Tese Sobre o Prazer - Capítulo 3
A sexta-feira chegou com a cidade abafada, como se o ar se recusasse a circular. Os corredores da universidade estavam mais vazios do que o habitual. Última aula da manhã, poucos professores no campus. A movimentação era quase silenciosa — ideal para quem procurava não ser notado.
O nome na plaquinha de madeira entalhada ainda reluzia na porta:
Prof. Dr. D. A. Moretti — Literatura Contemporânea
Dentro do gabinete, o ambiente era denso. As janelas altas deixavam entrar luz suave, mas as persianas fechadas quebravam o excesso. Prateleiras cobriam quase todas as paredes, abarrotadas de livros grossos, alguns com marcas de uso intenso. No centro, uma mesa de madeira maciça e duas cadeiras de couro. E, atrás dela, ele — paletó pendurado no encosto, mangas dobradas, os dedos segurando uma caneta, o olhar mergulhado em papéis.
A batida na porta foi sutil.
— Entre — disse, sem levantar os olhos.
O som da maçaneta girando foi seguido pelo clique da porta sendo fechada. Quando ele olhou, encontrou Luna parada à frente da mesa, vestida com uma camisa preta abotoada até o meio, deixando o sutiã de renda vermelho à mostra num descuido calculado. A saia era justa, o suficiente para revelar as coxas ao caminhar. Ela carregava um caderno pequeno e uma expressão contida demais para ser inocente.
— Vim tirar uma dúvida — disse, simples.
— Sobre o quê?
— Sobre linguagem ambígua. — Um sorriso lento curvou seus lábios. — E interpretações duplas.
Ele apontou a cadeira à sua frente com um gesto. Ela sentou-se com calma, cruzando as pernas, apoiando o caderno no colo.
— Fale — disse ele, mantendo a voz neutra, o corpo relaxado apenas na aparência.
Ela olhou em volta antes de responder, como se avaliasse o ambiente, absorvendo cada centímetro do lugar onde agora estavam sozinhos. A porta estava fechada. Sem janelas visíveis da parte de fora.
— Em certos textos, algumas palavras só revelam seu sentido real para leitores experientes. — Ela o olhou diretamente. — O senhor acredita que todo texto tem uma camada secreta?
— Os melhores têm.
Ela mordeu o lábio inferior, como se processasse a resposta.
— E quando o autor escreve só para um leitor específico?
Ele pousou a caneta. Estava cansado daquele jogo feito de eufemismos e metáforas. Ou talvez estivesse à beira de ceder.
— O autor corre riscos — disse, enfim. — Especialmente quando o leitor entende demais.
Ela inclinou-se ligeiramente para a frente. O decote agora mais visível. O perfume — doce e penetrante — tomou o espaço entre os dois.
— Às vezes, entender é inevitável — sussurrou. — Mesmo quando não é permitido.
Silêncio. O tempo parecia expandir ali dentro, pressionando contra os dois corpos.
Ele se recostou na cadeira, olhos fixos nela.
— Você entende de limites, Luna?
Ela piscou devagar. A pergunta cortou como um bisturi.
— Depende de quem os impõe — respondeu. — E de como.
A tensão entre os dois se condensou, como nuvens carregadas prestes a explodir. O som do ar-condicionado era o único ruído no ambiente. A mesa entre eles parecia simbólica — distância física que já não sustentava a emocional.
— O que você está fazendo aqui? — ele perguntou, agora com a voz mais grave.
— Me perguntando o que o senhor faria... se eu ultrapassasse alguns desses limites.
Ela o provocava com maestria. Nada soava desesperado ou vulgar. Cada palavra era escolhida, calculada, com a elegância de uma personagem que sabia que o autor estava assistindo.
Ele levantou-se.
Contornou a mesa devagar. Seus passos ecoaram como batimentos cardíacos.
Ela o seguiu com os olhos, mas não se moveu.
Ele parou ao lado dela. Perto demais. A respiração dele agora podia ser sentida, quente, com um leve aroma de café e desejo contido.
