Biblioteca
Português
Capítulos
Configurações

Dois

Meu dia começava cedo, para ser mais exata as quatro e meia da manhã. Preferia levantar esse horário, por que dava tempo de organizar a casa, arrumar a mochila da Júlia e me arrumar.

Quando a Júlia acordava, o café da manhã já estava pronto, na mesa, eu já estava arrumada e apenas esperando que ela tomasse o café da manhã dela no tempo dela e que permitisse que eu a arrumasse.

Mário por outro lado, neste horário, ainda estava dormindo no sofá da sala, com a roupa do dia anterior e cheirando a álcool, podia sentir o cheiro a pelo menos dois metros de distância. Júlia já não se importava com essa situação e já havia aprendido a lidar da melhor forma ao ver o pai naquele estado, então depois do café, saímos de casa com destino a escola.

No trajeto, conversávamos sobre tudo. Tudo ao nosso redor, as pessoas, o sol, o céu... Júlia era uma criança observadora e que se apegava a cada detalhe que via.

Na porta da sala dela, sempre nos despedíamos com um forte abraço e a deixava ir, pronta para começar meu dia. Para chegar na zona sul precisava de dois ônibus, doutora Gabriela havia sugerido diversas vezes que era melhor pegar um táxi todos os dias por sua conta mas, eu não achava certo, era pedir demais.

Geralmente os ônibus estavam cheios, tanto na ida quanto na vinda. Ouvia as pessoas reclamado do clima, da vida, das pessoas no geral; Além do desconforto de ficar em pé, ainda tinha que lidar com os diversos odores que viam de todos os lados, era sufocante e me sentia numa lata de sardinhas, presa, incapaz de me mover, correndo o risco de ser abusada.

Depois de todo esse percurso, finalmente chego na zona sul e ainda preciso andar alguns poucos metros, até chegar no prédio alto de vinte e poucos andares e, passar pela portaria.

Diferente das empregadas que trabalhavam ali também, não erra obrigada a entrar pelo elevador de serviço. Doutora Gabriela não me forçava á isso e era mais uma coisa de que era grata. Isso gerava murmúrios toda vez que me viam, mas eu não ligava.

Ao entrar pelo apartamento pela porta da frente, me deparo com o cheiro de café e vozes baixas.

- Bom dia - digo ao entrar na cozinha. Ali na minha frente estava a doutora Gabriela e seu marido César, que pela cara, não estava tendo um bom dia.

- Oi, Luíza - diz Gabriela sorrindo - Senta. Vem tomar café da manhã.

Sorrio sem jeito, as vezes acabava que eu cedia e me juntava á eles. Mas não me sentia bem, sentia que estava sendo inconveniente, saindo do lugar que era para estar.

- Já tomei café. Mas obrigada.

- Toma de novo - diz César.

Mantenho o sorriso.

- Bom, se quiser comer alguma coisa já sabe - Ela levanta, pegando a bolsa ao lado - Até mais tarde - diz antes de sair da cozinha e por fim do apartamento. César continua comendo seu café da manhã, o que aproveito para trocar de roupa, vestir a roupa mais ou menos que sempre tinha por ali e começar meu dia.

Geralmente eu começava a limpeza pelo quarto do casal. Não havia muito o que fazer, mesmo assim eu tirava o pó de tudo e limpava o melhor que podia. E sempre tirava alguns instantes para olhar uma fotografia ao lado da cama.

Era Gabriela sem dúvida e com uma menina sorridente. Estava óbvio que era a filha dela, mas não conseguia parar de pensar aonde ela estava. Gabriela nunca havia mencionado que tinha uma filha, também poderia ser sua sobrinha, havia diversas opções mas que não conhecia descobrir qual era a certa.

O quarto em si era muito bem dividido, um lado do quarto era somente de Gabriela, havia pertences dela, simples, diferente do lado de César, aonde tudo parecia ser muito caro e eu temia quebrar qualquer coisa.

Toda a limpeza dura cerca de uma hora, quando deixo o cômodo, passo para o próximo que neste caso é o quarto de Lucas. Lucas era o filho prodígio, como posso dizer...? Era o tipo de adolescente raro que não dava trabalho aos pais, só orgulho e elogios. Ele era assim, além de ser muito gentil e atencioso com todos ao seu redor, com certeza o filho que toda mãe queria ter.

- Oi... - digo entrando no cômodo. Lucas ergue o olhar dos livros em sua frente e me olha - Atrapalho?

- Oi, Luíza. Não. Pode entrar.

Assim como o quarto dos pais, o de Lucas não ficava atrás. Estava sempre muito organizado, limpo e não havia quase nada para fazer.

- Andou limpando o quarto de novo? - pergunto no meio do quarto, sem saber por onde começar.

- Não - Ele começa a fechar os livros e a guardar  seus devidos lugares.

- Lucas.

- Sério, Luíza. Não fiz nada.

- Nem parece que você dorme neste quarto.

