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O Baile de Caridade

O homem alto e moreno, do outro lado do salão, abre um sorriso estonteante e essa é a senha para que flashes sejam disparados de pelo menos uma dúzia de câmeras diferentes.

Ele não faz a menor questão, no entanto, de esconder todo o desconforto por trás de toda a encenação. A forma como coloca as mãos no bolso do paletó ou como olha em volta, entediado, poderiam passar despercebidas a um observador comum.

Mas não para mim.

O dono do sorriso e olhar enigmático é Jace Kellan, magnata das finanças que controla boa parte do que é relevante na cidade de Nova York. E muitas coisas também em outras partes do mundo, algumas delas as quais permanecem em segredo para a maioria das pessoas. 

Passei a última semana mergulhada até o último fio de cabelo na vida do Sr Kellan. Fiz pesquisas desde fontes sérias, como o Times e a Forbes, até os mais obscuros sites de fofocas. Agora, olhando para o seu belo rosto atraente e para os músculos que sustentam o terno de corte impecável, a única conclusão que consigo chegar a respeito é: esse cara cheira a problemas. Roubos, escândalos, corrupção e todos os tipos de segredos perigosos.

Duas mulheres cercam o empresário, ambas louras e muito bonitas. Elas flertam descaradamente com as câmeras, desfrutando a chance de exibirem-se aos repórteres. São Maribel e Rose Armstrong. A mais velha é a esposa de Theodore Armstrong, o vice presidente da megacorporação que leva o nome do sócio, a Kellan Corporation. A mais jovem, Rose, é a sua filha. Pendurada no braço esquerdo de Kellan, Rose reluz como um belo alfinete dourado preso à lapela do seu paletó. A garota de ouro dos tabloides, capa de todas as revistas da semana desde que Kellan e ela anunciaram seu noivado publicamente.

O bronzeado invejável  do empresário é a prova viva do quanto ele e a noiva aproveitaram bem o verão a bordo de um veleiro nas Ilhas Gregas. Já o semblante carrancudo mostra que, se pudesse escolher, provavelmente ele não teria saído de lá.

Vejo Kellan afrouxar a gravata borboleta ao redor do pescoço e exalar um suspiro profundo, antes de apanhar mais um copo de uísque sobre uma bandeja e dispensar o garçom com um aceno breve e mau humorado. Ele fixa o seu olhar em um ponto distante do salão repleto de convidados ilustres, imerso em pensamentos privados, e antes que sua atenção se volte para o copo novamente, nossos olhares se cruzam por um momento. Uma ínfima fração de segundos. Tempo suficiente para eu sentir um alvoroço na boca do estômago e ser atingida em cheio pelas palavras que li em um artigo a seu respeito:  "Determinado e impassível nos negócios. Frio e distante nos seus relacionamentos." Esse cara é mesmo um enigma. Com toda essa aparência, frieza seria a última qualidade que eu  atribuiria a ele. 

Quem sabe a única pessoa capaz de atingir a alma de Kellan tenha sido mesmo a sua mãe, eu penso, dando um gole em um irresistível cocktail de frutas, mais uma das incontáveis delícias do buffet esplendoroso de tio Fredderick. Eu giro o guarda chuvinha cor de rosa no copo e, enquanto bebo, aproveito para observar ainda mais a espécime empresário de sucesso implacável interagir em um dos seus vários habitats naturais.  A mãe de Kellan, Elizabeth, de quem quase nada se sabe a respeito, faleceu no ano anterior. A foto o filho ao lado do caixão da mãe tinha se tornado viral. O semblante derrotado de Kellan havia me obrigado a fechar o site com a mesma sensação de uma espinha atravessada na garganta.

Esse breve recorte na história da sua vida não muda, no entanto, a opinião geral que eu tenho sobre ele. Um homem calculista e determinado, habituado a vencer não importa quais armas tenha que usar. Para alguém tão poderoso quanto Kellan não existem barreiras e a noção de certo e errado muitas vezes pode acabar assumindo tons de cinza.

Com orgulho, eu me parabenizo por ter feito bem o meu dever de casa: reunir uma lista de informações valiosas sobre o Sr Jace Kellan. Lista essa que inclui tudo o que já foi colocado a seu favor, a exemplo da auto confiança e tenacidade para os negócios, como também aquilo que já foi dito contra ele. A citar o péssimo temperamento. E o seu ego colossal.

Eu aguardo passivamente que Rose e sua mãe se desprendam dele, flutuando para longe em uma névoa de superficialidade. Então eu me aproximo.

- Sr Kellan, esta é minha sobrinha, Olivia Goode. Olivia, este é o homem que eu gostaria que conhecesse.

Sem mais nem menos, o meu tio Fredderik pede licença e se afasta pelo salão lotado, bradando ordens em seu dialeto particular, uma mistura de inglês e irlandês, para a equipe do buffet. O sangue forte e imperioso herdado pela sua descendência faz com que Fredderik pareça sempre furioso. Mas a realidade é que ele é um amorzinho.

