Capítulo 2 — A Casa Acorda (Com Ou Sem Você)
O cheiro veio antes de tudo: café passado na hora, alguma coisa doce no forno, e um leve toque de água do mar no ar. Por um instante, pensei que tivesse morrido e ido para o paraíso — até a porta da geladeira bater e me lembrar que estava muito viva e com olheiras nível continental.
— Booom dia, princesa perdida no tempo! — disse uma voz empolgada demais para o horário.
Sky estava na cozinha, de pé descalço, short de surf, camiseta furadinha e um coque bagunçado no topo da cabeça. Uma tatuagem em forma de onda no braço esquerdo parecia se mover com ela.
— Que horas são? — resmunguei, ainda com a cara amassada.
— Quase oito! Hora perfeita pra ver a luz bater no mar como se o universo tivesse feito isso só pra você.
Eu pisquei devagar.
— Preciso de café primeiro.
Ela riu e me entregou uma caneca laranja com a palavra “YES.” estampada em letras garrafais. Tomei um gole e quase suspirei. Céus, aquilo era bom.
— Você dorme bem com fuso? Ou prefere virar zumbi durante os primeiros dias?
— Depende do quão emocionalmente abalada estou, — respondi sem pensar, depois dei um sorriso torto. — Mas obrigada por perguntar.
Sky sentou-se no balcão da cozinha com a naturalidade de quem nasceu para viver em casas com cheiro de pão quente e plantas penduradas nas janelas.
— Ok, emocionalmente abalada. Quer um pão de banana? Fiz ontem à noite. É quase um ritual de boas-vindas aqui na Casa 43.
— A casa tem número e nome?
— Claro! Você acha que uma casa que abriga três almas perdidas e uma golden chamada Beyoncé ia ser só “a casa”? Aqui a gente dá nome pra tudo. Inclusive pra fase da vida. E você, Sofia? Já nomeou a sua?
Mordi o pão de banana — absurdamente bom, úmido e com gosto de acolhimento.
— Ainda tô tentando entender em que planeta eu tô, Sky. Dar nome à fase parece um pouco além da minha capacidade no momento.
Ela não pareceu ofendida. Pelo contrário. Abriu um sorriso imenso, com os olhos iluminados de quem já viu muitos começos bagunçados virarem histórias lindas.
— Tá tudo bem. A gente começa devagar. Hoje, por exemplo, a gente só vai ao mercado da esquina. Prometo não te jogar num mar gelado... ainda.
Antes que eu respondesse, Beyoncé entrou correndo na cozinha com o focinho coberto de espuma — de sabão, aparentemente.
— Não... — Sky levantou num pulo. — Você invadiu o banheiro de novo? Beyoncé, você não é uma sereia, garota! Vem cá!
A golden retriever correu até mim e deitou nos meus pés, como se soubesse que precisava conquistar meu coração de forma definitiva. Missão cumprida.
— Ela sempre toma banho sozinha? — perguntei, acariciando as orelhas macias da cadela.
— Não, ela invade os banhos dos outros. É uma arte. Leo nunca mais foi o mesmo depois do dia em que ela abriu a porta enquanto ele estava cantando Bon Jovi.
— O Leo… ele costuma interagir mais, ou é assim mesmo? — perguntei, lembrando do silêncio gelado do dia anterior.
— A criatura misteriosa do andar de cima, é assim. Engenheiro naval. Antissocial profissional. Mas um coração bom, quando resolve tirar a cara da tela do computador.
— E vocês dois se conhecem há muito tempo?
Sky deu de ombros, pegando uma banana da fruteira.
— Uns três anos. A gente dividia um flat minúsculo aqui em Muizenberg mesmo, depois viemos parar aqui. A casa estava pra alugar, era colorida demais pra ignorar. E aqui estamos. A vida vai jogando a gente onde precisa, né?
Olhei em volta: os azulejos coloridos da cozinha, as plantas com nomes escritos em etiquetas (“Esther” era uma jiboia, “Roberta” uma hortelã). Tudo naquela casa parecia sorrir, mesmo que meio torto.
— Você trabalha com o quê, Sky?
— Dou aula de surf, quando as marés deixam. E sou professora de yoga também. Também ajudo numa ONG que cuida de jovens em situação de vulnerabilidade. E você, o que fazia antes do ex-babaca decidir mudar seus planos?
Sorri, ainda com um restinho de mágoa entre os dentes.
— Publicitária. Em Madri. Trabalhava numa agência criativa. Cuidava de clientes grandes. Mas... sei lá. Me sentia pequena demais lá dentro.
— Bem-vinda ao clube dos que resolveram se encontrar longe de casa. — Sky levantou a caneca. — Brindemos ao caos.
Eu brindei de leve. Porque, no fundo, eu sabia que o caos já era íntimo meu fazia tempo.
O mercado da esquina ficava numa ruazinha com lojinhas de artesanato, café com mesas na calçada e um vendedor de flores que me sorriu com todos os dentes do mundo. Sky parecia conhecer metade da vizinhança.
— Essa é Sofia, minha nova roomie maravilhosa! — ela dizia, puxando conversa com a senhora da padaria, o dono da quitanda, a menina da banca de revistas.
Sorrir tanto em uma manhã parecia um esporte olímpico, e eu estava fora de forma.
— Você sempre foi assim? — perguntei quando saímos com as sacolas cheias de frutas e pão.
— Assim como?
— Brilhando tanto que parece que o sol tem ciúmes.
Ela gargalhou alto, jogando a cabeça pra trás.
— Meu Deus, eu amei isso. Posso colocar na bio do Instagram?
Dei risada também, pela primeira vez em muitos dias.
— Sério, você não tem dias ruins?
— Claro que tenho. Mas prefiro não deixar eles dirigirem a minha vida. Eles podem sentar no banco de trás, no máximo.
Sky era um furacão ensolarado. E eu ainda era só uma poeira tentando se reorganizar.
Mas, por algum motivo, estar ali com ela, no meio de uma rua colorida da Cidade do Cabo, fez com que meu peito doesse menos. Como se a vida, mesmo ainda bagunçada, tivesse voltado a respirar.
Quando chegamos na Casa 43, Leo estava na sala, com um notebook no colo e fones enormes cobrindo as orelhas. Um gato preto dormia ao lado dele — não sabíamos de onde vinha o gato, mas ele aparecia todos os dias às dez da manhã e ia embora às cinco. Beyoncé ignorava solenemente sua presença.
— Bom dia Leo — falei baixo demais.
— Quer ver uma mágica? — Sky pegou uma fatia do pão de banana e acenou. — Leo! Tem mais disso aqui!
Leo tirou um dos fones e olhou em nossa direção. Um aceno mínimo, um "obrigado" murmurando, e ele já estava de volta pro mundo dos cálculos e números que só ele entendia.
— Oi, Sofia — ele disse, sem levantar os olhos. — Bem-vinda de novo.
— Obrigada.
E era isso. Sem perguntas, sem julgamentos. Só uma recepção simples, como se eu já fizesse parte de algo.
Naquela noite, sentada na varanda com uma taça de vinho branco que Sky dividiu comigo, olhei para o céu da África e tentei lembrar como era viver sem dor no peito. Não doía tanto ali. Talvez o fuso estivesse embaralhando minha percepção... ou talvez fosse mesmo essa casa.
A Casa 43 tinha cheiro de pão quente, risadas altas e uma golden retriever que parecia entender a alma da gente.
Era só o começo. Mas, por algum motivo, me parecia um começo certo.