Inclinou-se levemente. A mão pairando no ar, sem tocar.
— Você joga bem. Mas há jogos perigosos demais.
— E excitantes demais para abandonar — ela sussurrou, virando o rosto em direção à voz dele.
Seus rostos estavam próximos. Centímetros. Ele podia ver cada cílio dela, o brilho úmido nos lábios.
A mão dele subiu devagar, até alcançar o queixo dela. Com um gesto leve, mas firme, ergueu seu rosto.
O toque era quase imperceptível, mas sua intensidade sacudiu ambos.
— Vá — disse, num tom entre comando e súplica. — Antes que eu faça algo que não posso desfazer.
Ela não respondeu.
Apenas encarou-o por um segundo longo demais. Um silêncio cheio de sim.
E então, obedeceu.
Levantou-se com leveza, ajeitou a alça da bolsa no ombro e caminhou até a porta.
Antes de sair, virou-se uma última vez, encostada no batente:
— Só para constar, professor... não sou boa em parar no meio.
Ele não respondeu. Apenas a olhou. Como quem contempla uma linha que já foi cruzada.
Ela fechou a porta atrás de si. E com ela, levou o ar inteiro do gabinete.
Naquele fim de tarde, o gabinete parecia suspenso no tempo.
O ar parado, as luzes amareladas lançando sombras nas paredes forradas de livros. Ele permanecia de pé, mãos mergulhadas nos bolsos da calça social, os ombros tensos, o maxilar rígido. Seus olhos estavam fixos na cadeira onde, minutos antes, Luna estivera sentada, cruzando as pernas, inclinando o corpo, soltando palavras como iscas para algo que ele mal se permitia nomear.
Mas agora não havia mais espaço para disfarces.
O cheiro suave do perfume dela ainda pairava no ambiente, misturado ao calor do próprio corpo que ele mal percebera suar. A pele do dedo indicador — o mesmo que tocou de leve o queixo dela — ainda parecia em brasa. Tão pouco contato, mas a memória era física, vívida, indelével.
A frase que ela deixara flutuava na sua mente como um feitiço sussurrado:
"Depende de quem os impõe."
Ele repetia mentalmente, e cada vez soava mais perigosa. Mais sedutora. Era uma rendição? Um desafio? Ou ambos? Talvez ela soubesse exatamente o que dizer. Talvez estivesse testando até onde ele iria.
Talvez ele já tivesse ido longe demais.
Andou até a cadeira onde ela se sentara, como se precisasse confirmar que ela de fato estivera ali. A ponta dos dedos tocou o encosto. Depois, ele se sentou no mesmo lugar, os cotovelos nos joelhos, as mãos entrelaçadas sob o queixo.
E ficou assim por longos minutos. Pensando. Sentindo.
Tentando, inutilmente, controlar a respiração.
O silêncio foi quebrado apenas pelo som suave de uma notificação.
Do outro lado do campus, Luna encostava-se ao próprio carro. A luz do pôr do sol pintava reflexos avermelhados na lataria, e ela olhava a tela do celular como quem escreve não uma mensagem, mas um segundo capítulo.
Os dedos digitaram com precisão, sem hesitação.
“Obrigada pela consulta.
Me sinto… estimulada a continuar o estudo.
Até a próxima aula.”
Sem emoticon. Sem nome.
Ela sabia que ele reconheceria.
Sabia que não precisava assinar o próprio desejo.
Pressionou “enviar” e sorriu. Um sorriso pequeno, controlado. Mas havia fogo atrás dele.
Enquanto isso, de volta ao gabinete, o celular dele vibrou sobre a mesa. Ele estendeu a mão, desbloqueou a tela. Leu a mensagem devagar, uma vez. Depois outra. O coração disparou — não de surpresa, mas de confirmação.
Ela tinha entendido o jogo. E estava dentro.
Ele apagou a tela, encostou-se à cadeira e fechou os olhos.
Não havia mais dúvida. A tensão entre eles agora era só o prenúncio.
Porque, a partir dali, nenhum dos dois sairia inteiro.
