chorou.
— E naquela época descobri que tava grávida. E quando contei pra ele, Alexander chorou. Disse que ia pedir o divórcio. Ele culpava Evelyn por um filho anterior que ela disse ter sido sequestrado, mas ele sabia. Sabia que ela nunca quis ter filhos. Não queria estragar o corpo, a vida, o luxo. Ele me disse isso com todas as letras.
— Evelyn sabia do relacionamento?
— Descobriu antes. Perdoou da primeira vez. Fingiu ser compreensiva. Mas uma noite, ela chegou mais cedo em casa. Eu tava com ele no escritório. Ele me abraçava e eu ainda tremia por ter contado sobre a gravidez. Ele falava que íamos criar nosso bebê juntos. Que ia dar um basta. Foi quando ela apareceu.
A xícara trincou nas mãos de Celeste. Ela pousou-a sobre a mesa e continuou:
— Ela ficou em silêncio. Só entrou. Ele ficou entre nós e disse: "Chega, Evelyn. Eu vou embora com a Celeste. Eu vou criar meu filho com ela". E foi nesse momento que tudo desmoronou. Ela abaixou, pegou a arma que ele sempre deixava escondida na gaveta da escrivaninha... e apontou pra mim. Eu congelei. Ele entrou na frente. Tentou acalmá-la. Ela tremia, chorava, gritava. E então... atirou.
Adrian engoliu seco.
— E você?
— Eu fiquei sem chão. Sangue por todo lado. Ele caiu nos meus braços. Ela gritou, desesperada, dizendo que ia perder tudo, tudo. Disse que ninguém ia acreditar em mim. Que eu era só a amante pobre. Então... jogou a arma pra mim.
— E você pegou.
Ela assentiu, com raiva de si mesma.
— Peguei. Instintivamente. E foi aí que a empregada entrou. Ela viu a cena. Só sei que Evelyn se fez de vítima. Quebrou coisas, fingiu pânico, e em minutos, eu era a assassina.
Adrian anotava, atento.
— E as digitais dela? Não havia? E as suas? A balística não deveria ter revelado que não havia pólvora na sua mão?
Celeste sorriu com amargura.
— Evelyn sempre amou usar luvas. Achava que era chique. Queria parecer nobre. Tinha dezenas. Depois da morte dele, nunca mais usou. Talvez pra se livrar do hábito que a entregaria. Ela deve ter pago para o perito, então sim, no laudo, apareceu que havia pólvora na minha mão.
Ela passou a mão pelos braços como se afastasse o frio.
— Eu fui julgada, condenada. Perdi tudo. Fui parar na cadeia, grávida. E mesmo lá dentro, ela me visitou. Sim. Foi até lá pra me dizer que, se eu não cedesse a guarda da minha filha, faria da minha vida um inferno. Que poderia manipular o sistema, os guardas, tudo. Que Lena ia crescer acreditando que eu era uma assassina e isso faria ela não perder a vida boa.
Adrian ficou em silêncio.
Não por falta do que dizer, mas porque sabia que aquelas palavras exigiam silêncio.
— E fez. Manteve Lena longe de mim. Criou ela dentro daquela mansão. E eu... eu cumpri minha pena. Mas nunca deixei de sonhar com justiça.
— E por que a Senhora Vivienne acredita em você?
Celeste respirou fundo, e dessa vez, um pequeno sorriso surgiu.
— Porque ela nunca engoliu a Evelyn. Sempre viu além. Sempre soube que ela era falsa, manipuladora, materialista. Ela me disse isso. Disse que sabe quando alguém presta ou não. Que eu sou nobre... mesmo sendo pobre. E que Evelyn sempre teve tudo, menos caráter.
Adrian fechou o caderno.
— Mas vamos precisar provar. E eu vou te ajudar. Não só porque foi a Vivienne quem pediu. Mas porque eu acredito em você, Celeste.
Ela o olhou com surpresa. E por um instante, um leve rubor surgiu em seu rosto.
— Obrigada... você não sabe o quanto isso significa pra mim.
Ele sorriu, sincero.
— Vou até o fim nisso. Pode confiar.
Ela assentiu.
Pela primeira vez em muitos anos, sentia que talvez, apenas talvez não estivesse mais sozinha.
