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Consertando Estragos

- Chloe, cadê o seu carro?

Fecho os olhos e abaixo a cabeça.

Meu pai e eu estamos sentados à mesa, compartilhando nossos cereais. Quando minha mãe era viva havia ovos e bacon toda manhã. Ou panqueca. Nossa, ela adorava panqueca! Agora somos só nós dois e nossos Sucrilhos Kelloggs.

Sei que ele sente sua falta, talvez tanta quanto eu sinto, e que nunca foi capaz de se casar novamente porque o amor deles é do tipo que nem a morte foi capaz de separar.

David Henderson está entrando na casa dos cinquenta anos e, muitas vezes, quando olho para ele, imagino como deveria ser quando ainda era jovem. Como ele era por dentro. Seus pensamentos, sentimentos, seus anseios.

Tudo o que sei sobre o seu eu de antes vem dos álbuns de fotografia que coleciona, a maioria contendo fotos onde minha mãe aparece ao seu lado, linda e radiante.

Mas agora, apesar de estar em boa forma, ele não se parece em nada aquele homem leve e despreocupado pelo qual minha mãe se apaixonou um dia e todos os dias pelo resto da sua vida, como ela mesma gostava de dizer. E, infelizmente, tenho que admitir que eu muito contribuí nesse processo de desgaste.

Hoje, o maior orgulho do meu pai é o seu trabalho em uma empresa do setor de tecnologia automotiva. Ele não é exatamente o proprietário, mas mantém um pequeno exército sob o seu comando. Pelo menos é o que ele sempre diz. Minha mãe costumava rir disso. Nós duas. Ela dizia que se ele fosse assim tão importante, deveríamos estar viajando para os Hamptons nos feriados.

- Chloe?

Eu não tenho sequer coragem de olhar para ele. Que covarde. Me escondo atrás da cortina de cabelo castanho ondulado, que nunca fica no lugar. Meus olhos são enormes e verdes como os do meu pai. Em todo o resto, eu me pareço com a minha mãe. Desde o nariz arrebitado até a boca cheia, volumosa.

No fim das costas, olho em seus olhos, sabendo que me criou para ser honesta e, bom, ser honesta agora é minha única opção.

- Eu perdi - digo em um sussurro baixo, mas audível.

- Você o que? - ele franze a testa.

Suspiro, coçando a cabeça, enquanto olho para toda parte, exceto para ele.

- Eu perdi, papai. Em um jogo de pôquer - admito, envergonhada. - Sinto muito.

O silêncio paira na cozinha. Sou capaz de ouvir um passarinho piar longe e penso que nunca tinha percebido o quanto essa vizinhança é tranquila até agora. Até precisar de carros buzinando e alguém na casa ao lado ouvindo Metallica nas alturas.

- Quem estava com você? - a voz grave do meu pai interrompe o fluxo aleatório dos meus pensamentos.

- Mallory.

Ele balança a cabeça, mostrando que já sabia a resposta antes mesmo de ouvi-la.

- Não quero que você veja mais essa menina.

Abro a boca para protestar, lembrar que Mallory é minha melhor amiga, que minha mãe a adorava e que ela frequenta essa casa desde que usávamos fraldas, mas resolvo ficar na minha.

Não estou em condições de discutir, essa conversa pode muito bem ficar para outra hora.

- Me desculpe, pai, isso nunca mais vai acontecer.

- Não vai mesmo, porque eu não vou mais tolerar esse tipo de comportamento - ele levanta da cadeira, me olhando de cima com reprovação. - Eu errei com você, Chloe. E eu também errei com a sua mãe. Prometi que cuidaria de você, mas não fiz isso. Deixei que se cuidasse sozinha - ele abaixa a cabeça, arrasado. - É que você sempre foi tão inteligente e tão madura. Desde pequena. Quando sua mãe adoeceu... - as palavras morrem dentro da sua boca e posso ver que está lutando contra as lágrimas. - Bom, isso não é desculpa. Eu falhei como pai. Mas vou consertar isso.

Olho para ele, sentindo um nó se formar na garganta. Quero que saiba que não errou nunca, que é um pai maravilhoso, amoroso e dedicado, mas as palavras não saem. Odeio quando estou tão emotiva a ponto de não conseguir colocar nada do que penso para fora. Esse tipo de sentimento me assusta, porque é bem parecido com o que eu senti durante toda a doença da minha mãe.

Meu pai apoia as mãos no encosto da sua cadeira e olha bem dentro dos meus olhos antes de falar novamente.

- A partir de hoje, as coisas serão diferentes. Para começar, eu quero que você encontre um emprego. Você vai pagar o restante do financiamento do carro que você perdeu. Talvez isso te faça aprender o valor do meu sacrifício - ele diz, o semblante magoado acabando comigo. - E também quero que você vá morar na casa da sua tia Rose.

Eu levanto os olhos para ele, horrorizada.

- Tia Rose? Pai, pelo amor de Deus! Ela me odeia, odiava a mamãe...

- Os problemas dela com a sua mãe não lhe dizem respeito - ele me interrompe, seco. - Sua tia vai saber lidar com você melhor do que eu. Ela é mulher, é mãe, vai entender melhor o que se passa pela sua cabeça, e vai poder ajudar.

- Pai, por favor...

