

Capítulo 1
O ponto de vista de Isadora
Eu estava folheando o jornal quando ouvi o estalo da torradeira, avisando que o pão já estava pronto. Fui até a cozinha, preparei o café da manhã e coloquei tudo na mesa. Inspirei fundo o aroma delicioso do café recém-passado, peguei o jornal e comecei a ler. O que vi me gelou por dentro:
Polícia encontra dois novos corpos possivelmente ligados à máfia.
A máfia.
Por algum motivo que ninguém entende, eles se apegaram a essa cidade pacata. Apavoraram todos os moradores, e até hoje ninguém sabe quem são ou como são. São impiedosos, frios, matam qualquer um que cruze seu caminho.
Depois do café, lavei a louça,não suporto voltar para um apartamento sujo, e fui para o quarto me arrumar para o trabalho. Já eram dez da manhã.
Trabalho como garçonete num restaurante chamado Brisa da Lua. O nome me lembra uma canção de ninar francesa que minha mãe cantava sempre que eu tinha medo.
Sinto tanta falta dela.
Minha mãe era a luz no fim do túnel, a luz da minha vida. Quando ela morreu, levou consigo uma parte de mim. Meu mundo ficou completamente escuro. Quem ainda tem pai e mãe não faz ideia da sorte que tem... deveriam valorizar cada segundo.
Eu, infelizmente, nunca tive o luxo de ter minha mãe por perto. E muito menos meu pai. Ele ainda está vivo, mas pra mim está morto. Fugi de casa aos quinze anos. Quando minha mãe faleceu, algo nele mudou. Afogava as mágoas na bebida, me negligenciava, me maltratava. Me obrigava a trabalhar e, se eu voltasse sem dinheiro, me deixava trancada do lado de fora. Nunca vou esquecer as noites frias de dezembro, dormindo no capacho, chorando, implorando pra entrar... em vão. Eu tinha apenas nove anos.
Anos se passaram suportando seus abusos. Até que, depois do que aconteceu naquela noite — ou do que ele tentou fazer — eu soube que não podia mais ficar ali.
Lembro que estava exausta de tanto limpar a casa. Voltei pro meu quarto acabada. Na manhã seguinte, o som abafado de vozes me acordou. Encostei o ouvido na porta e o que ouvi me persegue até hoje.
Cena em retrospectiva
Eu distinguia duas vozes além da do meu pai.
— Então... onde ela tá? — perguntou um homem.
— Cala a boca. Vai acordar ela — sussurrou outro.
— Espera... a gente vai fazer isso enquanto ela dorme? — insistiu o primeiro.
— Não, pode acordar. A gente amarra ela na cama — disse meu pai. Eu reconheceria aquela voz em qualquer lugar.
— Eu fico com a vez primeiro. Sempre quis tirar a virgindade de alguém.
— E por que diabos você ia primeiro?
— Porque tô pagando mais pra ele.
— Carson, te dou mais um real — falou pro meu pai.
— Por que vocês não vão juntos? Um na frente e outro atrás. Fechado? — respondeu meu pai.
— Negócio fechado.
— Por mim, tudo bem.
Senti meus joelhos fraquejarem. Meu pai ia deixar que eles me estuprassem. Eu sabia que ia ser destruída — física e emocionalmente.
A conversa cessou. Meu corpo inteiro estava em alerta. Calcei meus chinelos, beijei o colar da minha mãe — o mesmo que uso até hoje —, abri a janela e pulei. Ouvi meu pai gritar. Eu sabia que ele ficaria furioso por ter perdido seu plano imundo.
Fim do flashback
Nunca mais o vi. Fiquei num orfanato até os dezoito, quando finalmente tive acesso ao testamento da minha mãe. Descobri que ela tinha deixado um apartamento no meu nome. É onde moro agora.
Não faço ideia do que aconteceu com ele. Talvez seja o mesmo canalha de sempre, talvez já tenha morrido de cirrose. Prefiro não pensar.
Só sei que ele me afastou dos homens. Ele ainda assombra meus sonhos, me dá pesadelos. Não desejo isso nem pro meu pior inimigo.
Saindo de casa, o frio da rua me fez apertar o casaco contra o corpo, cruzando os braços pra me aquecer.
Ignorei olhares e assobios de homens podres que infestam as calçadas.
— Ei, gata, traz essa bundinha aqui pra gente se divertir.
— Ih, mina, tu é mais grossa que mingau de aveia — e riram.
Baixei a cabeça e apressei o passo, querendo me afastar dessas desculpas patéticas de homens.
Qual é o sentido disso? Não é agradável, não é charmoso, não é saudável. É nojento e gratuito. Sério, a chance de uma mulher se interessar por você depois de ouvir essas baboseiras é zero... a não ser que seja pra dar um tapa ou um chute onde o sol não bate. Aí sim eu acharia engraçado.
...
— Isadora, finalmente! — minha colega Jéssica me cumprimentou assim que tirei o casaco e pendurei no cabide da sala dos funcionários.
— Oi, Jéssica. Tudo bem?
— E esse atraso? — arqueou a sobrancelha.
— Quase não dormi. Meu vizinho chato resolveu animar o colega de quarto ontem, e as paredes aqui são finas demais — respondi, amarrando o avental.
— Oooooh... ouviu algo suculento? — disse, sorrindo.
— Você é nojenta — soltei uma risada.
— E você é puritana. Devia ter aproveitado o momento, Isa. Isso foi o mais perto que você já chegou de ter um pau molhado — falou, em tom de deboche.
Revirei os olhos.
— Algum dia você vai parar de insultar minha vida sexual?
— Não posso insultar o que não existe — riu com aquela risada de hiena moribunda que me fez rir também.
Ela olhou pra sala vazia e suspirou teatralmente.
— Droga, justo hoje que não tem plateia pras minhas respostas perfeitas... — fingiu enxugar lágrimas.
— Você é muito dramática — comentei, rindo.
— E parece que você já tem clientes. Espera... o que eles tão fazendo num restaurante se já tão com o cardápio cheio? Mmm, vem pra mamãe — disse, mordendo o lábio.
— Tô indo — informei, já de saída.
— Boa sorte pra voltar com a calcinha seca! — ela gritou, e eu apenas lancei um olhar de "você não presta" antes de fechar a porta.
Ajustei o uniforme e caminhei até a mesa. Por que Roberto tinha que fazer as saias das garçonetes tão curtas? Mal cobrem a bunda.
Fiquei diante de três homens de terno. E, pra minha tristeza, tive que concordar com a Jéssica: eles eram lindos. E ricos, sem dúvida. O jeito, a postura... exalavam poder e frieza. Um ar dominante. Instintivamente, recuei um passo.
— Oi, linda — disse o da esquerda, piscando e mordendo o lábio inferior. Parecia mais novo que os outros dois.
— Cala a boca, Davi — o da direita lançou-lhe um olhar gelado.
— Que foi? Ela é bonita... — murmurou.
— Posso anotar o pedido? — perguntei, tentando cortar a tensão.
Notei que Davi perdeu a ousadia no mesmo instante em que o homem do meio o fitou. Ele não precisou nem olhar pra mim pra me intimidar. Sua presença já era suficiente pra me arrepiar.
E eu estaria mentindo se dissesse que ele não era o homem mais bonito que já vi. Traços marcantes, másculos. Cabelo desalinhado, mandíbula forte, barba por fazer, pele morena, ombros largos. Deus tenha piedade.
Sacudi a cabeça, afastando esses pensamentos.
— O que vão pedir?
Foi então que ele, o homem intimidador, levantou os olhos pra mim. E meu coração disparou.
Seus olhos.

