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O fio da meada: uma fronteira entre o bem e o mal.

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Orlando Rodrigues
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Resumo

Karina é uma empresária de sucesso no ramo de joias e pedras preciosas que se envolve em um perigoso esquema de tráfico de influências, contrabando e corrupção. Para se livrar da situação ela contrata os serviços de Miguel, um detetive sem muito caráter, que se aproveita de influências para conseguir obter o que deseja. A trama é repleta de situações de suspense, intrigas, traições e enfrentamento de dilemas éticos presentes na vida de pessoas comuns. O fio da meada é um romance policial, cuja narrativa aborda temas bastante atuais envolvendo contrabando de pedras preciosas, mineração ilegal, tráfico de influências, traições, assassinatos, lavagem de dinheiro, corrupção na política e falsidade ideológica. A história apresenta o confronto cotidiano entre dilemas éticos relacionados ao bem e o mal, escrito de maneira simples e objetiva sobre situações do cotidiano.

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Capítulo 1

Karina olhou o relógio para verificar as horas. Já passava das dezenove horas e ela ainda permanecia nas dependências da empresa, já vazia. O dia todo havia sido muito intenso. Apesar de exausta, estava preparando sua agenda de compromissos para o dia seguinte. Metódica, esforçava-se para manter o máximo de controle sobre os assuntos afetos à administração.

O silêncio daquele ambiente deserto foi interrompido por ruídos de passos pelo corredor. Karina estremeceu. Estava convicta de que todos já haviam saído inclusive Jonas e Alice, seus dois sócios.

Os dois chegavam e saíam mais cedo para terem tempo de cuidar dos preparativos do casamento e compra de enxovais, inclusive, do bebê que iria nascer. O sistema de segurança da empresa garantia o monitoramento 24 horas e dispensava a necessidade de um vigilante após o turno de serviço.

Preocupada, parou suas atividades para perceber melhor o ambiente. O som de passos pelo corredor acelerou seu coração. O ruído cadenciado de cada passo dava a ideia de uma proximidade cada vez maior, aumentando sua sensação de pânico. Um movimento na maçaneta da porta acelerou seus batimentos cardíacos. A tensão aumentou. Sentiu um suor gélido nas mãos claras e finas, seguidos de uma secura na boca e um calafrio na espinha. Atônita, como se o mundo parasse naquele momento, observou a porta abrir-se lentamente.

A tensão aumentou ainda mais, gerando um pequeno desconforto em sua respiração.

— Porra, que susto! — esbravejou — Você está só? Esqueceu alguma coisa? Assim você me mata de susto! — Reclamou.

— Calma, eu vim pegar algumas coisas que havia esquecido. Vi as luzes de sua sala acesa e resolvi verificar se ainda estava aqui. Já está tarde, não vai embora? Se estiver sem carro, posso lhe dar uma carona.

— Pode deixar. Eu já estava de saída quando ouvi seus passos pelo corredor, mas já estou indo. Até amanhã!

Karina levantou-se apressada, saiu da sala e desceu as escadas, ainda tensa, até a garagem deserta. Apenas seu carro permanecia no local, próximo ao elevador privativo do prédio. O veículo, recém adquirido, estava ainda mais vistoso naquele ambiente vazio.

Apressada, acionou a distância o alarme do carro, destravando as portas. O barulho do salto alto de seus sapatos ecoava por todo o subsolo do prédio e, meio que saltitando, correu até o veículo.

Rapidamente acionou a ignição e saiu de arrancada, fazendo cantar os pneus no piso rústico da garagem.

Empresária do ramo de joias e pedras preciosas, Karina Lousano, formara-se em administração de empresas e orgulhava-se de ser bem sucedida nos negócios, apesar da pouca idade. Ainda não havia completado trinta anos e sua empresa Cores & Brilho já lhe rendera o prestígio de empresária de sucesso, com dois prêmios seguidos de destaque do ano, concedidos por uma entidade de classe.

A onda de violência contra empresários na cidade, contudo, a preocupava. As notícias dos jornais e os telejornais na TV, bombardeavam estórias de sequestros, estupros e assassinatos, principalmente de jovens empresários, médicos e advogados.

As causas eram sempre as mais diversas, desde agiotagem, crimes passionais, tráfico, uso de drogas e crimes contra homossexuais.