- Não, Chloe. Eu já decidi - ele bate o martelo. - Sei que, teoricamente, você já responde por si mesma porque é maior de idade. Mas espero que ainda tenha algum respeito por mim - seus olhos marejados partem meu coração em milhões de pedaços.

- É claro que eu respeito você - digo, ferida com as palavras dele. - Somos só nós dois. Nós dois um pelo outro, lembra?

Ele me olha de um jeito triste e cansado que nada lembra o David Henderson das fotos. Um jeito que me enche de dor e de culpa, que me faz pensar em todos os atos imprudentes que venho cometendo nos últimos anos, em todos os seus esforços para criar uma adolescente, uma garota adolescente, sozinho, sem esposa, contra todas as expectativas.

E então, sai da cozinha com os ombros arriados sem dizer uma única palavra.

Enquanto arrumo a mala, penso em como tudo começou a desmoronar lentamente com a doença da minha mãe.

Ando até a cômoda e pego um porta retrato com sua foto, o sorriso maravilhoso e espontâneo espremido entre meu pai e eu. Essa foto é uma das muitas recordações dela espalhadas pela casa. Foi tirada uma semana antes da primeira sessão de quimioterapia. Sua aparência estava mais frágil, um pouco debilitada, mostrando que o câncer que acabava com ela por dentro marcava por fora também a sua existência silenciosa.

Coloco a fotografia na mala, escondendo entre as roupas, e fecho o zíper enquanto olho ao redor, colhendo lembranças de todos aqueles anos para guardar comigo.

Meu quarto é uma mistura eclética de tudo aquilo que eu gosto. Tem um pouco de rock antigo, filmes clássicos e de literatura. O pôster de Sexta Feira 13 atrás da porta é o meu favorito, junto ao do Queen na parede atrás da minha cama. Tudo isso diz muito sobre quem eu sou. Ou muito sobre quem eu era. Há anos venho sentindo um vazio dentro de mim. Um buraco que parece crescer mais a cada dia, ameaçando me devorar de dentro para fora. 

Com a mala pronta, eu me despeço do quarto que adoro e me arrasto para baixo através da escada.

Meu pai está ao telefone. Reviro os olhos, pois imagino que esteja falando sobre mim com a cobra peçonhenta da tia Rose, mas quando me aproximo, chegando ao último degrau, percebo que trata-se de uma velha amiga sua, Abigail Hayes. 

A Sra Hayes está presente nas minhas memórias da infância como uma senhora gentil e cordial, embora um pouco calada, que costumava frequentar a nossa casa quando minha mãe era viva. Ela tinha mais idade do que os meus pais e bem menos do que os meus avós, meu eu, criança, havia conseguido captar, não era casada e vivia em uma mansão onde trabalhava como governanta.

Quando minha mãe morreu, as visitas da Sra Hayes foram se tornando cada vez menos frequentes até que, um dia, simplesmente deixaram de existir.

- Não, Abigail. Fica para uma outra oportunidade - meu pai diz, coçando a nuca como faz sempre que está beirando o desespero. - É mesmo uma oferta incrível, eu ficaria honrado em ver a Chloe trabalhando na casa do Sr Lancaster, mas é algo impossível no momento - ele faz uma pausa, escutando certamente, e eu me sento no degrau ao lado da minha mala, ouvindo silenciosamente o desenrolo da conversa. - Eu sei, eu sei. Seria mesmo muito bom. Não, o salário parece ótimo e as condições também. A verdade é que... - meu pai parece atrapalhado nas palavras e até limpa a garganta antes de prosseguir. -  Bom, Chloe não anda muito bem. O seu comportamento, as suas atitudes... eu fico até sem jeito de dizer, mas não confio nela para trabalhar na casa do meu chefe de jeito nenhum.

Contenho o choro e engulo as lágrimas, abraçando os joelhos e pressionando o queixo sobre eles. Vasculho o meu cérebro atrás do momento exato em que o meu pai passou a se sentir assim a meu respeito. Quando foi que se rompeu o nosso elo de confiança? Impossível dizer. Só sei dizer que a culpa é toda minha e isso está me dilacerando por dentro.

Suas palavras seguintes, me enchem de vergonha e só fazem aumentar a minha dor.

-  Tenho certeza de que cometeria alguma burrada e me faria passar vergonha. Você sabe o quanto eu prezo o meu trabalho, não quero ver a Chloe colocando tudo a perder.

Sua honestidade nua e crua é pior do que qualquer castigo que possa me dar. Deixo as lágrimas rolarem silenciosamente, enquanto relembro o que ouvi tia Rose dizer a minha mãe quando ela descobriu seu diagnóstico. Aqui se faz, aqui se paga. 

Me dói pensar que o relacionamento com o meu pai possa nunca mais voltar a ser como antes, tudo por causa do meu egoísmo e da minha imaturidade.

Quando ele desliga, se desculpando pela milésima vez, sai da sala batendo a porta na direção da garagem. Sei que está indo para o carro, me esperar para então me levar até a casa da tia Rose. A ideia de que esse tempo longe de casa só vai servir para nos afastar ainda mais é insuportável.  Não posso deixar isso acontecer. De jeito nenhum. 

Corro até a cozinha, pego o telefone e disco para o último número no identificador de chamadas com o coração aos pulos.

A ligação dura menos de dez minutos. Ao final dela, tenho um endereço nas mãos e uma entrevista de emprego para daqui a dois dias na casa do Sr Max Lancaster.

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