- Mas eu durmo - Ele se levanta, pegando a xícara ao lado e saindo do quarto. Suspirando, limpo tido o quarto sem necessidade alguma, saindo de lá meia hora depois em direção do cômodo aonde com certeza toda a bagunça da casa ficava.

O quarto do Luan.

Pelo horário, eu sabia que ele estava dormindo, não tinha dúvidas, mas eu precisava acordá-lo se quisesse limpar aquela bagunça.

- Luan - Chamo assim que entro no cômodo, indo abrir as cortinas e depois a janela. Na cama, ele parecia em coma ou qualquer coisa do tipo, pois nem se mexeu, continuou dormindo roncando alto - Luan - digo mais alto e dessa vez consigo com que ele se assuste e semicerre os olhos desnorteado - Bom dia!

- Ah, Luíza - Ele geme, tentando colocar o travesseiro na cabeça - Você de novo...

- E preciso limpar esse quarto.

- Tá limpo - Olho ao redor sem ter como concordar com ele. Aquele quarto estava um verdadeiro chiqueiro, havia roupas por toda parte, lixo e o banheiro parecia de rodoviária. Luan era daquela forma e mesmo que a mãe dele pedisse sempre para cooperar com toda aquela bagunça, ele até tentava mas não conseguia. Já era dele mesmo viver no meio de toda aquela bagunça.

- Vamos. Levanta.

Ele resmunga alguma coisa, mas não dou importância, já que começo a juntar toda aquela roupa espalhada e suja. Depois de alguns minutos, Luan consegue levantar e vai direto para o banheiro, aonde passa mais alguns minutos até finalmente sair do banheiro ainda molhado pelo banho.

- Outro baile? - pergunto quando já não tinha mais roupa em nenhum lugar.

- Perco algum?

- Luan... - Não era bom ouvir dele que estava indo a bailes em favelas. Adolescentes como Lucas e Luan, não era muito aconselhável irem para lugares como aquele. Era perigoso.

- O quê?

- A sua mãe não vai gostar de saber disso.

- Ela não precisa saber. É só você não contar.

- Não vou contar - Aquele era um assunto que não era da minha conta. Não estava trabalhando naquela casa para ficar de olho nos filhos dela, ela não me contratou para isso, então não tinha direito algum de me meter na vida deles - Aqui sou apenas a empregada.

- Não é bem assim.

- É assim sim, Luan. Só quero que você... tome cuidado.

- Tô ligado, Luíza. Tô ligado.

Eu sabia que não. Ele não sabia de todos os perigos, não tinha ideia do que era viver em uma favela, sobre as regras de traficantes. Eles não sabiam e era tão bom isso, eu queria poderia estar daquele lado deles, aonde a vida era melhor, a comida, as pessoas... não do lado aonde havia mais sofrimento e luta do que vitórias. Luan era privilegiado demais para estar na nossa pele, como era ser negro e favelado.

Demoro cerca de duas horas para colocar o quarto de Luan em ordem. Muito lixo acabou sendo tirado e muita roupa suja, principalmente do guarda-roupa. Ele até que ajudou do jeito dele, tentando guardar roupa que estava suja de volta no guarda-roupa.

Quando finamente saio do quarto, me deparo com César vindo do escritório. Tinha dias que ele não ia trabalhar e trabalhava dali mesmo, acho que era o lado bom em ser advogado. Eu não gostava muito, me sentia como se estivesse sendo vigiada, como se ele estivesse de olho em cada passo que eu dava e esperando eu ter um deslize, era diferente da doutora Gabriela que, não parecia se importar comigo limpando por aí.

Ele olha para o saco de lixo em minha mão e o cesto de roupas na outra com um certo pesar.

- Desculpa por isso, Luíza.

- O quê? - Sigo seu olhar para as minhas mãos, entendendo sobre o que estava falando - Ah, isso

Não é nada não.

- Claro que é. Este quarto é um lixão. Dá para sentir o cheiro até com a porta fechada - diz irritado, pouco se importando se o filho escutaria ou não. Claro que eu queria que não escutasse e tentei fazer com que Luan não escutasse, o que foi inútil, pois no momento em que estava me preparando para fechar a porta do quarto, ele segura a maçaneta e a puxa para trás, indo de encontro ao pai.

- É meu quarto - Ele faz questão de lembrar - Faço o que quiser da porta pra dentro.

- Mas a casa não é sua.

- É da minha mãe.

O clima se torna tenso de um instante para o outro, tão rapidamente que me assusta. Não gostava quando aquilo acontecia, não gostava quando os dois se enfrentavam daquela forma e ainda por cima por causa de bobagens, por que era sempre bobagens, nunca era por algo realmente relevante. E cada discussão daquela, só me fazia ter a impressão que só piorava, estava saindo do controle, eu sentia isso e não sabia como impedir que as coisas saíssem do controle mais do que já estava.

- Você não vai ter ela pelo resto da sua vida.

- Eu sei disso.

- E ela também não vai proteger você para sempre.

- Quer dizer alguma coisa com isso? - Ele estreita os olhos, dando um passo para frente, me deixando no meio deles.

- Vai estar sem seus privilégios quando isso acontecer.

