Capítulo 4.1
Ele abaixa o vidro sorrindo.
— Vamos donzela. — Pisca para mim.
— Super discreto — alfineto e ele gargalha.
— E desde quando você viu um Voyaller ser discreto? — pergunta divertido.
— Royal com certeza é. — Entro no carro balançando a cabeça em negativo.
— Ele realmente pode ser o mais antissocial dos quatro, mas isso não faz dele menos ostensivo. Muito pelo contrário, Royal é apaixonado pelo Zenvo ST1 que ele ostenta nas ruas da Itália.
— Vocês homens são complicados. — Suspiro maneando a cabeça em negação.
— Apenas gostamos de dirigir belíssimas máquinas — defende.
— Então dirija logo até a loja de antiguidades do senhor Peterson em Pádua.
— As suas ordens. — Acelera fazendo o motor roncar alto.
Essa é uma loja que meus pais costumavam visitar com frequência e eu sempre me encantei com as maravilhas que são vendidas por lá. Na verdade, nem sei se o senhor Peterson ainda está vivo e sua loja aberta, mas espero realmente encontrá-lo ou não faço ideia do que dar de presente para os meninos.
— Então me explique melhor sobre os codinomes? — pergunto curiosa, pois preciso aprender mais coisas sobre a máfia e Dante não era nada receptivo sobre esse assunto como Jack.
— Não usamos nossos verdadeiros porque acabaria em algum momento caindo nos ouvidos da mídia ou da polícia. Especulações sobre nossa vida no submundo existem várias, mas nunca uma confirmação. Não podemos dar esse privilégio aos repórteres e juízes. O nome Voyaller é influente dentro da Itália, temos muitas empresas além do porto, empresas de hotelaria, alguns restaurantes e cassinos que fazem jogos de azar. Os cassinos geralmente ficam no subsolo de determinados hotéis geridos pela máfia, comandos por nossos soldados e capos, para não chamar atenção da sociedade, afinal, só atende a alta sociedade que tem envolvimento com o submundo, usamos tudo isso para lavar dinheiro, tirar o foco do porto em si, das vendas de armas e drogas.
— Sabia que Dante tinha alguns hotéis, mas realmente se ouve falar dos cassinos, nem passou pela minha cabeça.
— As pessoas conhecem a máfia, mas não conhecem o chefe e muito menos quem comanda tudo, então usamos nomes de animais como codinome para identificar quem está ditando as ordens. Pouquíssimas pessoas já viu o rosto de Dante e permaneceu vivo, ele geralmente limpa o território sem se importar com quem tomba, o mais importante é manter a família intacta. Nós vivemos pela família, pela máfia, por mais irritante que isso seja, por mais que odeie, é exatamente assim que as coisas são.
— Isso é mais complicado do que parece. — Admito e ele ri com sua atenção na pista.
— Para quem não nasceu dentro como você, realmente é, mas você acaba se acostumando com o tempo. Dante achou interessante os codinomes e como já somos conhecidos pelos nossos animais achou necessário você ter o seu já que faz parte da família agora.
— Muito sagaz da parte de vocês, isso só torna o jogo mais interessante e desafiador. É adorável e impressionante como fazem de um simples apelido algo tão extremo e temido, e eu sinceramente adoro isso — confesso. — Dante nunca me explica sobre a máfia.
— O símbolo da família sempre foi o dragão e isso só fez com que Dante fosse associado à imagem mitológica. Animal feroz e poderoso que não aceita ordens, tem melhor colocação para Dante do que essa? — Ele ri.
— Realmente não tem. — Acabo rindo ao pensar no que ele acabou de dizer.
— Agora quanto a Dante não falar muito sobre a máfia, acredito que ele não quer te envolver em situações perigosas. Quanto mais se sabe, mais envolvido você está e mais perigoso se torna, então ele de alguma forma evita te contar as coisas apenas para te proteger.
