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1

Eu escovava meus dentes como quem esperava que eles saíssem de lá brilhando, ao estilo propaganda de TV. Cuspi a água, bati um dente no outro e sorri. Quando abri a porta, meu incrível ex-namorado me esperava sorrindo sentado na mesa, olhando o celular.

— Olha amor, você é notícia de novo!

Ele virou a tela do aparelho, eu o peguei nas mãos e levantei as sobrancelhas. Já fez um ano desde o acidente, e a única sobrevivente estava saindo nas telas dos jornais com reprises e imagens do meu resgate. Não era algo muito legal de se lembrar, minha cabeça ainda doía com aquela situação.

— Que merda… Esses memoriais são terríveis. — resmunguei devolvendo o celular e Bart dando de ombros — E aí, vamos?

Bart passava muito tempo comigo em casa, mesmo que eu já dissesse que estava tudo bem — digamos que minha recuperação foi estranha. Mas, eu sofri um acidente de avião e sobrevivi em alto mar, era um milagre traumático. E só. Não havia outra realidade. Um ano depois estou aqui, sem remédios, sem psicólogos e um ex-namorado preocupado. Sempre que existia a oportunidade ele falava sobre reatar e seexo. Sempre que tinha a oportunidade eu falava sobre siiririca e meu glorioso espaço.

— Olha, eu sei que você não queria um relacionamento no meio de tudo aquilo, mas já está tudo bem. — ele insistiu no assunto enquanto dirigia para o restaurante do senhor Adam’s, seu pai — Acho que já estamos prontos pra voltar com tudo.

— Não Bart. Nem pensar.

— Os seus pais estão esperando a gente reatar. Lembra-se, voltar a viver a vida?

Ele tinha o maior olhar pidão, mas não estava nem perto de me convencer. Ele foi obrigado a parar na fila de um semáforo e aproveitou pra me dar uma piscada. Bart é um homem branco, não tão magro, mas nem tão forte. Era uma cabeça mais alto que eu e muito boa vibe, mas era só. Faltava alguma coisa…

— Você está tomando uma buzinada e um fora. — ele relaxou os ombros e seguiu em frente — Olha, porque não sai com a Claire? Ou Jannice? Elas estão super afim.

— Nós íamos nos casar, Stella. — ele respondeu de um modo mais seco e quase sombrio — Eu planejei um milhão de coisas pra te pedir em casamento. Aí você sofreu um acidente e decidiu me afastar. Você me trata como se fossemos amigos para usar rosa na quarta-feira. O que foi que aconteceu a ponto de simplesmente zerar tudo o que a gente viveu desse jeito tão frio?

Ele estava nervoso e olhou pro lado, realmente querendo uma resposta. Eu tinha uma e abri a boca para responder. Mas um baque corrompeu o carro, eu estava de cinto, mas a traseira chegou a levantar e bater no chão, com o airbag sendo acionado e mantendo nossos corpos presos para trás. O lapso de adrenalina foi repentino, mas nós ficamos bem.

— Você está bem? — Bart gritou desesperado, o airbag diminuiu a pressão e eu levei alguns segundos pra me recuperar do choque.

Eu abri a porta, desci um tanto baqueada e ouvi um grito.

— Fêmea! — o homem parecia preso no metal do carro, saiu sem muito esforço, olhou ao redor, até parar seus olhos em mim.

Eu engoli em seco, não sabia o que dizer e nem o que fazer. Eu passei uma vida dizendo para mim mesmo que aquilo era um sonho, mas ele estava ali. Por inúmeras noites eu gritei desesperada vendo um céu escuro se partir em dois e no final da história eu sempre via este rosto. Mas era um sonho, uma realidade que vivi dentro de um coma. Não… Quem era esse homem!?

— Não… — eu não podia ter um lapso depois de um ano, não eu não podia!

— Ficou maluco?! — Bart berrou saindo do carro, com um leve arranhão na testa, enquanto aglomeravam algumas pessoas na rua tirando foto e apontando seus celulares — O que você fez com meu carro?!

A frente do carro virou um “V” amassado, o homem não tinha um arranhão sequer enquanto a lataria era uma sanfona pra dentro. Fiquei boquiaberta, mas aquilo nem foi o ápice, ver aquele homem me deixava em alerta. Dei um passo para trás, minha cabeça estava doendo, minhas náuseas voltando e os surtos também. Eu respirava fundo, meu coração estava acelarado e ainda de olhos abertos eu vi aquela queda e o maldito raio. De repente eu gritei, apertei a minha cabeça como se fosse possível sanar as minhas dores e saí correndo. Eu não faço ideia de onde eu estava indo, só ouvi aquele homem gritando atrás de mim.

