Biblioteca
Português
Capítulos
Configurações

Capítulo 1

O som metálico do portão se abrindo arranhou o silêncio da manhã cinzenta. A brisa úmida tocou o rosto de Celeste pela primeira vez em quatorze anos sem grades entre ela e o céu.

A carcereira não a olhava com pena nem com raiva. Apenas entregou a sacola com seus pertences; um colar gasto, um bilhete amarelado e um casaco antigo que já não lhe servia.

— Tenta ter uma boa vida, Celeste. - Disse a mulher, num tom seco, mas sincero.

Celeste olhou por um momento. Não respondeu. Apenas acenou com a cabeça, como quem aceita um acordo silencioso.

Estava magra.

O tipo de magreza que não vem de dietas ou vaidade, mas de uma fome contida de tempo e justiça. A pele, antes dourada, parecia feita de papel frio.

Mas os olhos… os olhos não perderam nada. Ainda ardiam. Não com ódio, mas com um foco que assustava quem parasse tempo demais para encará-los.

Do lado de fora, ninguém a esperava.

Caminhou até o ponto de ônibus com a certeza de que nunca mais dependeria de ninguém que não soubesse usá-la como uma arma.

Nos dias seguintes, passou pelas burocracias de praxe. Novo número, endereço provisório, documentos reemitidos. Dormiu em um quarto de pensionato que cheirava a mofo e desespero antigo. Até que, depois de três semanas e quatro entrevistas, conseguiu um emprego.

Clube St. Delacroix, setor de serviços internos. Um lugar de luxo discreto, com clientes que não gostavam de ser vistos, mas queriam ser reconhecidos. Era exatamente o tipo de ambiente onde segredos e oportunidades se encontravam no mesmo corredor.

Foi ali, ao organizar bandejas de prata e toalhas engomadas, que recebeu a visita que esperava há anos. Uma mulher de cabelos grisalhos, roupas caras e olhos endurecidos.

Vivienne Ashford.

— Celeste. - Disse, sem pedir licença.

— Sra. Ashford. - Respondeu ela, num tom baixo, com o tipo de respeito que se ensina a quem já conheceu a prisão.

A velha senhora analisou a ex-presidiária como quem avalia uma pintura rachada.

— Eu sempre disse que quando saísse, eu viria. Você voltar agora, justo agora, me dá uma imensa alegria.

Celeste a encarou.

— Eu voltei porque minha história ainda não terminou. E porque a sua nora quem deveria estar no lugar onde eu estive.

Vivienne se aproximou.

— Evelyn nunca me convenceu. Sempre teve esse jeito de santa ferida… mas eu sei reconhecer uma impostora. E você sempre foi verdadeira. Mesmo nos seus silêncios.- Declarou a mais velha.

— Verdadeira não basta, senhora. Eu preciso de aliados. E sei que você, assim como eu, ainda quer justiça.

Vivienne sorriu pela primeira vez.

— Não confunda justiça com oportunidade, querida. Mas eu também estou cansada de perder. Vamos até uma sala privada, eu já aluguei para nós duas.

A sala privada do clube tinha paredes forradas de madeira escura e poltronas de couro onde os ruídos pareciam morrer antes de ecoar. Vivienne sentou-se com a postura ereta de quem jamais se permitia curvar, nem sob o luto. Celeste entrou com passos lentos, os ombros ligeiramente tensos, mas o olhar intacto.

Vivienne a observava como se estivesse diante de uma peça rara resgatada de um naufrágio.

— Sente-se. Aqui não tem ninguém para te vigiar, minha querida. - Disse.

Celeste se sentou com cuidado, como se ainda não tivesse certeza de que aquilo era real.

— Foram quatorze anos, Sra. Ashford. Quatorze anos sendo chamada de assassina. Quatorze anos sem o rosto da minha filha. Sem ninguém que me chamasse de mãe.

— E agora você quer o quê? Justiça? - Perguntou Vivienne.

— Não só isso. Quero a verdade. Quero recuperar o que me foi tirado. Quero olhar para a Lena e… - A voz dela fraquejou, mas não quebrou: — … e que ela veja quem eu sou de verdade. Não a imagem que Evelyn construiu em cima da minha ruína. Quero que todos saibam que quem matou seu filho, foi Evelyn. Eu só fui burra demais em acreditar nela.