Pensando por esse lado ele realmente tem razão, na cabeça de Dante sempre serei a donzela em perigo que precisa ser salva, talvez pelo fato de ter sido criado para me proteger acima de tudo, então nem mesmo o culpo por sua superproteção e possessividade exagerada, mesmo que isso às vezes me tire do sério.
A única coisa boa em sua personalidade gritante é que Dante é muito maleável e moldável, basta alguns cutucões daqui e uns sermões dali que ele pensa nas ações que tomou e enxerga seus erros, sinceramente amo isso nele.
— E você, Max e Royal são chamados como?
— Eu fiquei com a “pantera”, às vezes me associam com uma “pantera negra” por me envolver diretamente com o submundo virtual e particularmente gosto, pois é um animal ágil, feroz e selvagem. Max ficou com o “lobo”, temido por sua inteligência e coragem, ele é muito estrategista, gosta de criar situações e encurralar seus inimigos. Ele é responsável pela exportação e importação de drogas e armas junto com Royal, então obrigatoriamente tem que ser sagaz. Já Royal é a “cobra ou serpente”, muitas vezes é um animal peçonhento, sempre esperando o momento certo para atingir sua presa com um bote ágil e mortal, é um animal que gosta do silêncio e da solidão, se encaixa perfeitamente com Royal.
— Não gosto dessa definição, todos veem ele como uma pessoa bruta e sem sentimentos, mas ele não é assim. Ele só prefere o silêncio porque talvez seja mais fácil de lidar com sua mente turbulenta.
— Não te dizer sobre isso, Royal e Max são complicados, muitas vezes acredito que nem mesmo Max entenda ele e olha que são gêmeos — Jack diz confuso.
— Eles são mais ligados do que você pensa. Podem parecer distantes um do outro, mas a ligação deles é muito forte, tenho certeza, além disso, é visível como Royal protege Max indiretamente.
— Você tem razão, há certos momentos em que me surpreendo, quando Max está com problemas, Royal se sente inquieto e sabe que nosso irmão precisa de ajuda, é como se fosse um sexto sentido, mas como eu disse, os dois são complicados e por mais que Max esconde seus demônios atrás de sorrisos e piadas ele é tão bruto e insensível quanto Royal, não se deixe enganar, a única diferença é que Max sabe controlar melhor seu temperamento, posso afirmar que não quero ver nenhum dos dois perdendo o controle, já não basta Dante.
— Gêmeos idênticos têm ligações muito fortes. Confesso que demorei para identificar os dois, a única coisa que facilita é que um está sempre sorrindo e outro sempre mal-humorado, além de pouquíssimas tatuagens que diferem um do outro.
— Eles são muito sacanas, gostam de confundir as pessoas a sua volta e até combinam as tatuagens que fazem. — Jack ri e acabo rindo também, pois não conhecia esse lado deles.
— A cada dia que passa sinto que estou mais envolvida com vocês. — Observo a estrada vendo a cidade se aproximar.
— É porque você de fato está — ele provoca. — Não vai querer saber por que Dante escolheu a águia para você?
— É claro que eu quero.
— Águia é símbolo de nobreza, liberdade e agilidade, além de ser perspicaz e inteligente, ninguém consegue comandar um espírito livre, nem mesmo a ferocidade e brutalidade do dragão. Você é motivação, autoestima e confiança, veio para colocar os outros animais no seu devido lugar. Você costuma nos observar de cima, prestar atenção nos detalhes que não prestamos, vê aquilo que não vemos e compreende o que ignoramos.
— Nossa... — é a única coisa que consigo pronunciar enquanto digeria tudo o que ele acabou de dizer.
Meu peito vibra com aquela informação, pois não consigo acreditar que eles me veem assim, que acreditam tanto em mim a ponto de achar que consigo comandar e ajudar os quatro, mas a felicidade é tão grande que só consigo sorrir.
— Agradeço a confiança que vocês colocam em mim, mas às vezes custo a entender como conseguem comandar tudo isso.