— Fêmea! Fêmea!

— Ei, Stella! — acho que Bart também estava correndo atrás de mim — Ei, seu idiota, volta aqui! Ela é minha namorada e você vai pagar aquele prejuízo!

Eu estava desnorteada. Via o caminho que corria, misturando a realidade de uma relva. Num segundo via pessoas e carros, no outro via pessoas estranhas, o rosto de um homem e o uivo de um lobo. Estava confuso. Onde eu estava e quem eu era? Quando finalmente consegui pensar, eu estava parada no meio de uma rua. Abri os braços, como se eu precisasse me equilibrar, respirei fundo e repeti para mim mesma.

— Eu sou Stella do Queens, trabalho no restaurante do senhor Adam’s. Eu sou Stella do Queens, trabalho no…

— Fêmea!

Levantei os olhos e o cabeludo meio viking ainda estava atrás de mim. Não! Não era hora de loucuras, não era hora para recaídas! Meu nome não é fêmea, é Stella. O mais seguro a fazer é simples, meta o pé e deixa o viking gostosão surtar sozinho. Um carro buzinou, eu saí correndo, demorei para me localizar, mas quando olhava para trás, o homem estava lá. Corri mais um pouco, esbarrei em inúmeras pessoas, achei o rumo do meu apartamento e busquei pela sua proteção como se eu dependesse disso para viver.

Quando atravessei a entrada estava cansada, quase não respirava direito, mas tranquei a porta e finalmente me acalmei. Fui direto beber um copo de água, procurei pílulas para dor de cabeça, fui até o freezer e peguei uma bolsa de gelo. No momento seguinte, eu era uma louca que rodopiava de um lado para o outro na sala, repetindo para mim mesma, tentando me acalmar.

— Meu nome é Stella. Eu moro no Queens e sempre morei. Não existem homens vestidos com saias de couro, cabeludos, de dois metros e me chamando de fêmea. Foi um sonho, um terrível lapso misturado à realidade. Eu vou pegar o telefone, ligar pra doutora Trand e fazer uma consulta…

— Fêmea?

Eu olhei para trás, procurei o dono da voz e me perguntei como foi que aquela criatura conseguiu entrar no meu apartamento sem usar a porta da frente. Enfim, olhei para a porta fechada, olhei para o homem na minha sala e vi ele abrir os braços, contendo um sorriso sério e de cenho franzido. Ele deu um passo à frente, eu dei um passo para trás, ele repetiu o movimento e eu tropecei, caindo na beirada da porta.

Procurei por algo que pudesse me proteger, tentei não olhar o quadro musculoso do viking cabeludo, nem reparar na grossura dos braços. Se essa merda resolver me pegar na paulada, meu rego ia ficar rosa… Como um raio, a luz bateu em minha mente e segundos antes do viking se aproximar de vez, peguei o guarda chuva que estava no apoio de entrada, apontei para o gigante e soltei a ameaça.

— Fique onde está, seu viking! — falei alto, fingindo estar super segura e apontando o guarda chuva pra montanha gigante e cabeluda — Não se aproxime. — ele franziu o cenho, cerrou os dentes e fechou os punhos.

— Vou castigá-la assim que retornarmos! Como ousa tratar seu Dono deste modo? — ele vociferou, basicamente rosnando.

Eu arregalei os olhos, num cagaço rídiculo. O homem rosna! Mas ele segurou o guarda chuva, na maior ousadia e eu acionei o botão, fazendo o objeto abrir. No segundo seguinte o homem deu um passo para trás, olhou admirado para o tecido preto e temeu tocá-lo.

— Magia Negra! Abandone isto fêmea, pode corromper seu espírito!

Cê tá de brincadeira que um homem daquele tamanho tem medo de guarda chuva? Magia negra? Eu me recuso a dizer que eu já sonhei com este rosto!

— Não é magia negra, é um guarda chuva! — retruquei pegando o negócio, fazendo-o fechar, mais segura e agora de pé, apontando o objeto para ele, me aproveitando do medo do homem. — Afaste-se! Como foi que você entrou aqui dentro?

Ele ainda olhava admirado pro objeto nas minhas mãos.

— Onde aprendeu maldita bruxaria? — rosnou entre os dentes — Tamanho poder é extremamente perigoso!

Eu afinei os olhos, e fui dando passos devagar até me aproximar do telefone, disposta a chamar a polícia para aquele maluco. Ele não me respondeu, mas me olhava duro de cenho franzido e disposto a duelar com os olhos, quando estiquei os braços em direção ao aparelho, ele tocou.

— Afaste-se! — ordenou o homem de voz altiva, grave e grossa.