Vivienne entrelaçou os dedos sobre o colo, imóvel e disse:

— Ela sempre teve esse dom, não é? O de parecer perfeita. A nora ideal. Cuidava da casa, da criança, da empresa, dos nossos eventos… mas tudo tinha um brilho falso. Nunca me enganou.

— Ela nunca me perdoou por ser escolhida do Alexander. - Celeste olhou fixamente para um ponto invisível à sua frente. — Alexander me amava. Nós tínhamos planos. Um dia antes de morrer, ele me procurou. Disse que queria se divorciar. Que Evelyn não era a mulher para ele. Que eu era! Por que ela não deixou ele livre?

Vivienne respirou fundo, sem surpresa:

— Eu vi o modo como ela se agarrava ao sobrenome Ashford como se fosse uma coroa. Nunca chorou de verdade pelo meu filho. E depois, com o tempo, começou a gastar como se o dinheiro fosse eterno e o nome também.

Celeste apertou as mãos no colo:

— Evelyn me destruiu. Disse que me protegeria. E quando me dei conta, eu estava algemada. Ela contou à polícia que me viu com a arma nas mãos. Eu lembro... Ela entrou naquela sala e tentou me matar, mesmo sabendo que eu estava grávida! Foi ele quem levou a bala por mim. Eu fiquei em choque. Mas ela… ela sabia o que estava fazendo.

— Meu marido a defende, até hoje. - Vivienne disse com desprezo, os olhos duros: — diz que você é a verdadeira assassina e que aquela mulher é muito boa demais pra esse mundo. Que é o mínimo que pode fazer pela mulher que meu filho supostamente amava. Mas eu nunca vi dor nos olhos dela. Só oportunidade.

— E mesmo assim, ninguém me ouviu. Porque eu era a filha adotada. A que veio da pobreza. A que ‘devia gratidão’. - Disse Celeste emocionada.

Vivienne se levantou, andou até o bar da sala e serviu dois dedos de conhaque em taças pequenas.

— Eu conheço pessoas, Celeste. Sempre conheci. E sei quando elas prestam ou não. Você prestava. Você ainda presta.

Celeste aceitou a taça com um aceno tímido:

— O problema é que agora a verdade não basta. Evelyn tem o nome, o dinheiro, o apoio da filha que eu pari, o amor que era meu...

— ... e a empresa que deveria estar nas suas mãos. Você pra mim é a verdadeira senhora Ashford, sempre foi. - Completou Vivienne, num sussurro cortante.

As duas brindaram sem levantar os olhos.

Um acordo não declarado, mas firme.

Vivienne então se aproximou, tocou o ombro de Celeste com uma firmeza quase maternal.

— Você vai reerguer seu nome. E eu vou te ajudar. Mas prometa que vai manter a cabeça no lugar. Tem um rapaz que vai te ajudar a provar sua inocência.

— Eu prometo. Mas… eu não vou mentir, Sra. Ashford. Eu quero tudo de volta. Até o que nunca me deixaram ter, que é minha filha. - Confessou Celeste.

Vivienne sorriu. Pela primeira vez, sincera.

— Ótimo. Porque eu também quero ver essa coroa cair da cabeça da Evelyn. E será você quem vai tirá-la.

Vivienne caminhou em silêncio até a porta do clube. Antes de atravessá-la, voltou-se para Celeste.

— Você tem meu apoio, Celeste. Incondicionalmente.

A loira assentiu com os olhos marejados.

Não disse nada.

Não confiava mais nas palavras, mas naquele momento, sentiu algo raro: amparo.

E mais do que isso, justiça.

A mãe do homem que ela amava acreditava nela.

Isso bastava para firmar os pés no chão de novo.

Vivienne entrou em seu carro sem olhar para trás.

O motorista, silencioso, seguiu o caminho conhecido até a mansão dos Ashford.

Baixe o aplicativo agora para receber a recompensa
Digitalize o código QR para baixar o aplicativo Hinovel.