Empreendedora e muito ativa, dividia o tempo entre o trabalho na empresa, o curso de francês e muita malhação para manter o belo corpo em forma e aguentar o pique exigido pelo sucesso empresarial.

Tinha planos de fazer uma longa viagem à cidade luz, Paris, e morar por alguns meses na capital francesa.

Considerava a França um dos grandes berços da cultura ocidental e sonhava poder vender seus produtos para os franceses, na França.

Os últimos dias na empresa, porém, foram tensos, marcados por atritos com um grupo de fornecedores apresentados a ela por intermédio de Jonas que os conhecera em uma viagem ao Pará e interior de Goiás.

Karina, intuitivamente, suspeitara do grande interesse de seu sócio para finalização do negócio. Tal situação a deixou com os nervos à flor da pele.

A menos de cinco quadras da empresa, em uma avenida já sem o atordoante movimento do horário de rush, o semáforo acendeu a luz vermelha e ela parou, já quase sobre a faixa de pedestres.

Algo pouco comum para ela que, costumeiramente, durante a noite, furava os sinais para não correr o risco de ser vítima de um assalto ou de um sequestro relâmpago, algo que estava cada vez mais comum, na cidade.

Pensativa, relembrando a tensão dos últimos dias, parada em frente ao semáforo ainda vermelho, esfregava as mãos e batia com os dedos no volante como se tivesse teclando alguma coisa.

A noite estava bastante fria, fato raro na cidade àquela época do ano, em pleno inverno do cerrado, geralmente seco, de muito calor durante o dia e uma pequena queda de temperatura à noite.

Ansiosa por estar parada naquele local, àquela hora da noite, assustou-se ao ouvir socos no vidro da porta do motorista.

Um frio na espinha e um peso nas pernas foi seguido de uma expressão horrorizada ao perceber um rosto grudado no vidro.

O rosto de uma criança de rua maltrapilha, com a boca semiaberta grudada no vidro da porta, parecia assustador, monstruoso e faminto.

A imagem desfigurada daquela criança balbuciou algo que ela não conseguiu ouvir. Ao mesmo tempo uma chamada pelo aplicativo de seu celular a assustou ainda mais.

— Alô! Karina? Por acaso Jonas está com você? — Perguntou Alice, sem muito rodeio e com o tom de voz preocupado.

— Não! Por que haveria de estar? —Estranhou — Se você que é a noiva não sabe eu é que não vou saber? — Arrematou com ironia, embora tensa com as caretas feitas pelo menino que ainda permanecia com o rosto grudado no vidro, já embaçado pela sua respiração.

— É que ele está fora há algum tempo e deixou o celular desligado. Preciso falar com ele e não consigo.

—Vocês não saíram juntos da firma? — Indagou Karina, acelerando o carro na reabertura do semáforo e olhando o menino pelo retrovisor. Karina Sentiu um misto de medo e pena daquele menino mirrado.

— Ele saiu bem mais cedo para resolver uns problemas. Não quis me dizer o que era e...

A linha caiu. A bateria do celular havia descarregado. Karina bradou a falar sozinha.

— Porra! Tinha que acabar a bateria agora? O carregador está na bolsa do banco de trás e não vou parar o carro a essas horas, nesse lugar, para pegá-lo. Alice que se vire com Jonas. Quase me matou de susto, chegando de mansinho no escritório. Filho da puta! O stress foi tanto que nem percebi que saí e deixei ele lá falando às paredes. Opa! Ele estava falando com alguém. Pude perceber isso logo que ele saiu e entrou na sala dele. Falava baixo com alguém, meio cochichando. Esse merda está aprontando alguma coisa.

Jonas havia voltado ao escritório com a intenção de desfrutar um momento a sós com Karina e falar-lhe de seus sentimentos em relação a ela, apesar do desdém que era tratado.

Ela quase nunca lhe dava ouvidos a não ser sobre assunto de trabalho. Além do sentimento não correspondido, seu noivado com Alice era um ponto de conflito pessoal que precisaria ser resolvido rapidamente, já que o relacionamento entre os dois estava turbulento.

A última discussão havia acontecido naquela manhã, ainda na empresa, logo após o início do expediente, por motivos de ciúme.

Jonas ficara furioso e saíra mais cedo que o habitual, além de desligar o celular para não ser atormentado.