Só deu tempo de eu arregalar os olhos, me joguei para trás quando o vi puxar sua espada e o metal tilintou no alto, bateu contra a mesinha de vidro e estraçalhou o aparelho. Eu caí no chão enquanto via minhas coisas se transformando em trezentos mil cacos e o homem manejava o metal em suas mãos com perfeição. Numa coreografia ele a girou, guardou-a em sua bainha e esticou sua mão para me ajudar a levantar.

— Não tema, irei protegê-la com a minha vida!

Eu estava caída no canto da minha sala destruída, olhando perdida em volta dos estilhaços, vez ou outra olhando a mão disposta a me ajudar. Engoli em seco, tentei pensar em algo lógico, mas não consegui. Pensei em desmaiar, mas essa merda de história já começou não colaborando comigo e nem vertigem eu sentia mais. Me restou surtar…

Bati na mão do homem, peguei o guarda chuva e pensei na quantidade de golpes que eu ia conseguir desferir no viking, mas para a minha surpresa, o guarda chuva partiu, estourando os fios pra fora e rasgando o pano preto. Eu fiquei com a bosta destrambelhada nas mãos e o viking gostosão me olhando, já que o negócio não amassou nem seu cabelo.

— Do que você é feito…? — perguntei mais para mim do que para ele.

— Fêmea, porque me atingiu?

— Quem raios é você…? — perguntei de novo, tentando entender alguma coisa.

— Diga que meus ouvidos mentem para mim. — o viking gigante estava muito perto, cheirando a suor e terra, me olhando nos olhos com um dourado que eu não acreditava que podia existir. Eu estava inerte, deixei o guarda chuva destrambelhado cair no chão e senti seu toque quando tocou em meu rosto — Não conte para mim que seus olhos não me reconhecem. — eu fixei minha íris na cor dourada, quase não consegui respirar, mas mantive os olhos abertos quando o viking grandão encostou sua testa na minha — Burlei as regras mais sagradas de minhas terras, apenas para atravessar o manto azul e pedir ao Deuses que não me ferissem com a sua ausência. Invoquei a fúria dos raios e cortei as estrelas para buscá-la. Eu sou o seu Dono, Alpha, Líder Mór das tribos da Ilha dos Lobos. A fêmea é o meu pilar, a grande Matriz, minha família.

Eu pisquei, senti a mão grossa invadir minha nuca e quando acho que o homem ia me beijar, voltei a realidade. Cutuquei a pele quente, muito quente, do viking bonitão e me afastei.

— Aê, eu não sei de que fantasia você veio, mas a feira de anime é em outro lugar. — tentei me manter séria, mas o homem tinha um dourado confuso em sua face — Eu acho que você está procurando a “Xena” errada. — eu abri a porta, segurando o olhar do homem, fingindo que aquilo não me afetava — Cai fora da minha casa, ou eu vou chamar a polícia.

— Diga que meus ouvidos mentem para mim. Não conte para mim que seus olhos não me reconhecem.

Eu queria apenas me livrar dele, mas tinha uma coisa me impedindo de realmente o fazer. Os olhos dele, sua proximidade, o pesar em sua voz… Engoli em seco, resolvi entrar na loucura daquele momento e enquanto o homem ainda se lamentava por eu não o reconhecer, arrisquei.

— Quem é Zeus? — perguntei com cuidado.

Havia coisas dentro da minha cabeça que não se encaixavam, coisas que me levariam ao auge da loucura e com certeza a doutora Trand iria surtar se me ouvisse. Perguntei baseado em fatos que só existiam na minha cabeça, disposta a expulsar o homem quando respondesse o óbvio.

— Nosso filhote. — respondeu firme, fechando a porta e me pegando de surpresa.

Eu estava me preparando para gritar ao viking de feira de anime que caísse fora do meu apartamento, mas ele conseguiu me deixar com uma batida do coração falha. Porque nos meus sonhos, só nos meus sonhos, Zeus é meu filho.

— Como…? — ele estava sério, mas havia um raio de esperança em seus olhos — Isso é loucura…

— Não, é doloroso. — respondeu com feições duras — Eu vejo na sombra de seus olhos, que não mente. Esqueceu de mim. Esqueceu de nosso filhote. Esqueceu de me amar através dos tempos…

O barulho do interfone nos tirou do transe. Eu olhei para a cozinha pensando que o homem ia embainhar a espada de novo, mas ele permaneceu inerte, ainda me olhando com feições duras. Precisei correr para atender o aparelho, falei com o porteiro e então com Bart. Quando desliguei, eu olhei para a sala, a porta estava aberta e já não havia mais ninguém.

Cadê o homem?

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