Capítulo 02 - Destinos entrelaçados (Parte 2)
JÉSSICA
"Será que realmente sou culpada por ter sido traída? De jeito nenhum, ele é quem não tem caráter! Céus, ainda estou com meu ego ferido!", pensei.
— Talvez eu deva cometer a loucura de sair com o primeiro homem que aparecer na minha frente! — Murmurei, buscando uma explicação sensata para a traição que sofri. A mistura de raiva, decepção e vulnerabilidade era compreensível diante da dor causada pela traição e pelo rompimento do relacionamento.
Enquanto refletia sobre esses acontecimentos, percebia como as crenças e valores que absorvi da convivência com minha tia e seu marido islâmico influenciaram minhas escolhas e perspectivas. A ideia de pureza e fidelidade antes do casamento era algo profundamente enraizado em mim, mas agora, eu me via confrontando essas ideias em meio à realidade de um mundo mais complexo e diverso.
A traição que experimentei foi um choque de realidade, uma ruptura dolorosa com as expectativas que eu havia internalizado. Este momento de questionamento e auto descoberta estava me levando a repensar não apenas meu relacionamento passado, mas também as normas e valores que regiam minha vida e minhas escolhas. Era um processo doloroso, mas também transformador, que me empurrava para uma jornada de autoconhecimento e redefinição de minhas próprias convicções e desejos.
— Posso te pagar uma bebida? — Perguntou um senhor, com uma idade bastante avançada. Em sua boca faltavam alguns dentes, e sua expressão era marcada por rugas profundas. Uma careta imensa se formou no meu rosto ao me lembrar do que havia acabado de falar.
"Ah, que azar. De jeito nenhum irei sair com esse velho!" Pensei. A ironia do momento não passou despercebida enquanto refletia sobre as próprias palavras e as circunstâncias que me levaram a tais pensamentos.
— Ah não, obrigada. Já bebi o suficiente hoje! — Arqueei a sobrancelha, tentando disfarçar o desconforto. O idoso me analisou dos pés à cabeça e, após um período significativo, resolveu se afastar, desistindo de sua abordagem.
Um toque meloso e irritante havia iniciado no meu celular. Encarei a tela, forçando os olhos para enxergar melhor, e notei o nome da minha amiga, Elena, escrito nela.
— Jéssy, onde você está? — Ela perguntou assim que atendi a ligação.
— Estou no barzinho perto de onde trabalhamos! — Suspirei, sentindo-me exausta da situação.
— Eu não acredito que você estragou o encontro que consegui pra você. O rapaz é de uma ótima família! — Elena vociferou, e sua expressão desapontada era palpável através da ligação. Sua frustração era compreensível, considerando o esforço que ela havia feito para arranjar o encontro.
— Eu não tenho culpa. Não dá para ficar com alguém que nem sabe conversar direito. Na verdade, a culpa disso é toda sua, não ouse inventar de arranjar outro encontro pra mim! — Minhas pálpebras começaram a se mexer sozinhas, indicando que meu nível de estresse estava altíssimo. — Parece que ficar sozinha já virou parte do meu cotidiano, e eu prefiro continuar assim. Nem sei se consigo confiar em algum homem de novo. Estou indo para casa, assim que chegar eu te ligo! — Encerrei a chamada, levantei-me da banqueta onde estava sentada, peguei minha bolsa e bebi o restante do líquido caramelo que havia no fundo do copo. A sensação de desilusão e desamparo era avassaladora, mas eu precisava lidar com ela antes de tomar qualquer decisão precipitada.
Então, me deparei com a tela do celular, onde uma mensagem automática alertava: "Seu aluguel vencerá amanhã." - Um longo suspiro escapou dos meus lábios enquanto revirava os olhos ao término da leitura. Era apenas mais uma cobrança para se juntar à minha crescente coleção. Havia deixado a casa dos meus pais há cerca de quatro anos, após uma terrível discussão com meu pai.
Nos últimos dias, estava enfrentando consideráveis dificuldades para quitar minhas dívidas. Embora pudesse pedir ajuda aos meus pais, meu orgulho me impedia de me humilhar diante deles, especialmente sabendo que também enfrentavam suas próprias dificuldades diárias.
