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Candy (II)

Andei na chuva, devagar, sem me preocupar, visto que já estava completamente encharcada. Assim que cheguei em frente ao portão da pensão onde morava, fui diretamente até a recepção:

— Olá, dona Eva. Será que eu poderia, por favor, usar o seu telefone?

Ela me olhou e disse, sem pensar duas vezes:

— Claro.

Arqueei a sobrancelha. A mulher disse “claro”? A velha detestava quando eu pedia para ligar e ainda pedia dinheiro na hora para cobrir o custo da conta.

Enfim, eu não iria questionar. Pior seria se ela agisse como sempre, praticamente me fazendo implorar.

Disquei o número que já sabia de cor:

— Alô — ouvi a voz que fazia meu coração bater mais forte.

— Sou eu, meu amor.

— Candy? — a voz dele foi de felicidade ao saber que era eu.

— Sim... Eu... Preciso falar com você.

— Eu também preciso falar com você — pude ouvir a risada dele do outro lado. — Tenho uma surpresa.

— Jura? Eu também... — limpei as lágrimas que ainda me atormentavam.

— A minha vai ser especial.

— A minha mais... — garanti, sorrindo.

— Podemos nos encontrar na sua casa hoje?

— Claro.

— Chego depois das onze. Trabalho até mais tarde hoje.

— Estarei esperando... Como sempre.

— Amo você.

— Também amo você... Muito.

Desliguei e vi dona Eva vindo com uma xícara:

— Tome este chazinho quente. Você está muito molhada e pode ficar resfriada.

Peguei a xícara e a olhei, confusa. Será que a velha tinha uma irmã gêmea que até então eu não tinha sido apresentada? Porque em nada aquela mulher parecia a que eu conheci há meses: sempre de mau humor, me tratando de forma agressiva e querendo dinheiro até para que eu pudesse respirar dentro do quarto que ela me alugava.

Respirei fundo e olhei para o chá quentinho, com cor levemente amarelada... O cheiro entrando nas minhas narinas... Servido numa xícara bonita, com pires. Não, eu não poderia negar, por mais estranho que parecesse. O final do meu dia havia sido horrível. Então eu poderia imaginar que a atitude dela foi para compensar as coisas ruins que tinha passado.

Assim que bebi o líquido fumegante, me veio à mente a imagem da minha mãe. Seus olhos negros nos meus e toda sua ternura quando me dava chá com abraços apertados.

Bebi o líquido e tentei dissipar a imagem do passado.

— Obrigada, dona Eva — pus a xícara sobre o balcão. — Quanto lhe devo da ligação?

— Não deve nada, menina. O seu namorado disse que sempre que precisar ligar, ele vai pagar.

— Mas... Ele não me disse nada sobre isso.

— Tem sorte. Além de bonito, o rapaz gosta muito de você.

Sorri, pensando que realmente eu tinha sorte por tê-lo na minha vida.

— Obrigada.

Corri até meu quarto, tentando fugir da chuva, mesmo estando com o corpo completamente encharcado.

A senhora Eva alugava quartos. Tinha mais de dez, que ficavam distribuídos enfileirados, cinco de cada lado, ambos um de frente para o outro, separados por um minúsculo corredor, que não era coberto.

Abri a porta e entrei. Fui retirando minha roupa e deixando pelo chão, até entrar no banheiro. O local era pequeno, úmido e abafado. Tinha somente uma janela e uma porta e um banheiro quase precário. Era o que eu podia pagar. Mas eu e meu namorado tínhamos planos.

Senti uma forte tontura e decidi não tomar banho. Só deu tempo de me jogar nua sobre a cama. Tudo começou a girar rapidamente ao meu redor. Mas eu não dei importância. Estava acostumada com os sintomas comuns dos últimos dias. Lembrei do amor da minha vida... Os olhos claros tão lindos que nem pareciam reais. A doçura e o amor que nos unia. Não, ele não teria mentido. Certamente era tudo um mal-entendido e assim que nos víssemos... Eu não conseguia mais raciocinar... Meu corpo não respondia por mim... Estava completamente amolecido. E o sono tomou conta do meu ser.

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— Sua vagabunda... Como pôde?

Ouvi os gritos e abri os olhos lentamente. Minha cabeça ainda latejava, mas o corpo estava mais disposto. O amor da minha vida estava à minha frente... E demorei para perceber que as palavras que ele proferia de forma agressiva e violenta eram para mim.

Levantei a cabeça, apoiando o corpo sobre meus cotovelos na cama e olhei um homem somente com uma toalha tapando suas partes íntimas. Arqueei a sobrancelha, tentando entender o que estava acontecendo.