Foi o estupim, Luan tentou avançar sobre César e como eu estava no meio, acabei prensada entre os dois e enquanto tentavam se agredir, acabei sendo ferida. Quando perceberam isso, Luan fixou paralisado, o que foi mais do que o suficiente para César aproveitar a oportunidade e desferir um soco contra o rosto de Luan que, perde o equilíbrio e bate a cabeça.

- Luan! - grito assustada, mesmo sentindo dor em uma parte do meu corpo, vou até ele, tentando ver se ele estava bem.

Como esperando, ele se afastou do meu contato irritado com o pai e se levantou se apoiando.

- Você é um moleque! - César grita, praticamente rosnando em cima do menino.

- Luan, entra no quarto - digo querendo evitar o pior, mesmo com a sensação que o pior já estava acontecendo bem ali.

- O que está acontecendo? - Lucas pergunta, saindo do quarto.

- Não é nada, Lucas - digo.

- Só seu irmão que precisa acordar pra vida - César continua. Por fim, Luan me obedece e entra no quarto, não antes de bater a porta do quarto com força, provocando mais xingamentos da parte de César que, xingava tanto que parecia estar até babando de raiva.

Meu ombro doía e um lado do meu rosto, sabia quem havia sido o autor daquilo. Só sabia que havia ficado num lugar que não era para ter ficado. Já havia presenciado discussões entre os dois, sempre calorosas, cheias de ofensas e tudo mais, algo que não era natural e nem saudável para uma relação de pai e filho. Apesar de Mário ser um péssimo pai e não agregar em nada na vida de Júlia, não queria que ela chegasse aquele ponto com o pai, era triste.

Após colocar a roupa para lavar e por o lixo no lixo, vou para a cozinha, aonde ainda trêmula, tento me acalmar. O primeiro copo de água não me acalmou, precisei tomar o segundo e a metade de um terceiro, até começar a me sentir mais calma.

- O que aconteceu, Luíza? - Lucas pergunta, ao se aproximar em silêncio.

- Não foi nada - Não parecia me ser uma boa ideia entrar em detalhes com tudo que aconteceu, não queria parecer que estava sendo fofoqueira ou algo do tipo.

- Como nada? Eles estavam discutindo de novo.

Dou de ombros.

Ele mais do que ninguém, mais do que eu mesma, sabia como era a relação do irmão e do pai, já deveria ter presenciado muitas discussões ou até mesmo agressões. Era difícil de saber mas, era fácil de imaginar. Só não entendia o motivo pelo qual os levava a discutirem tanto, a se desentenderam constantemente como se estivessem em pé de guerra constantemente. A verdade era que César e Luan viviam em pé de guerra e, duvidava de que a doutora Gabriela soubesse do que acontecia em sua ausência, quando não estava por perto para intervir.

Com certeza ela não iria aprovar nem um pouco aquele comportamento do marido, aonde deixava claro qual era seu filho preferido. Só não conseguia entender o por que de fazer essa divisão, os dois adolescentes eram ótimos, meninos muito bem educados mas cada um com sua particularidade. Parecia que simplesmente César havia escolhido amar apenas Lucas e Luan que simplesmente aceitasse a decisão dele.

Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, mesmo eu sabendo que não iria dizer nada. César entra de repente na cozinha, a expressão séria.

- O que aconteceu, pai? - Lucas insiste, querendo saber o que havia acontecido.

César suspira, colocando uma mão no ombro do filho.

- Só mais uma discussão com seu irmão.

-  E por que agora?

- Ele acha que vai ter empregado pra sempre.

Lucas revira os olhos suspirando, se contentando com a resposta do pai.

- Eu vou tentar conversar com ele depois.

- Deixa pra lá, tá bom, meu filho? Agora volta lá pro seu quarto - Ele não hesita, obedece o pai. Os segundos seguintes foram de completos silêncio, até que César decide quebrar o silêncio.

- Se machucou não, não é?

- Não - digo sem hesitar, não querendo me fazer de vítima ou algo do tipo. Só queria voltar para meu trabalho e esquecer aquilo que aconteceu.

- Você sabe que o que aconteceu...

- Sim. Eu sei - Não permito que ele termine a frase que eu já conhecia muito bem. Sabia meu lugar naquela casa e nas outras também e, última coisa que eu queria era me meter na vida dos meus patrões. Já estava velha de saber que não estava ali para isso e não queria que César fizesse questão de me lembrar disso, infelizmente se ele quisesse que eu mudasse de opinião a respeito de Luan, eu teria que mudar, pois eu dependia daquele emprego, era dali que sustentava minha filha e com certeza ele sabia disso.

- Ótimo, Luíza. É bom saber que você entende.

- Eu entendo, sim, senhor.

Ele dá um meio sorriso, antes de ir até a geladeira e eu começar a me sentir mal por estar ali e, voltar para o trabalho o mais rápido possível. Ainda trêmula com o que havia acontecido.

Baixe o aplicativo agora para receber a recompensa
Digitalize o código QR para baixar o aplicativo Hinovel.