Eu caminhava em direção à saída, com os olhos praticamente grudados na mensagem que havia recebido, quando, de forma repentina, acabei trombando com algo ou alguém. Fui arremessada com força, voando uma longa distância. O celular que segurava voou para longe e pude ouvir o estrondo que ele fez ao se chocar contra o solo.
Um líquido gelado molhou minha roupa, deixando-a grudada ao corpo. Uma dor latejante surgiu em minha testa, onde a bati na quina da mesa.
— Será que tem como ficar pior? — Resmunguei, enquanto massageava a área dolorida da testa.
Olhei ao redor, tentando entender o que tinha acontecido. Minha visão estava turva por um momento, mas logo percebi que havia colidido com uma pessoa. Aproveitei que já estava caída e estiquei minhas costas sobre o piso gelado. Fechei meus olhos por um instante e contei mentalmente de um a dez, em uma tentativa frustrante de conseguir me recompor.
Eu estava consideravelmente embriagada, contudo, já não sabia se era por conta da bebida ou da pancada que havia acabado de receber. Para toda direção que olhava, tudo parecia estar girando. Meus olhos encontraram um rosto, parado acima de mim. Era um homem. Um homem muito bonito, por sinal. O corte dos seus cabelos estava em dia. Ele me encarava e gesticulava algo com a mão, tentando fazer com que eu olhasse para ele.
Virei meu rosto para o lado, queria apenas encontrar meu celular que havia perdido e sequer tinha terminado de pagar as prestações. O homem, por sua vez, permaneceu imóvel, com sua face atrativa bem acima da minha. Ele estendeu sua mão, sinalizando ajuda para me levantar. Depois de ponderar por alguns segundos, acabei aceitando sua oferta. Ele me puxou junto ao seu peito, e pude sentir a fragrância de uma colônia magnífica invadindo minhas narinas.
Seus cabelos e olhos negros eram extremamente marcantes, fazendo com que eu me perdesse na intensidade do seu olhar. Sua barba acrescentava um charme incomum. Vestindo um suéter preto que contrastava com seus olhos negros, ele estava fatalmente atraente. Seu hálito fresco de menta parecia chamar pelos meus lábios, e naquele momento, eu só queria poder beijá-lo. Em pouco tempo, pude notar seus traços distintos com mais detalhes, desde seus olhos expressivos até a mandíbula marcante e o sorriso carismático que adornava seus lábios.
Sua presença atlética e postura confiante contribuíam ainda mais para o charme que o envolvia. Era como se ele irradiasse um magnetismo irresistível, deixando-me hipnotizada por sua aura sedutora. Naquele instante, algo dentro de mim alertava para a possibilidade de que aquele encontro não era mera coincidência.
Uma sensação estranha de familiaridade começava a emergir, como se houvesse algo mais profundo ligando-nos além do acaso de nos encontrarmos naquele momento e lugar. Era como se nossos destinos estivessem entrelaçados de alguma forma, ainda que eu não conseguisse compreender completamente o que isso significava naquele momento de surpresa e encanto.
— Você está bem? Se machucou? — O homem perguntou ao me ajudar a levantar.
— Acho que sim! — Passei a mão sobre um galo enorme que tinha surgido na minha testa. — Ai! — Dei um pequeno grito de dor.
— Sente-se aqui, vou buscar gelo para colocar nisso! — Ele puxou uma cadeira e me sentei.
O homem se afastou e meus olhos percorreram cada centímetro do piso, procurando pelo celular que havia escapado da minha mão. Minha mente só conseguia pensar nas malditas parcelas que ainda faltavam para pagar.
— Está procurando por isso? — Ele retornou e balançou o celular na minha frente, e um enorme alívio me dominou.
— Ufa, pensei que alguém tivesse pego ele! — Suspirei aliviada. — Ainda nem terminei de pagar! — Peguei o aparelho e percebi que a tela estava danificada, não conseguindo ver mais nada além de uma imagem branca misturada com algumas cores. — Ah, não! — Lamentei desanimada.
— Quebrou? — Ele entregou-me um saquinho com gelo e retirou o aparelho da minha mão para verificar. — Pressione o gelo contra a testa! — Ordenou, enquanto observava atentamente o celular.