— Eu devia ter imaginado que você era assim... Meu pai me avisou e eu não quis dar-lhe ouvidos.

Levantei, completamente nua, pegando um lençol para me cobrir.

— Do que você está falando? Quem é você e o que faz aqui? — olhei para o homem desconhecido, completamente confusa.

— Quem sou eu? Você está louca, Candy? Quem é este louco? — o desconhecido apontou para meu namorado.

Os olhos verdes estonteantes estavam completamente carregados de raiva. Senti meu coração acelerar:

— Isso é uma armação! Eu não... Teria chamado você para vir aqui se fosse ficar com outro. Seria muita burra se fizesse isso.

Ele gargalhou:

— Querida, você ligou cancelando... Ou esqueceu isso também? Bebeu tanto que mal sabe quem é.

Olhei para o chão e vi as várias garrafas de cerveja jogadas por todos os lados... Tantas que nem consegui contar.

— Eu... Não fiz isso...

Só lembrava de ter apagado completamente depois de chegar em casa. Minha mente ainda estava confusa.

— Meu amor... Você precisa acreditar em mim — implorei, já começando a chorar compulsivamente.

— Meu amor? Candy, você é uma mentirosa. Como pôde me trair deste jeito? — disse o homem que eu nunca vi antes.

— Eu não sei quem é você... Por Deus, fale a verdade. O que eu fiz para que minta desta forma e tente destruir minha vida?

Meu namorado riu debochadamente:

— Sim... Destruir a sua vida... Ou seus planos, não é mesmo? Sabia que eu era rico e planejou tudo isso.

— Não... Acredite em mim... — ajoelhei-me aos pés dele, implorando que me ouvisse.

Ele deu um passo para trás e pude perceber que também estava chorando. Olhou-me de uma forma tão cruel, que meu corpo desfez-se no chão. Vi quando ele foi até o homem e pegou o braço dele, retirando um relógio:

— Este relógio é meu, seu idiota. Ela me roubou.

— Eu... Não roubei... Eu não sei o que está acontecendo... Acredite em mim...

Ele foi em direção à porta e me jogou uma minúscula caixa vermelha:

— Use como quiser as alianças... Venda para sair deste lugar miserável que você vive, onde precisa mentir e se aproveitar das pessoas para chegar onde quer. E eu que pensei em pedi-la em casamento e lhe dar a vida que achei que merecesse... — ele riu sarcasticamente, as lágrimas descendo pelas bochechas rosadas de raiva. — Nunca mais cruze meu caminho ou o de minha família, Candy ou eu vou destruí-la.

Foi a última vez que o vi.

O homem desconhecido logo em seguida pôs suas roupas e saiu dali, desculpando-se, alegando ser um ator e ter sido pago por tudo. Eu não perguntei quem havia o contratado. Eu já sabia... O senhor que me ameaçara naquela tarde.

Assim que fiquei sozinha, fui até a mesa e tentei pegar o exame de gravidez, mas ele se deteriorou nas minhas mãos, devido à umidade da chuva.

Fiquei enrolada no lenço, no chão, até as lágrimas secarem. Mas não havia acabado minha sina. Dona Eva me mandou deixar o quarto, pois não queria saber de “vagabundas” e seus “machos” dando vexame, pois aquele lugar horroroso era de “família”, segundo ela.

Eu não tinha mais como fugir do meu destino. Peguei minha única mala e voltei para o lugar de onde tanto tentei fugir a vida inteira: o Bordel Califórnia.

Já que fui chamada a vida inteira de vagabunda, sem ser, agora eu realmente faria jus ao que me tomavam como ofensivo. Chegava de ser boazinha e tolerar tudo.

Eu criaria meu bebê sozinha e o homem que me engravidou jamais saberia nada sobre nós. Ele estava morto e enterrado, assim como meu passado.

Olhei para o velho prédio com letreiro neon: HOTEL CALIFÓRNIA e senti um frio na barriga. Eu estava de volta... Ao lugar de onde nunca deveria ter saído.

A noite foi testemunha de tudo que passei. E do quanto fui injustiçada. A minha vingança seria ser feliz. Porque a vida queria me derrubar, mas eu não aceitaria a rasteira. Afinal, eu era uma Smith.

Abri a porta pesada em madeira escura e olhei a recepção pequena e acolhedora. Senti as lágrimas vindo sem pedir licença.

Apertei a campainha sobre o balcão e vi minha mãe esplendorosa, vindo com a vela acesa. Assim que nos encaramos, percebi a felicidade nos olhos dela.

— Mãe, eu voltei!

— Eu estava à sua espera.

Assoprei a vela. Finalmente estava em casa.

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