Preciso lembrar de agradecer a ele mais tarde, uma vez que estou aqui exclusivamente por seu intermédio. Meu tio é um dos organizadores de eventos mais respeitados da cidade. E, não menos importante, faz parte da equipe de confiança do Sr Kellan.

O qual, aliás, não parece nem um pouco feliz em me conhecer agora.

- Serei breve, Srta Goode - Kellan começa, ajeitando os punhos da camisa branca reluzente. - Seu tio é um bom sujeito. Não gosto de muitas pessoas, mas eu gosto dele. Eu o respeito - o olhar que ele lança para mim é de puro desagrado, como se a minha simples presença o insultasse. - O mesmo não acontece com a sua... corja. Esse bando de aves de rapina.

O sangue sobe para o meu rosto e eu mordo as bochechas por dentro, evitando dar a resposta que ele merece. Finalmente entendo por que as pessoas costumam se ver acuadas por ele. E o termo Predador de Terno? Bem, cai como uma luva. Mesmo assim, sou uma profissional e me recuso a permitir que ele me intimide. Ainda que sua boca carnuda esteja voltada para baixo em sinal de desaprovação.

Penso em uma dezena de boas razões para convencê-lo a mudar de opinião, mas todas elas caem por terra enquanto eu encaro o queixo erguido do Sr Kellan e o seu olhar gelado. A cada segundo que passa eu me sinto mais inclinada a mandá-lo tomar no cu em vez de puxar o seu saco.

Quando um rapaz ruivo, de aparência jovem, se aproxima de nós, portando uma câmera fotográfica, eu respiro aliviada.

Ele sorri hesitante para Kellan e eu.

Eu devolvo o sorriso. O empresário, no entanto, fulmina o pobre garoto com outro dos seus olhares desprovidos de humanidade.

- O senhor tem um minuto? É para a revista...

A mandíbula de Kellan se contrai e o jovem dá um passo para trás como se tivesse sido tocado pelo diabo. Ele tenta dizer mais alguma coisa, mas Kellan não está mais olhando. Que babaca. Com os ombros voltados para o baixo, o garoto se afasta pelo salão. Então os olhos de Kellan pousam sobre o meu rosto e um sorriso lento e malvado se insinua em seus lábios.

- Onde estávamos mesmo? Ah sim, você quer uma entrevista.

A atitude dele me deixa boquiaberta. Que idiota pretensioso! Luto contra o desejo interno de socar a cara dele. Quem o desgraçado pensa que é? Todo arrogante e superior, tratando as pessoas como se fossem poeira sob os seus sapatos oxford? Já tive que lidar com tipos bem desagradáveis na minha vida, mas Jace Kellan está chegando rápido demais ao topo da lista.

- Desculpe por ter tomado o seu tempo, Sr Kellan. Foi um prazer - sorrio, azeda. - Bom, na verdade não. Mas quem se importa, não é?

Dou meia volta, preenchida pela satisfação de deixá-lo plantado ali com sua cara de otário. E mesmo quando a ficha vai caindo, de que talvez eu tenha sepultado minha curta carreira por uma vingança idiota, ainda acho que pode ter valido a pena. Que outra oportunidade eu teria na vida de mandar se foder um homem como esse?

Mantenha a calma, Olivia. Daqui a uma hora você estará em casa, de banho tomado e com suas pantufas confortáveis, escrevendo a melhor matéria que qualquer jornalista com certeza já escreveu sobre esse demônio, intitulada em cinco palavras: UM CRETINO FILHO DA PUTA.

Penso nisso e já me sinto melhor, como se um peso tivesse sido movido dos meus ombros.

- Espere.

A sensação de leveza desaparece tão rápido que é como se nunca tivesse existido. Adeus, pantufas. Olá, de novo, demônio.

Eu me volto para Kellan e devolvo seu olhar firme na mesma intensidade. Lembro de um jogo que meu irmão e eu jogávamos na infância, onde quem piscasse primeiro era o perdedor.

Kellan não pisca. Eu também não. Ele me observa por um momento que parece interminável, avaliando as emoções no meu rosto.

- Eu não dei a minha resposta.

- Você não precisa - rebato. - Eu já dei a minha.

Ele me encara, um pouco surpreso, mas sua expressão suaviza antes que volte a falar novamente.

- Entendo. Talvez devêssemos dançar, então.

- O que disse?

Tenho quase certeza que as duas taças de champanhe estão me fazendo ouvir coisas.

- Você ouviu. Talvez devêssemos dançar e deixar essa conversa para depois.

Eu fico ali parada como uma estátua, me sentindo uma tonta. Pela primeira vez na minha vida, não sei como devo agir ou o que dizer.

O que esse homem quer, afinal?

Me enlouquecer?

De maneira oportuna, a música de baile muda para um som mais atual, que eu logo reconheço. Thinking Out Loud, do Ed Sheeran. Emma, minha melhor amiga, tem uma queda pelo pop e folk, e estou familiarizada com a voz do cantor.