— Parece que sim. Vou ter que comprar outro. — Peguei o aparelho de volta.
— O que faz aqui sozinha? É tarde para uma moça andar por aí sem companhia! — Ele arqueou a sobrancelha.
— Bom, eu estava em um encontro, mas acabei afastando o rapaz. Então, já pode imaginar o motivo de eu estar sozinha! — Estreitei os olhos.
— Essa pessoa é bastante insensata pelo visto! Eu não deixaria uma moça tão bonita quanto você na mão, nem que você me obrigasse! — Sorriu de canto e sentou-se ao meu lado.
— Não precisa exagerar para me fazer sentir melhor! — Sorri discretamente, estava bastante acanhada. — A culpa foi toda minha. Eu queria me livrar dele. De qualquer forma, a parte chata é que ele acabou escutando o recado que deixei para minha amiga, pedindo para ela me tirar da enrascada que me colocou, pois, foi ela quem arrumou toda essa dor de cabeça para mim! Sabe o que é mais engraçado? Eu estava tomando uma dose de uísque com os últimos trocados que tinha na minha bolsa e falei pra mim mesma que cometeria a loucura de sair com o primeiro homem que conversasse comigo. Consegue imaginar quem foi esse homem? — Perguntei e ele engoliu em seco.
— Fui eu? — Balbuciou, com os olhos arregalados.
— Se fosse você, eu sairia no lucro. Foi aquele senhor sem dentes, bem ali! — Apontei na direção do homem que havia oferecido bebida antes.
— Huh, até que ele é bonitinho! — Segurou-se para não rir.
— Eu fui traída, mantive um relacionamento de dez anos com um homem que eu jurava que era o amor da minha vida. Hoje completaríamos onze anos juntos. Ele foi meu primeiro amor, nunca imaginei que ele teria coragem de me trair! — Limpei as lágrimas que caíram dos meus olhos com o dorso da mão.
— Sinto muito por isso. Já passei por algo parecido, posso dizer que a dor parece incurável, no entanto, vai chegar o momento em que você vai se curar. O processo é lento, mas acredite que você vai conseguir! E você sabe dizer por qual motivo ele fez isso? — Notava-se que ele era bastante empático.
— Por não ter cedido a ele momentos íntimos. Ele disse que sou conservadora demais! — Suspirei, sentindo um misto de frustração e indignação.
— Vocês estavam juntos há quantos anos? — Arregalou os olhos, demonstrando surpresa diante da revelação.
— Dez anos. — grunhi, com um peso evidente na voz, consciente do tempo investido na relação.
— Caramba, estou tentando processar essa informação! — Coçou a cabeça, mostrando perplexidade diante da situação inusitada.
— Sei que é espantoso, mas sempre deixei claro para ele que só desfrutaríamos momentos assim depois do casamento. O cretino sequer me pediu para casar com ele. Talvez eu possa vender a minha virgindade e ganhar uma grana com isso, já que ouvi falar que isso é muito valorizado. Meu Deus, que loucura! Estou falando sobre a minha intimidade com um homem que eu nem conheço! — Revirei os olhos, refletindo sobre as possibilidades absurdas que passavam pela minha mente.
— É culpa do álcool, sabia? Mas sugiro que não faça algo que possa se arrepender depois. Você parece prezar bastante pela sua integridade, não jogue isso fora, poucas mulheres têm essa áurea! — Ele me encarou, sua expressão era séria e ponderada.
Eu refleti sobre suas palavras, percebendo a sabedoria por trás delas. Aquela conversa franca com um estranho, ainda que regada a álcool, estava me proporcionando uma nova perspectiva sobre a situação. Agradeci silenciosamente por sua compreensão e apoio, mesmo que ele fosse apenas um breve encontro em meio ao caos da minha vida.
— Pode ser culpa da pancada que levei na testa também! — Arqueei a sobrancelha e ele acabou rindo. — Fico agradecida pelo conselho, você tem toda razão. Você é de onde? Seu jeito de falar é um pouco diferente! — Comentei, buscando uma distração leve da situação.