— Não comandamos sozinhos temos homens para isso, mas todos os relatórios do dia passam por nossas mãos ou pelas mãos de um soldado de confiança que relata algum acontecimento fora do normal. Não é fácil manter a hierarquia, todos os dias temos pequenas gangues querendo se rebelar, procurando um meio de nos atingir e não podemos permitir que isso aconteça ou então sucumbiremos.
— Vocês realmente carregam um grande fardo nas costas e isso me surpreende. Você tem apenas vinte e quatro anos, mas tem que ser responsável o bastante para comandar e dominar tudo isso.
— Nosso passaporte direto para a máfia ocorre com dezessete anos Eva, nessa idade somos obrigados a matar uma pessoa pela primeira vez e confesso que não é fácil. Hoje é natural, nossa mente apaga o senso de dever e justiça, do certo e do errado, mas puxar o gatilho e tirar a vida de alguém mesmo sabendo que ele é um ladrão, traidor ou qualquer outra coisa que está interferindo em nosso poder não é fácil. Imagino Dante fazendo isso com você. — Jack suspira pesadamente. — Uma coisa é treinarmos na floresta e matarmos animais, outra é tirar a vida de um ser humano. Desde cedo aprendemos com exatidão manter órgãos vitais funcionando apenas para dar a uma pessoa uma morte lenta e dolorosa. Não sei como nosso avô criou Donatel, mas nosso pai fez questão de fazer de nossas vidas um verdadeiro inferno, ainda assim, devemos a ele o que somos hoje e isso é o que mais me irrita.
— Você não deve pensar no passado Jack, é visível que todos vocês levam marcas pesadas causadas por Donatel, mas vocês não podem se culpar pelo que são, não tiveram escolhas, foram forçados a isso. Tenho certeza que se vocês cogitassem a possibilidade de escolher outra coisa, Donatel certamente os mataria.
— Max uma única vez ousou comentar que seu maior sonho era fazer arquitetura, Donatel bateu tanto em nosso irmão que ele ficou uma semana hospitalizado na enfermaria. Se não fosse Royal interferir, ele certamente teria o matado.
— Isso só faz meu ódio por Donatel aumentar a cada dia — sussurro mais para mim do que para ele.
— Ele ainda tem sorte por ter nós quatro, não era para ser assim, Max e Royal são fruto de traição, não que isso faça diferença para mim e para Dante, mas sei que faz para Royal e Max ou pelo menos fez por muitos anos. A mãe de Royal e Max, Francesca Leone foi morta por Donatel na frente dos dois. Ela teve a oportunidade de viver com os filhos até os dez anos deles, mas cometeu a imprudência de tentar levá-los para o Brasil. Donatel jamais permitiria, um Voyaller é, e sempre será um Voyaller, não importa se foi fruto de uma traição. Eu não sei contar sobre o passado, sou o mais jovem e sei apenas o básico, já que nem Dante e muito menos os gêmeos gostam de tocar nesse assunto. Minha mãe Antonella Negrele Voyaller morreu no meu parto, para falar a verdade muitas vezes Francesca fez papel de mãe para mim, mesmo Donatel deixando claro que ela era apenas uma empregada e que não deveria se aproximar. Ele só permitia o contato dela com os filhos porque ela era de fato a mãe e tinha o direito.
Não consigo conter as emoções ao ouvir isso, a cada dia que se passa o meu ódio aumenta em níveis inimagináveis. Como esse infeliz consegue ser tão frio e sádico, como consegue tratar crianças com tanto ódio e rancor.
— Não acredito que ele matou a Francesca na frente dos filhos de dez anos. — As lágrimas escorrem pelo meu rosto, pois só consigo imaginar o desespero de Max e Royal naquele momento. — Meu Deus! — Não consigo digerir tudo isso sem ter ânsias de vômito.
— Vamos mudar de assunto, quando tocamos no nome daquele demônio acabamos por entrarmos em conflitos internos e isso não é bom. Na verdade, me empolguei nas explicações, entrei em um assunto pessoal nunca citado entre meus irmãos, finja que não sabe de nada ou Max e Royal cortaram minha língua. — Jack encolhe os ombros.
