Quem te mandou aqui?
**Maria Silva**
Os lábios de Heitor eram firmes, mas gentis, e por um momento, tudo ao meu redor deixou de existir. Não era como Gabriel, que sabia usar palavras doces para mascarar sua verdadeira natureza. Nem como Bruno que me fazia esquecer quem eu era. Heitor não precisava de palavras. Ele era um homem de gestos, de ações, e cada uma delas me fazia perceber o porquê de tantas mulheres na vinícola suspirarem ao vê-lo passar.
Mas foi só um beijo. Um momento que parecia suspenso no tempo, mas que logo foi interrompido pela realidade que nos cercava. Nós dois sabíamos que era cedo demais para qualquer coisa além disso. Não havia pressa. O silêncio confortável que se seguiu confirmou isso, e eu sorri timidamente antes de afastar os olhos dos dele.
Heitor serviu mais uma taça de vinho para cada um de nós. O aroma encorpado preencheu o ar, misturando-se com o cheiro doce do chocolate que ele havia trazido. Peguei um pedaço pequeno e deixei derreter na boca enquanto observava o fogo dançar na lareira.
"Você parece diferente hoje," ele comentou, me olhando com aquele jeito calmo que me fazia sentir que ele podia enxergar além da superfície.
"Diferente como?" perguntei, um pouco desconfiada.
"Mais leve." Ele deu um gole no vinho e pousou a taça no braço do sofá. "Como se algo tivesse mudado. Como se, pela primeira vez, você estivesse começando a acreditar que merece o que está vivendo."
Suas palavras me pegaram de surpresa. Ele estava certo, embora eu não quisesse admitir. Pela primeira vez, eu não estava apenas sobrevivendo. Eu estava vivendo. Ainda era estranho pensar nisso, mas cada dia ao lado de Benício, cada passo dado na vinícola, cada conversa com Heitor... tudo isso estava me fazendo acreditar que talvez, só talvez, eu merecesse um recomeço.
"Talvez você esteja certo," murmurei, dando um pequeno sorriso.
"Eu geralmente estou," ele respondeu, brincalhão.
O resto da noite passou em uma tranquilidade acolhedora. Conversamos sobre a vinícola, sobre as pessoas que trabalhavam lá, e até sobre Benício, que parecia estar se adaptando tão bem à fazenda. Não falamos mais sobre eu procurar uma casa. Heitor era um bom ouvinte, e, mais do que isso, sabia como transformar o que parecia um problema em algo muito mais simples de lidar.
O vinho foi diminuindo na garrafa, e o chocolate acabou antes disso. Quando o fogo na lareira começou a perder força, Heitor se levantou e estendeu a mão para mim.
"Hora de descansar," ele disse, me ajudando a levantar. "A senhorita amanhã trabalha cedo."
Caminhamos em silêncio pelos corredores da casa, os passos ecoando levemente no piso de madeira. A noite estava fria, e eu me encolhi um pouco ao sentir o ar gelado tocar minha pele. Ao chegar na porta do meu quarto, ele parou e se virou para mim.
"Maria," ele começou, segurando minha mão com delicadeza. "Eu sei que você ainda tem dúvidas, ainda carrega medos. Mas quero que saiba que estou aqui. Não importa quanto tempo demore, vou esperar por você."
Seus olhos estavam fixos nos meus, sinceros e gentis. Antes que eu pudesse responder, ele se inclinou e beijou minha testa, um gesto que parecia tão íntimo quanto o beijo de antes, mas de uma forma completamente diferente.
"Boa noite," ele disse, soltando minha mão e dando um passo para trás.
"Boa noite," respondi, com a voz quase um sussurro.
Entrei no quarto e fechei a porta suavemente atrás de mim. Encostei-me nela por um momento, sentindo meu coração bater mais rápido do que o normal. Heitor era... diferente. Ele não pressionava, não exigia nada. Ele simplesmente estava ali, como um porto seguro, esperando que eu decidisse ancorar.
O som familiar do telefone me arrancou daquele torpor. Olhei para a tela, e meu coração deu um salto quando vi o nome de Bruno iluminando o visor. Era como se ele soubesse, como se tivesse uma ligação invisível comigo, mesmo a quilômetros de distância.
Minha mão hesitou sobre o aparelho. Não queria atender. Não sabia o que dizer. Mas, ao mesmo tempo, o peso da culpa pressionava meu peito. Será que eu tinha feito algo errado? Não era justo com Heitor. E, ao mesmo tempo, não era justo com Bruno.
Respirei fundo e deslizei o dedo pela tela, atendendo a ligação com a voz baixa.
"Alô?"
"Maria..." A voz de Bruno soou rouca, carregada de emoção, como se ele estivesse esperando aquele momento há dias. "Eu estava com medo de você não atender."
Fiquei em silêncio, incapaz de encontrar palavras.
"Eu sinto tanto a sua falta," ele continuou, a urgência na voz dele me deixando ainda mais tensa. "Estou tentando me livrar da Débora, estou longe dela agora, escondido com os meus pais. Só que meu coração ainda está com você." Ele tinha urgência em dizer aquilo.
A confissão dele me atingiu como um golpe. Eu não sabia como reagir. Não era justo ele me dizer isso agora, quando eu estava começando a me reencontrar, a construir algo novo.
"Maria, você está me ouvindo?" ele perguntou, a urgência aumentando.
"Sim," respondi, minha voz soando fraca, quase um sussurro.
"Então diga alguma coisa. Qualquer coisa," ele implorou.
Fechei os olhos, tentando reunir forças para o que eu sabia que precisava ser dito. "Bruno... talvez seja melhor cada um seguir seu caminho."
"Como assim?" A dor na voz dele era quase palpável.
"Você será sempre o tio do Benício," continuei, lutando para manter a voz firme. "E eu serei a mãe dele. Mas é só isso que podemos ser. Mais nada."
As palavras saíram, mas doeram mais do que eu esperava. Bruno era uma parte importante da minha história, mas essa história havia sido construída sobre alicerces frágeis, cheios de dor e arrependimento.
"Maria, não faça isso," ele sussurrou, mas eu não podia ceder.
"Boa noite, Bruno," disse antes de desligar a ligação, com lágrimas escorrendo pelo meu rosto.
Fiquei ali, sentada na beira da cama, o telefone ainda na mão, enquanto minha mente tentava processar o que acabara de acontecer. Minhas mãos tremiam, e meu peito parecia pesado, como se uma parte de mim tivesse sido arrancada.
O telefone vibrou novamente, e por um instante, pensei em atender. Mas não podia. Não podia dar a Bruno esperanças que eu não podia sustentar. Ele havia sido uma parte importante da minha vida, mas era hora de seguir em frente.
Olhei para a tela e vi a mensagem que ele havia enviado:
*"Eu amo você e vou lutar pelo seu amor."*
As palavras brilharam na tela como uma promessa, mas para mim, eram um lembrete de que eu precisava ser forte. Precisava pensar em Benício, em mim, e no futuro que estava tentando construir.
Apaguei as lágrimas do rosto e me deitei, tentando encontrar paz no silêncio da noite.