— Eu morava nos Estados Unidos. Me mudei pra cá há cerca de cinco meses. — Sorriu de canto, revelando um traço de nostalgia em seu olhar.
— O que te fez vir pra cá? Mulheres ou negócios? — Acabei perguntando sem pensar, deixando escapar uma curiosidade indiscreta.
— Sem dúvidas vim a negócios, em breve irei inaugurar uma filial da minha empresa, e também pelo fato de ser o país onde nasci! — Explicou, enquanto bebericava a bebida que segurava, revelando um misto de orgulho e determinação em suas palavras.
— Nossa, isso é incrível, desejo boa sorte com a sua nova jornada! Bom, a conversa está boa, mas preciso ir embora! Amanhã tenho que trabalhar! — Coloquei o saquinho com gelo sobre o balcão, preparando-me para me despedir.
— Fique mais um pouco, te pago um refrigerante ou um suco! — Ele piscou, tentando prolongar nosso encontro.
— A sua oferta é tentadora, mas eu realmente tenho que ir. Não posso nem sonhar em faltar ao trabalho, estou atolada, praticamente me afogando nas dívidas! — Suspirei, sentindo o peso da responsabilidade financeira sobre meus ombros.
— Isso parece ser ruim! — Ele murmurou, expressando empatia diante da minha situação.
— Na verdade é péssimo! — Grunhi, resignada com a realidade difícil que enfrentava.
— Posso imaginar. Mas olha, isso no seu rosto, achei bastante charmoso e atrativo! — Ele colocou seus dois dedos indicadores nas covinhas que possuíam nas minhas bochechas, com um sorriso sincero nos lábios.
— Esse sem dúvidas foi o elogio mais estranho que já me falaram! — Coloquei a bolsa sobre o ombro, ainda processando o comentário inusitado. — Foi bom falar com você, a gente se vê por aí! — Levantei-me e passei pela porta de saída, pronta para seguir em frente.
Após caminhar alguns passos pela rua, aproximadamente meio quarteirão, uma voz conhecida rompeu o ar, chamando-me por: "Moça!" Os chamados se repetiram algumas vezes, ecoando suavemente, até que finalmente parei e me virei para trás, deparando-me com o dono daquela voz conhecida. Seus olhos atentos estavam fixos em mim, transmitindo uma mistura de curiosidade e reconhecimento.
— Isso aqui pertence a você? — ele ergueu um pequeno estojo de maquiagem, e imediatamente reconheci o objeto.
— Sim, é meu. Muito obrigada! Essa coisinha me custou uma fortuna, e ainda estou pagando por ela! Deve ter caído da minha bolsa durante aquele momento da colisão! — Peguei o estojo com gratidão, apreciando sua gentileza em devolver o objeto perdido.
— Que bom que encontrei, não é? — Ele liberou um sorriso reconfortante. — Posso saber seu nome? — Passou os dedos entre os cabelos, demonstrando interesse genuíno.
— É Jéssica! — Murmurei, sentindo-me um pouco envergonhada com a atenção repentina.
— Muito prazer, eu sou o Henry! — Ele pegou minha mão delicadamente, levou-a até seus lábios e depositou um leve beijo que me causou arrepios. — Fique com isso, vamos manter contato! — Henry entregou um cartão de visitas com elegância, dando uma breve piscada antes de se dirigir de volta ao bar onde estava.
Assim que ele desapareceu na entrada do bar, segurei o cartão de visitas entre os dedos, observando os detalhes impressos nele. O nome "Henry Morales" em fonte elegante e um número de telefone abaixo, acompanhado por uma breve descrição de sua profissão e empresa. Por um momento, me peguei sorrindo, agradecida pelo encontro inesperado.
Talvez não fosse apenas mais uma noite comum após tudo. Talvez houvesse algo de especial no ar, algo que poderia mudar o curso das coisas para melhor. Com o coração um pouco mais leve, guardei o cartão na bolsa e continuei meu caminho pelas ruas silenciosas da cidade, sentindo uma nova esperança florescendo dentro de mim.
Talvez, apenas talvez, aquele encontro fosse o começo de algo significativo em minha vida. A caminhada para casa foi longa e exaustiva, já que não havia mais metrô rodando pela cidade.