A melodia mais contemporânea faz com que pelo menos outros sete casais entrem na pista de dança, e o lugar que antes parecia um palco montado para a imprensa, agora fica muito mais parecido com um baile de verdade.

- Vamos dançar ou ficar parados aqui a noite toda, desperdiçando o meu tempo? - ele pergunta, a voz rouca em tom de provocação.

Com algum esforço, recupero o equilíbrio e balanço a cabeça rapidamente, aceitando o convite. Talvez não seja assim tão tarde para recuperar a razão. Vou fazer essa noite dar certo. Não posso deixar a arrogância de Kellan me fazer esquecer do meu objetivo final.

Não perca os olhos do prêmio. Não foi isso o que meu chefe, Ron Howard, me disse, há cinco anos, no meu primeiro dia na revista?

Kellan então se aproxima e passa um dos braços ao redor da minha cintura, em um aperto firme. Eu não hesito e respondo a altura, espalmando as mãos contra o seu torso, por cima da camisa branca que contrasta tão bem com a pele. Assim tão próximos, sou quase capaz de acreditar que existe um coração batendo por baixo de toda aquela roupa de grife.

Fecho os olhos e me deixo conduzir por ele , levada pela batida cadenciada e envolvente da música. Kellan certamente é um dançarino habilidoso, até melhor do que eu. Tento me lembrar de ter lido algo sobre isso em todas as pesquisas que fiz, mas nada assim me vem a mente. Então concluo tratar-se de mais um dos seus mistérios.

Ao abrir os olhos, me deparo com os seus. Quentes, escuros e intensos. A visão me faz engolir em seco e eu não consigo ficar imune ao que vejo lá dentro. Há uma vulnerabilidade improvável dentro de todo aquele auto controle. Isso mexe comigo.

Nós dançamos juntos, mergulhados no ritmo doce e sensual da canção. A pressão das suas mãos em volta da minha cintura se torna mais forte e eu ofego. Ele acaricia de leve o local, em um pedido silencioso de desculpas. Então o solta, me toma pela mão e me faz rodopiar de um jeito fluido antes que fiquemos frente a frente outra vez.

Caramba.

- Você dança muito bem - balbucio, impressionada. - Como aprendeu?

- É um talento natural, Srta Goode. Nem tudo na vida precisa ser estudado ou aprendido.

- Algumas coisas, sim. Faz aulas de dança, Sr Kellan?

Ele envolve a minha mão com a sua. Minha outra mão vai parar na sua nuca e eu sinto o cabelo escuro resvalar entre os meus dedos. Macios, muito macios.

- Você fala demais, Srta Goode.

- Já me disseram isso.

- Eu aposto que sim - arqueia as sobrancelhas. - Onde aprendeu isso?

Sorrio para ele, de canto. Ha ha ha.

- Está me entrevistando, Sr Kellan?

Tenho o vislumbre de um sorriso, um belo, atraente e sensual sorriso, mas ele me pega desprevenida, outra vez, ao segurar minha mão e me empurrar para longe antes de me puxar novamente para ele. Eu me choco contra o seu peito, a respiração ofegante.

Kellan me encara, satisfeito com a minha reação, e me envolve novamente com os braços, roçando a lateral do rosto bem de leve na minha. Sua barba rala provoca cócegas na região e outras sensações bem mais alarmantes da cintura para baixo.

- Provando um pouco do próprio veneno?

Eu respiro fundo e estremeço, me perguntando se ainda estamos falando sobre a entrevista. Sem nada para responder, me aconchego ainda mais contra o seu corpo esguio e musculoso.

Inspiro suavemente. O cheiro marcante de um perfume caro. E outro que vai além dele, ainda muito melhor.

Mas tão logo ecoam as últimas notas da bela canção, sou arrancada daquele clima mágico e surreal, como a Cinderela que assiste o relógio bater a meia noite. Kellan se afasta, mantendo apenas uma das mãos ao redor da minha cintura. Ele olha ao nosso entorno brevemente e não parece nem um pouco satisfeito. Eu mesma fico constrangida ao notar que repórteres posicionaram-se discretamente em pontos estratégicos para um bom ângulo.

Só então me dou conta: é o evento de caridade mais importante do ano e estou dançando com uma das figuras mais proeminentes da cidade. De repente, deixei de ser a concorrência e me tornei a notícia.

Kellan deixa a mão escorregar da minha cintura. Seu olhar esfria e ele expira, profundamente. Tenho certeza de que o monstro cruel e egocêntrico de alguns minutos atrás irá retornar, com força total, e me preparo para revidar no mesmo nível.

- Está certo. Você tem a sua entrevista - sentencia para minha total surpresa, como um juiz cravando o martelo. - No Palace. Esteja lá amanhã às 8h. E, Srta Goode?

Eu pisco algumas vezes, aturdida.

- Sim?

- Em hipótese alguma, se atrase.

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