— Vai ser difícil esquecer tudo o que acabou de me dizer, mas não contarei a eles, pode ficar tranquilo, sei que esse é um assunto delicado.
— Realmente é muito deliciado, apanhei muito dos dois quando era pequeno por ter curiosidades e ser o irmão chato que fazia perguntas desnecessárias. — Jack encolhe os ombros com um olhar triste. — Pode não parecer, mas o pouco contato que tinha com Francesca me deixava feliz apesar de ter sido Teresa quem de fato me criou, não que Donatel permitisse que ela agisse como uma mãe, mas ela foi o mais próximo que tive de uma.
— Não fique triste. — Seguro sua mão apertando-a suavemente por cima do volante em sinal de conforto.
— Francesca era uma boa mulher Eva, linda, cabelos longos negros, dona de um corpo escultural e intensos olhos azuis acinzentados, bem parecidos com o dos filhos, porém meus irmãos têm um tom a mais de azul que os dela. Sabe, custo a acreditar que Francesca se deitou com Donatel por livre e espontânea vontade, duvido muito, mas nunca vou descobrir a verdade.
— Você não deve se culpar pelo passado Jack, seu irmão também se culpa. Você tem noção que a culpa disso tudo é do pai de vocês? Aquele homem louco e mesquinho. Nem tenho palavras para descrever aquele monstro, elas me faltam de tão horrendo que ele é — quase grito com vontade de espancar o painel do carro que nada tem culpa, mas me controlo rosnando meus desaforos sobre Donatel.
— Se acalme. — Jack franze as sobrancelhas contendo um sorriso. — É engraçado vê-la brava, mas não deve ser engraçado ser o seu alvo. — Faz uma careta.
— Juro que matarei Donatel com minhas próprias mãos. — Deixo bem claro, pois esse era o meu maior desejo recentemente.
— Compartilhamos do mesmo desejo. — Pisca me fazendo suspirar, enquanto permaneço em silêncio, mas me recordo de algo que quero perguntar há um tempo.
— Posso te fazer uma pergunta? — Por poucos segundos sua atenção sai das ruas para me analisar, mas logo volta a ela.
— Se estiver ao meu alcance responder, pode perguntar.
— Por que 371? — Essa é uma curiosidade que sempre tive, não entendo por que 371, sendo que a maioria das máfias levam codinomes e não números.
— Nem sempre foi 371, na verdade isso mudou com Donatel. Antes éramos chamados de “Dragon” apenas, pois esse sempre foi o símbolo da família. Quando essa mansão foi construída pelo nosso avô, Lourival, ele fez questão de construir um quarto próprio para tortura no porão, que você já conhece. O quarto foi se tornando conhecido e o Dragão ficou para Dante que passava por cima de tudo e todos sem piedade. São apenas rumores inventados por pessoas que nos temem, nós só fazemos com que esses rumores se tornem mais reais e com isso ganhamos fama, poder e temor. As pessoas temem aquilo que elas não podem ver e temem ainda mais rumores e histórias que escutam. — Jack dá de ombros estacionando em frente à loja de antiguidades. — Chegamos.
Volto minha atenção para a loja do senhor Peterson e sinto uma grande emoção tomar conta de mim ao ver aquele lugar que não tinha mudado quase nada, apenas a fachada e a cor amarelada das paredes que agora são de um tom marrom escuro quase terra.
— Não acredito que esse lugar não mudou nada em onze anos — comento surpresa e chocada ao mesmo tempo.
— O senhor Peterson sempre gostou de manter as aparências. — Jack acaba rindo.
— Você também o conhece? — pergunto surpresa.
— E há quem não conheça? Esse velho tem as melhores bebidas que você pode encontrar, além dos objetos históricos. — Jack balança os ombros rindo. — Vamos, continuamos com suas dúvidas sobre a máfia uma outra hora. — Pisca abrindo a porta pronto para descer e eu faço o mesmo.