Seus problemas sentimentais somaram-se à pressão que vinha recebendo de um grupo de intermediadores no comércio de pedras preciosas, desde os pontos de garimpo até as indústrias de lapidação.

O que parecia ser algo simples de se resolver passou a ter um caráter de disputa de poder dentro da empresa Cores & Brilho, com a recusa de Karina em aceitar as propostas dos intermediadores.

— Karina, esse pessoal é mito bem relacionado. Tem gente graúda envolvida. Podemos ganhar muito dinheiro com isso.

— Jonas, eu não sei. não estou com bons pressentimentos. Esmola demais o santo desconfia.

Jonas, um garotão mimado, no auge de seus vinte e nove anos de idade, vivia o seu dilema existencial em relação ao casamento prestes a acontecer, considerado apenas sob a perspectiva de um negócio e uma paixão não correspondida por Karina, somadas a uma enorme vontade de enriquecer rapidamente.

Qualquer rompimento de noivado àquela altura só iria piorar as coisas. Jonas gostava de Alice e sentia atração por ela, embora a considerasse uma pessoa dissimulada, manipuladora e oportunista.

Às vésperas do casamento, o relacionamento parecia desgastar-se a cada dia, com cobranças e crises de ciúme dos dois lados, principalmente de sua noiva em relação a um possível affair entre ele e Karina.

— Voltei ao escritório, cheguei agora. Minha sócia, aquela maluca, está aqui ainda. Tenho de falar baixo. Paredes tem ouvido e as da sala de Karina tem olhos e sentem cheiro também. Fale logo o que você quer.

— Calma Jonas. Tá nervosinho? Precisamos fechar esse negócio rapidamente e você tem de resolver essa questão aí na empresa.

— Eu sei caralho, mas não é bem assim. Karina é a majoritária. Ela é controladora pra cacete. Fica de olho em tudo e parece que já está desconfiada de alguma coisa.

— Se vira. Você não é chegado dela? Vá pra cima. Chama ela pra jantar. Só você e ela. Faça ela beber, bota alguma coisa na bebida. Dá um jeito porra!

— Estou tentando porra! Ela não me dá bola. Já tentei isso. Ela nunca aceita sair sozinha comigo. Sempre a Alice tem de ir a tiracolo. E Alice é a dissimulação em pessoa. Ela faz drama, tem crise de ciúme e usa isso contra mim.

— Cara, problema seu. Resolva!

◆◆◆

Alice ficara irritada com a queda da ligação.

"Karina está com Jonas. Tenho certeza. Esses dois tem alguma coisa. Aquela bruxa, metida a dondoca certinha está ficando com ele, mas eu vou descobrir e mato os dois." Pensou em voz alta. — "E se eu for ao apartamento dela? Não. Eles não se encontrariam em um lugar tão óbvio. Vou ligar para o Simão. Ele e Jonas estão sempre juntos. São amigos e um deve fazer confidencialidades para o outro. Se é que homem age assim."

Pedro Simão ou apenas Simão como era conhecido o amigo íntimo de Jonas conheceram-se por acaso em uma mina de diamantes no interior de Goiás. Alice o considerava uma pessoa agradável, de muita inteligência e dono de um sorriso sedutor, porém, ousado o bastante para lhe fazer investidas sutis na frente de Jonas, deixando-a desconcertada.

Tanta ousadia parecia, aos olhos dela, fazer parte da personalidade de Simão, um homem com pouco mais de trinta anos, moreno, olhos e cabelos castanhos, bonito e de corpo atlético.

Era ele quem intermediava os negócios com pedras preciosas, comercializando minérios do Brasil para a Europa, principalmente França, Itália, Japão e China.

"Simão é um cara interessante. Vive dando em cima de mim. Posso levar alguma vantagem nisso."

— Simão, Alice falando, como vai?

— Olá “gata”, a que devo a honra de ouvir sua voz?

— Estou procurando pelo Jonas. Por acaso ele está com você?

— Nem estou na cidade. O que é uma pena, pois, pelo jeito você está sozinha. Estou com saudades desse seu corpo gostoso.

— Mais respeito Simão, eu estou grávida.

— É mesmo? E você já sabe quem é o pai da criança?

— Vá te foder Simão, não enche o saco. Quando estará na cidade?

— Dentro de uns dois dias. Estou envolvido com algumas remessas. Não dá pra falar ao telefone.

— Cuidado com o que você fala com o Jonas.

