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Capítulo 2

Isabella Fairchild não precisava de despertador. Seu corpo já tinha decorado a hora exata em que devia abrir os olhos, inspirar fundo e começar o dia. Cinco e meia da manhã. Ainda escuro lá fora. Ainda silencioso o bastante para que tudo parecesse, por alguns instantes, sob controle.

Levantou-se com um único movimento, prendeu o cabelo num rabo de cavalo alto e vestiu a legging preta que parecia uma armadura. Cada detalhe — da playlist motivacional que já ecoava nos fones de ouvido ao tênis perfeitamente alinhado ao lado da cama — era uma escolha deliberada. Porque disciplina era a única coisa que ninguém podia tirar dela.

Saiu do apartamento e desceu para a rua ainda fria de Manhattan. O ar gelado a recebeu com uma lufada cortante. Isabella fechou o casaco até o pescoço e começou a correr em direção ao East River, onde o sol começava a nascer por trás das pontes. Cada passada era uma forma de exorcizar pensamentos desnecessários. O pai ao telefone dizendo que esperava resultados. A voz de Ethan Ramirez repetindo que “talvez ela precisasse aprender a trabalhar em equipe”. E, sobretudo, a imagem irritante de Charlotte Blake — toda opinião, sarcasmo e cabelos desalinhados — atravessando seus pensamentos como uma provocação constante.

Ela acelerou o ritmo, o fôlego ardendo nos pulmões. Não era hora de pensar em Charlotte. Nunca era hora de pensar nela.

Chegando à academia, foi recebida com um sorriso da recepcionista que parecia saber exatamente a rotina que a aguardava.

— Bom dia, Ms. Fairchild. Sala 3 está pronta.

Isabella agradeceu com um leve aceno e entrou no ambiente minimalista, onde as luzes suaves e o cheiro de eucalipto ajudavam a manter a ilusão de tranquilidade. Subiu na esteira, conectou os fones e aumentou o volume da música.

Os primeiros minutos de corrida indoor eram sempre os mais difíceis. Era como arrancar o peso da noite dos ombros. Mas logo, o mundo inteiro se reduzia ao som da respiração e do coração pulsando.

Ela adorava esse intervalo. O espaço entre quem esperavam que ela fosse e quem, de fato, era. Aqui, ninguém a julgava por querer vencer a qualquer custo. Ninguém a cobrava por sorrir ou agradar.

Quando terminou, o relógio marcava 7h45. Tinha exatamente quarenta minutos para tomar banho, trocar de roupa e chegar ao escritório. Isabella recolheu a toalha, inspirou fundo e sentiu o coração acalmar. Pelo menos por agora.

Do outro lado da cidade, Charlotte acordou com o despertador berrando uma música country qualquer que ela mesma escolhera numa noite de tequila e promessas de começar a vida saudável. Esfregou o rosto, tateou o criado-mudo em busca do celular e, por três segundos inteiros, considerou desligar tudo e dormir até terça-feira.

Em vez disso, suspirou e se arrastou até o banheiro. Ao se olhar no espelho, notou que o coque dormira junto com ela, solto em mechas preguiçosas. Parecia apropriado.

No caminho até a cozinha, desviou de uma prancha encostada na parede. A etiqueta ainda presa no bico dizia “Promessa de 2022”. Charlie passou a mão sobre a madeira lisa e sentiu aquela pontada de saudade do mar, das manhãs em Bondi Beach, das horas em que a vida parecia mais simples. Aqui em Nova York, tudo era vidro, concreto e competição. O oceano ficava do outro lado do mundo.

Pegou uma barra de proteína, mordeu sem entusiasmo e abriu a janela. O vento frio bateu em seu rosto como um lembrete de que estava viva — e de que precisava correr. Literalmente. Porque se quisesse chegar ao escritório antes de Isabella, teria que acelerar. E isso era questão de honra.

Tomou um gole de café frio, amarrou o tênis de qualquer jeito e saiu porta afora, rezando para que o destino não conspirasse contra ela naquele dia. Mas, claro, o destino adorava um pouco de ironia.

Charlie correu pelo Hudson River Park, esquivando-se de executivos, turistas e cachorros barulhentos. Cada passada ajudava a afastar as vozes na sua cabeça: o pai insistindo para que ela desistisse, a pressão no trabalho, a certeza de que Isabella era o padrão que ela nunca conseguiria atingir.

Quando chegou ao fim do percurso, respirava tão ofegante que precisou sentar em um banco frio por alguns segundos. O sol já se erguia sobre a cidade, dourando os prédios como um lembrete de que havia beleza até ali, no meio do concreto.

O celular vibrou no bolso. Uma notificação da firma: Reunião de alinhamento — hoje, 9h.

Charlie soltou um palavrão baixinho. Precisava correr para casa, tomar um banho decente e tentar parecer que tinha tudo sob controle — mesmo que o cabelo molhado entregasse o contrário.

O escritório parecia ainda mais silencioso quando Isabella chegou, pontual como sempre. Caminhou pelo corredor iluminado, sentindo o aroma de café fresco misturado ao cheiro de papel novo. Alguns colegas já se acomodavam em suas salas, mas ninguém ousava se aproximar. Ela gostava assim. Um espaço limpo, previsível, controlado.

Sentou-se à mesa, abriu o laptop e começou a revisar os documentos que pretendia usar na reunião. A estratégia estava clara: ela não permitiria que Charlotte Blake a distraísse com provocações baratas. Não hoje.

No fundo, sabia que Ramirez queria observar as duas juntas antes de bater o martelo sobre quem lideraria o caso. Era quase um teste. E Isabella não pretendia falhar.

O elevador abriu com um ding e Charlie entrou apressada, cabelos ainda úmidos do banho rápido que tomara depois da corrida. Quando passou pela recepção, viu que alguns rostos se viraram — curiosos, especulativos. Estava acostumada. Sempre fora assunto fácil: a advogada de fora, meio rebelde, meio brilhante demais para o gosto de alguns.

Abriu um sorriso rápido para Maya, que carregava uma pilha de contratos.

— Dormiu no escritório? — perguntou Charlie, tentando soar casual.

— Não. Mas se você continuar chegando assim atrasada, vai achar que eu moro aqui — retrucou Maya, com uma piscadela cúmplice.

Charlie riu e seguiu até sua sala. Pelo vidro, viu Isabella sentada, impecável como sempre, digitando algo com expressão concentrada. Parecia inabalável. Parecia perfeita. E por algum motivo que ela se recusava a admitir, aquela imagem a incomodava mais do que qualquer crítica.

Respirou fundo. Não importava o quanto Isabella parecesse inalcançável. Na hora certa, ela também perderia o equilíbrio. E Charlie estaria lá para ver.

Afinal, ninguém era tão perfeita assim.

Na sala de reuniões, Ramirez ajeitava papéis quando as duas chegaram quase ao mesmo tempo. Os olhares se cruzaram, como sempre. Um desafio silencioso. Uma promessa de guerra.

Charlie ergueu uma sobrancelha. Isabella manteve o rosto impassível.

O jogo tinha começado — e nenhuma das duas planejava perder.

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