— Que isso garota? Vai ensinar padre nosso ao vigário? Quando eu estiver na cidade te ligo, combinado?

— Ok. — Filho da Puta desligou, caralho!

Filho único de um coronel reformado do exército, Jonas fora criado sobre rígidos padrões morais e todo o conforto que uma criança poderia esperar para uma família de classe média alta.

O desejo de seu pai era vê-lo seguir a carreira militar, mas, sua rebeldia juvenil o forçou a sair de casa e morar só, em um apartamento adquirido em Brasília, pago pela mãe às escondidas do marido, com dinheiro de economias e o salário de professora universitária.

A lealdade e o carinho de sua mãe, no entanto, só foram possíveis graças a uma promessa que ele fez de cursar uma faculdade e trabalhar para o governo ou em uma multinacional.

Jonas se formara em geologia, pois desde criança era fascinado por pedras, chegando a manter em seu quarto um armário com diversas caixinhas repletas de pedras de todas as partes do país e de todo o tipo de solo, coletadas nas viagens que fazia com o pai e a mãe.

O encantamento pelas pedras favoreceu sua formação profissional e a ganância pelo enriquecimento fácil.

Com o falecimento prematuro de seus pais, herdara várias propriedades, incluindo apartamentos em Brasília e Goiânia, além de casas e chalés em Caldas Novas, polo turístico hidrotermal no interior de Goiás.

Alguns amigos lhe diziam que não precisava trabalhar, mas ele fazia questão de cumprir a promessa feita a sua mãe.

Trabalhara em uma mineradora multinacional até tornar-se sócio da Cores & Brilho. Com o tempo, seus conhecimentos sobre os meandros ligados à exploração, produção e comercialização de pedras preciosas foram aumentando.

Atuar no ramo de pedras preciosas era algo esplêndido, principalmente quando se tratava de vender e comprar diretamente dos produtores, nas minas espalhadas pelo país.

Jonas nunca temera o fato de enfrentar problemas relacionados à clandestinidade ou contrabando. A prática do dia a dia, aliada aos contatos com Simão já havia lhe mostrado os atalhos possíveis e necessários para aumentar a lucratividade nos negócios.

O maior entrave seria a oposição de Karina. Assim, muito do que fazia passava longe dos olhos dela e envolvia negociatas de alto risco.

O mercado ilegal de pedras preciosas sempre incomodou Karina que acompanhava diariamente as notícias sobre o assunto. Desvio de divisas, contrabando, trabalho semiescravo nas minas, sonegação de impostos e assassinatos, eram parte do repertório de notícias ligadas ao comércio ilegal.

Dinheiro sujo entrando e saindo do país, a serviço do contrabando e do tráfico de influências, nos bastidores do poder político e frequentemente associado à produção mineral, principal insumo da empresa.

Uma das primeiras incursões de Jonas pelo mundo da contravenção aconteceu a partir do momento em que Simão lhe propôs uma parceria para remessa de dinheiro ao exterior.

Tudo seria relativamente simples, bastando a Jonas utilizar uma de suas contas bancárias para as movimentações e remessas.

No início fora tudo muito fácil e rápido, mas aos poucos as remessas se tornaram cada vez maiores e mais complexas.

As remessas volumosas de dinheiro ao exterior e as excessivas movimentações de depósitos e transferências de valores entre contas, despertaram a curiosidade de Hugo, gerente de um dos bancos com os quais movimentava suas contas pessoais e as contas da empresa.

O jovem e promissor bancário vinha progredindo rapidamente no banco. Com pouco tempo chegara à função de gerente geral de operações financeiras de uma das maiores instituições bancárias de país.

Criterioso nos negócios, coordenava diversos trabalhos sobre prevenção à lavagem de dinheiro. As movimentações financeiras da Cores & Brilho e as contas dos sócios recebiam sua atenção especial. A qualquer sinal de irregularidade, sentia-se na obrigação de alertar seus clientes. Contudo, suas abordagens vinham causando conflito e descontentamento.

“Karina, venha até a agência quando puder. Preciso te alertar sobre algumas movimentações de dinheiro nas contas dos sócios. Aqui pelo aplicativo de mensagens não dá pra conversar. É necessário que seja pessoalmente. Você é a sócia majoritária dos negócios e é a única que se importa com legalidade e transparência. Já conversamos sobre isso. Te aguardo.”